terça-feira, junho 29, 2021

flores [poema 318]

Podes colher as flores em mim, confesso que as reguei 
Com o teu olhar e me apaixonei 
Por elas, pois nelas se hospedou o teu olhar 
 
Deixo-te que as colhas até ao fim, fica sempre perfumado 
Tudo o que tocas e, mesmo sem flores, é um jardim 
 
Peço que não leves os espinhos ou os cardos 
São só meus e são memória
das flores que a ti te dei de mim 
 
grato por tudo o que fazes em mim, Senhor!

domingo, junho 27, 2021

A comunidade cristã eficaz

Senhor padre, o senhor é que havia de nos ensaiar os cânticos, disse a senhora Alcinda, uma das cantoras do grupo paroquial. Mas esse não é o meu ministério, respondi. Mas olhe que há padres que o fazem, assinalou. As comparações deste teor nunca são o mais produtivo de um diálogo. Eu até conheço colegas que saem do altar para tocar o harmónio ou para gesticular os compassos à frente do coro. Só que eu não gosto das comunidades clericalizadas ao ponto de o padre ter de estar em tudo e presidir a tudo. Disse-lhe que eu até poderia cantar toda a missa sozinho. Assim como dar toda a catequese. E adornar os altares. E ler as leituras, que é para referir o mais comum dos serviços de uma paróquia. A comunidade cristã eficaz não é aquela que faz tudo bem, mas aquela que é mesmo uma comunidade! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: " "Há paróquias e paróquias"

quinta-feira, junho 24, 2021

A bola de garrafa

Chegam à catequese desvairados, diz-me uma catequista. E a verdade é que estava uma garrafa de água em local estratégico, dentro do centro pastoral, para ser levada para outro lado, e este grupo de miúdos, como se fosse a coisa mais natural do mundo, serviram-se dela como se de uma bola se tratasse. Nem há pandemia nem há nada que resista. E tudo começa em casa. É o que temos. Por isso entendo como é que as catequistas têm tanta dificuldade em cumprir a sua missão. Porque não são apenas as garrafas de águas que são bolas nos pés de alguns miúdos. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

domingo, junho 20, 2021

os padres santos X

Conheço padres que vivem na culpa, com medo da culpa. Vivem para a culpa. Batem no peito e obrigam a bater no peito. Nunca vêm o lado bom da vida nem das coisas. Nunca vêem o coração bom das pessoas, porque só enxergam a maldade que está em todo o lado. E é verdade que está. Mas também está a seu lado a bondade. Porque todos temos algo de bom e de menos bom. Viver na culpa atrofia o nosso viver. E há padres que vivem atrofiados e a atrofiar. Porque vivem mais a culpa que a vida. Vivem mais a vida como pecado original que como graça de Deus. Mas lutam. Lutam constantemente contra o fantasma da culpa. E sofrem nessa luta. São sofredores por natureza. E só por isso, são santos. São santos no sofrimento. 
 

sexta-feira, junho 18, 2021

Também te amo muito

Depois de meia hora sem sinal, numa manifesta apatia, e depois de rezar várias vezes a oração do Pai-nosso a olhar para ele (o pai que me trouxe à vida e que está agora numa Unidade de Cuidados Continuados), disse-lhe que o amava muito. E pela primeira vez nessa visita, deixou de olhar o vazio, sorriu a olhar para mim, e disse 'Também me amo muito, meu filho'. Depois voltou à apatia. E não mais segurei as lágrimas. Nem as seguro agora. Porque não quero, como não queria que fosse assim. Sei que há palavras que dizem tudo e não precisam de outras palavras. Mas também há coisas que ultrapassam as nossas forças e só as lágrimas conseguem ter força suficiente para fazer alguma coisa. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO (desta vez imensamente a propósito): "Feliz dia do pai"

