sexta-feira, maio 30, 2008

Não sei o que é não ter emprego

As conversas particulares ou são segredos ou são receios ou são confidências. Às vezes são as três em simultâneo. Por isso entrámos no escritório para uma conversa particular. Eu sentado e ela em pé, como que para fugir na primeira dificuldade sem que eu tivesse oportunidade para agarrá-la, e como se a conversa não pudesse ser demorada.
Os pobres de hoje vivem assim, em pé para fugir, para não perder tempo, para não demorar a sensação das dificuldades, para não assumir que se precisa, para que ninguém possa murmurar a pobreza dos seus. Os pobres de hoje, que aumentaram em número e diminuíram o da classe média baixa, têm vergonha de precisar de ajuda.
O sorriso era forçado. Ter de justificar a sua necessidade precisava de um sorriso. Assim como precisava de sorrir para que os filhos sorrissem. Precisava de ajuda. Eu ouvia sem falar. Às vezes não conseguimos mais que ouvir, porque não sabemos as palavras ou gestos certos. E enquanto ela me falava das dificuldades da vida, lembrei-me de um jovem que, em tempos, decidira entrar no Seminário. Lembrei também as minhas gargalhadas quando me contaram que este, questionado sobre os motivos pelos quais queria ingressar no Seminário, respondera que assim tinha a certeza de arranjar emprego. Nada mais desapropriado, mas nada mais acertado. Emprego garantido. Trabalho sem horários definidos, mas sempre garantido. Remuneração indefinida, mas sempre garantida.
Por isso ao ouvi-la, senti-me atado. Estranhamente atado entre uma vida que escolhi por causa de Deus, mas que me facilita a causa dos homens. Reconheço que perante o meu trabalho, esforço e responsabilidade, a remuneração não é a suficiente. Mas perante a vida, os encargos e os outros, sinto-me um privilegiado. Não tenho nada. Porém, não me falta nada que, de facto, faça falta.
Escondi as mãos nos bolsos porque não sabia onde as colocar. Não fazia sentido ter uma mão aberta ou fechada. Não fazia sentido ter uma mão que não pudesse apertar outra. Era mais fácil escondê-la, atá-la, cerrá-la. Quando nos despedimos, retirei-a do bolso e mais o que lá estava. Mas o que é um peixe num mar imenso?! Sobretudo quando não se tem cana de pesca, rede ou barco?!
Claro que ser padre não é um emprego no verdadeiro sentido da palavra. É uma vocação, algo que se vive inclusive durante o sono. Ser padre define-me. Não é um atributo. Mas hoje, ao olhar aquele sorriso forçado, senti-me um privilegiado porque nunca senti o que é não ter emprego.

segunda-feira, maio 19, 2008

A fé de Portugal

O bom do João foi a Fátima a pé. Fez o percurso com entusiasmo. Contou-me que ia rezando o terço, mesmo quando os outros não queriam. Uma vez por dia rezavam em conjunto. Era um grupo de mais de uma dezena de pessoas. Gente da terra que, uma vez por ano, faz esta viagem. Regressado de Fátima, o João sentia-se incomodado no mais íntimo da sua fé. Tinham conseguido chegar no dia 13, a cerca de meia hora da Eucaristia do recinto. Óptimo, pensou ele e repetiu no diálogo comigo. Mas um dos companheiros de viagem tinha uma promessa para cumprir. Vir da “cruz alta” de joelhos com o filho ao colo e dar duas voltas à Capelinha com o mesmo peso aos ombros. A decisão do grupo fora unânime: acompanhar o colega para que ele conseguisse cumprir o prometido a Nossa Senhora. Não queriam pactuar com a tristeza da “senhora” se ele não o cumprisse.
Não foram à Eucaristia? Perguntei. Por isso vim falar consigo, padre. Não fomos, e eu sinto-me incomodado com isso. Ainda tentei convencer o pessoal, mas eles não me quiseram ouvir, e eu não consegui resistir. Então foram a Fátima com fé em Nossa Senhora, com a devida devoção, mas não quiseram saber da Eucaristia? E não procuraram outra, que em Fátima costumam haver várias? Não, padre. Depois regressámos a casa. Que me diz? Fiz bem ou mal?
O João não teve coragem de mostrar a sua verdadeira fé, aquela que vê na mãe, chamada “de Fátima”, como o meio de chegar melhor ao Seu Filho, como o meio de amar mais o Seu filho Jesus. E é esta a fé de Portugal, que tem uma enorme devoção a Fátima, às promessas e às tradições. Basta pensar nas pessoas que vão a Fátima cheias de fé e de promessas, mas que não vão à missa, nem na paróquia nem no santuário. Basta recordar como tanta gente enche as fileiras das procissões das festas, fora ou dentro delas, e as que vão à missa dominical. Basta pensar naqueles que gastam uns cêntimos numas velas mas não partilham dos mesmos cêntimos com os vizinhos pobres. Basta pensar nos sacrifícios feitos para peregrinar a Fátima e nos sacrifícios que não são feitos para perdoar quem nos magoou. Basta pensar em Portugal, para perceber que esta é a fé dos portugueses, uma fé em Fátima, nas tradições e nas promessas.
Que me diz? Fiz bem ou mal?

