sexta-feira, julho 31, 2020

folhas [poema 275]

As folhas não caem sem voar
Não adormecem sem se deitar
Encontram-se com o destino
Embaladas pelo vento
Como um menino
Aguardando o tempo.

quarta-feira, julho 29, 2020

o apagamento [poema 274]

Imagino que há um ditado que fala de quem vive em mim
No apagamento de quem constrói para fora do que sou

Sei que o mundo se apaga quando nós queremos ser
No íntimo da razão de viver como somos

Sei que não vivemos sozinhos quando apagamos os outros
Eles serão sempre os outros que nós criámos em nós

Imagino que um dia o meu apagamento será só meu
No mundo dos outros

domingo, julho 26, 2020

Abandono em tempos de pandemia

No país que mora ao lado do nosso, Espanha, segundo um estudo que me pareceu fidedigno, o número de católicos diminuiu cinco pontos percentuais em dois meses, de abril a junho, isto é, em dois meses de pandemia e confinamento. É uma observação um pouco estranha, na medida em que dois meses não são dois anos, e as pessoas não mudam o seu entendimento da vida e da fé em tão pouco tempo. Ou se calhar mudam. Não sei. O que sei é que a assiduidade à eucaristia, sobretudo nas paróquias urbanas, tem diminuído. Pelo menos parece-me, do que vou ouvindo e vendo. 
Jesus não falou de templos ou igrejas, é verdade. Também não organizou propriamente uma religião. A fé, acima de tudo, vive-se. Mas também se alimenta nas celebrações. Precisa de se alimentar. Estes tempos frágeis e de abandono dos templos poderiam ter o lado positivo de se religar a fé ao Evangelho, mais que aos sacramentos. Temo, porém, que, dentro da sociedade líquida, pluralista e pos-secularista em que vivemos, o abandono seja mais a consequência do modo social de ver a fé e a igreja ou a religião. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As nossas paróquias estão a morrer"

sexta-feira, julho 24, 2020

acoli [poema 273]

Estou longe do mundo
Longe do lugar onde as coisas se tornam coisas
E passam do ser ao que são

É uma luz completamente diferente
Eu diria que é o lugar de quem vive à espera
Esse espaço onde passa a gente
Por passar

Estou por perto, mas distante
Do lugar das coisas
Onde o mundo parece mundo
Onde o que é
acontece

quarta-feira, julho 22, 2020

nós [poema 272]

Quando penso que um dia hei-de ver o meu rosto
Cravado na imagem que tenho do teu amor
Há em mim uma permanência de um não sei dizer
Uma força do tempo que imagino sempre a passar
Mesmo quando tudo parece o mesmo segundo
E o mesmo caminhar

domingo, julho 19, 2020

Padres ou cabeleireiros

A alegria daqueles idosos que me receberam no lar para a eucaristia não tem como contar-se. A directora técnica lembrara-se de me propor, com todos os cuidados e mais algum, que passasse por lá a rezar com eles, a celebrar com eles. Estavam radiantes e, apesar de usar máscara e viseira, protecção dos sapatos, álcool gel constante, e de nunca me ter aproximado deles, também eu lhes senti o pulsar. Por isso partilhei esse sentimento com uma pessoa responsável de outro lar nas minhas comunidades, dispondo-me a fazer o mesmo, caso achassem oportuno e assegurassem os cuidados e normas imprescindíveis. 
Assim que essa pessoa teve oportunidade de conversar com alguns utentes, e como quem não quer a coisa, contou que o senhor padre fora celebrar missa a um outro lar e perguntava se não seria boa ideia ele vir cá também. E a resposta do senhor José não se fez esperar. O melhor mesmo era vir cá a cabeleireira!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Américo faltou à missa"

sexta-feira, julho 17, 2020

completude [poema 271]

Poderei completar o que me pedes
Amontoar pedras e subir-lhes degrau a degrau
Poderei sorrir-te do alto da escadaria
Mesmo que a chuva me molhe os calcanhares
E não veja o tempo para descer de novo a mim
Poderei abraçar-te como me abraço a sós
Porque onde estiver aí completarei quem és

quarta-feira, julho 15, 2020

vens [poema 270]

Sonho contigo nas noites que não passam
Escondido nos lençóis vazios e muito brancos
Sonho que és a minha história real, que vens
Pelo que desejo subconsciente sem controlar
Na verdade mais simples de me encontrar

domingo, julho 12, 2020

O ministério sacerdotal não é um privilégio

Estava ordenado há pouco tempo e fora enviado pelo seu bispo a estudar em Roma. Numa daquelas universidades famosas no meio eclesiástico. Encontraram-lhe alojamento num típico colégio de estudantes que eram, ao mesmo tempo, sacerdotes. Independentemente das virtudes deste jovem sacerdote, oriundo de um país de missão ad gentes e que não conheço nem quero ajuizar, contaram-me que, como no colégio se organizavam por grupos para executar algumas tarefas, e que lhe tocara levantar, com outros, as mesas do almoço e jantar de uma semana em cada mês, este sacerdote se dirigira ao director do colégio para lhe manifestar que não faria aquele serviço, porque, e cito: “isso colocava em causa a sua dignidade sacerdotal”. Claro que, à distância da realidade e das palavras no tom em que foram usadas, facilmente abrimos a mão para apontar com o dedo indicador. Mas depois descobrimos os restantes dedos, o médio, o anelar e o mínimo, a apontar para nós. Como de facto. 
Parece-me muito fácil que nós, os consagrados, por nos termos entregue a Deus de uma forma total, ou quase total, caiamos na tentação de pensar que isso nos traz uma dignidade que Deus não concede aos outros. Ou que nos devem respeitar, não pelo que somos e porque somos, mas pela dignidade do nosso múnus sacerdotal. Ou, num extremismo despropositado, chegar a pensar que a Igreja, no seu conjunto e no povo que é de Deus, nos tem de agradecer porque já nos entregámos a Deus. Que tolice! 
O ministério sacerdotal não é um privilégio. É uma forma de vida e missão. É uma vocação para os outros e não para nós. É um serviço. Nós é que temos de agradecer a quem nos dá a possibilidade de viver essa missão.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quer vir jantar connosco?"

quinta-feira, julho 09, 2020

Deus no quintal

A catequista explicava que Deus estava em todo o lado. Que estava também no coração de cada um deles. Que estava por todo o lado. Nisto, o Francisco, que não era o papa mas tinha o nome dele, perguntou se também estava no quintal do avô. E a catequista, admirada pelo interesse do seu catequisando, respondeu que sim. Claro que estava. Também estava no quintal do avô do Francisco. Mas o petiz, vejam lá tamanha astúcia, não deixou alongar a conversa e arrematou. Mas o meu avô nem tem quintal, como pode Deus lá estar?

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Falar de Deus"

segunda-feira, julho 06, 2020

ela outra vez [poema 269]

Afinal ela não tem um avião
Tem um papel que parece um avião
Dobrada nos joelhos, na vida
da mão

Tem um papel para encontrar alguém
No coração

sexta-feira, julho 03, 2020

ela [poema 268]

O meu prato não tem fundo
Não tem o terminar

O copo deitado, a água na fonte
A esperar

O meu sonho é um dia poder ser gente
Como as outras
E amar