quarta-feira, junho 16, 2021

Desidentificado

O desabafo iniciou com os olhos lacrimejantes. Depois com o rosto macerado e inclinado para baixo. A olhar para dentro. Não me identifico com esta Igreja. Com esta forma de ser Igreja acorrentada ao sacramental e ao sempre se fez assim. Olho a construção do reino e o anúncio da Boa Nova como os pilares da missão da Igreja, como um todo, e da minha própria missão como sacerdote. Não sei tudo. Mas sei que estamos a ir pelos caminhos errados. E esta pandemia veio desvelar o equívoco. Olho para o meu bispo e para os meus colegas padres e sinto-me estranho. Por mais diálogos que faça, soam-me a monólogos. As discussões pastorais destes tempos de pandemia circulam à volta do mesmo de sempre, na busca de um novo modo de fazer o mesmo de sempre. A manutenção. A conservação. Estou cansado. Saturado. Desidentificado. O colega para quem estava a desabafar ouviu sem interromper. No final do desabafo, este lembrou-o de que ele não tinha que se identificar com o bispo, os colegas ou a Igreja, mas sim com Cristo. Com Cristo é que tens de te identificar, disse. Os olhos levantaram-se para o escutar com o olhar, e a pedir que repetisse. Com Cristo é que tens de te identificar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Rezar na verdade da dor"

quinta-feira, junho 10, 2021

os padres santos IX

Conheço padres que permitem tudo. Só não permitem que os impeçam de permitir. Ou que ponham em causa o facto de serem permissivos. Acham sempre que a Igreja só cresce porque se faz a vontade às pessoas. Ou porque se tornaram populares no meio das pessoas por acederem aos seus pedidos, sejam para a direita ou para a esquerda. Vivem entre um certo proselitismo barato e a imagem de uma Igreja ainda mais barata. Entre o agradar e o ser agradável. Não passam dali. Por isso tudo neles é um pouco leve. Tudo muito líquido, como água que vai como vai no recipiente em que estiver. São bastante voláteis. São do ‘sim’ constante ou dos ‘não’ que acabam sendo sins. Não sei se são sérios ou não. Mas sei que não sabem que fazem mal à própria Igreja, na medida em que a enformam às necessidades. Deles e sobejamente suas. Talvez sejam o rosto do sim constante de Deus. E nisso devem ser santos. 
 

sábado, junho 05, 2021

Porque foste comungar?

Estavam os dois lado a lado, em pé, ao fundo da igreja, por ocasião de uma festa de catequese dos filhos, quando o ministro extraordinário se acercou para distribuir a Sagrada Comunhão. Um destes dois amigos, aquele que só costuma ir à missa em festas deste género e pouco mais, colocou-se na fila para a comunhão. Como os outros. E comungou o Senhor. Como os outros que estavam na fila. Regressou com um grande sorriso nos lábios. Como a maioria dos outros da fila. No entanto, embora a comunhão seja um enorme motivo de alegria para os cristãos, quem o observasse com atenção diria que era um sorriso excessivo. Assim que se colocou no lugar onde estava antes, ao lado do outro amigo, este último, sabendo que ele não estava propriamente em condições de comungar, isto é, em graça, até porque quase nunca vai à missa, voltou-se para ele e perguntou-lhe porque fora comungar. E o outro respondeu com um sorriso ainda maior, que tinha ido comungar porque tinha fome. Assim, em tom de troça. 
Assim ele tivesse verdadeira fome de Deus! 
 

terça-feira, junho 01, 2021

A esperança é a última a morrer

A expressão “a esperança é a última a morrer” incomoda-me, porque a verdadeira esperança está muito para além de nós. E é essa que pode dar sentido à nossa vida e à nossa mortalidade. Temos de viver em confiança. Mas em confiança da realidade. Temos de viver em esperança. Mas em esperança do que há-de vir e que Deus nos tem preparado. O João, em poucos dias, em poucas semanas, regrediu na doença que pensara ter superado há uma década. Agora anda de médico em médico e de exame em exame, assustado. E dizia-me que a esperança era a última a morrer. Como se a esperança fosse a última coisa a morrer nele ou morresse ele primeiro que ela. 
Apesar de não gostar muito da expressão também eu a usei e continuo a usar muitas vezes. Mas agora, e no meio desta pandemia que nunca mais parece querer deixar-nos, começo a não gostar muito de frases feitas que me parecem um kitsch. E esta tem esse sabor agridoce de quem quer dizer a alguém que a coisa está mal, mas que não se deixe levar pela coisa. E cada vez mais penso que a verdadeira esperança só pode brotar da realidade, isto é, a esperança surge em nós, no meio das dores da vida, tanto quanto consigamos encarar com naturalidade a vida tal como ela nos é dado viver em cada momento e tal como quem a criou a projectou. Não será uma esperança balofa. Será uma esperança ancorada na certeza de que Deus tem, não só um projecto de vida magnífico para nós vivermos, como uma vida eterna de amor à nossa espera. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "É que me lembrei da esperança"