quarta-feira, maio 07, 2008

Tinha uma vida cheia de tudo

Enquanto o corpo correspondia, transparecendo formas definidas e esbeltas, era de opinião que não devia ter muitos filhos. Os que não custassem e que servissem para formar família bastavam. Tinha uma vida cheia de tudo. Bom marido. Boas casas, que eram mais que uma. Dinheiro suficiente para que não lhe faltasse a felicidade. Guardara o necessário para fazer uma velhice sem sobressaltos. Inclusive, sabia conviver com a vida e com Deus na sua participação dominical da missa. Era boa mulher e boa mãe. Nunca deixara que os seus dois filhos soubessem o que era não ter mãe. Tinha dois porque um tinha sido descuido. Estivera para abortar. Não tivera coragem dessa vez, mas conseguira tê-la noutra. Agora a mulher que tinha tudo, que era feliz e que não quisera ter o desconforto de ter meia dúzia de filhos, estava ao meu lado, mal sentada porque não conseguia aguentar as dores, e ela própria contava a sua vida de felicidade efémera e de enganos com a vida. Chorava disfarçadamente para que ninguém reparasse, embora toda a gente a soubesse desditosa. A mão não possuía força suficiente para se limpar. Por isso a pintura dos olhos esborratava-se. Pertencia a uma classe um pouco acima da média. Agora a pintura espalhada pelas lágrimas mostrava o que está por de trás de qualquer tipo de classe. E contava que o seu marido morrera e que os últimos anos tinham sido imensamente duros porque tinha cuidado dele sozinha. Desculpava os filhos dizendo que não tinham tempo. Mas agora ainda menos, porque tinham morrido ambos antes do pai. Padre, não tenho quem cuide de mim. Não tenho filhos que me cuidem. Estou muito doente. Sinto-me impotente para resolver o que quer que seja. Gastei os últimos cêntimos com remédios. O que me vai valendo é o Centro. Falava do Centro Paroquial. Se tivesse, ao menos, mais um filho ou dois, padre!
Agarrei-me a ela com força, a força que Deus me dera para ter naquele momento, para também eu ser forte e a fazer forte. Limpei-lhe uma lágrima com um dos meus dedos. Mas não insisti, porque o mesmo dedo parecia querer aproximar-se de um dos meus olhos. Disse três ou quatro palavras que nem lembro porque fiquei a falar por dentro. Sei que ela parou de chorar. As palavras devem ter valido de conforto. Quando se levantou com a minha ajuda e me disse adeus, eu pensei no como tanta gente resiste a ter mais filhos por um qualquer motivo que, vá-se lá a saber, a maioria das vezes não é mais que uma forma de evitar preocupações e problemas, esquecendo que outros problemas e preocupações podem vir atrás dessas opções.