terça-feira, janeiro 30, 2018

A Igreja precisa de padres?

Dava um bom título para um dos nossos pasquins mediáticos. Assim como dava um bom artigo de teologia numa revista especializada. Mas a pergunta surgiu numa reunião de padres que se queixavam a propósito de uma notícia badalada na comunicação social e que percorreu as redes sociais. 
O padre ainda é preciso para fazer funerais, as festas bonitas de alguns sacramentos e as festas populares com procissões e romarias que terminam com bailaricos, cantores famosos e muita bebida. Nalgumas paróquias servem ainda para as reclamações de missas, sobretudo as de sétimo dia ou de notícia, aquelas missas com intenções, em determinados aniversários de defuntos. 
São, a meu ver, necessidades autênticas e que a Igreja deve valorizar. Mas a pergunta, para mim, é muito mais profunda. A pergunta mexe com a razão verdadeira da existência dos sacerdotes, a própria existência da Igreja Católica, Apostólica e Romana, e que hoje já é costume chamar de ICAR (não gosto nada que lhe chamem assim, como se fosse o nome de uma instituição que se designa pelas suas iniciais e não pela sua razão de ser, o mandato de Cristo).
Precisa a Igreja dos padres, quando o seu número tem tendência a diminuir drasticamente e já não se conseguem manter as comunidades cristãs como no tempo da cristandade? O futuro dir-nos-á da necessidade dos padres, mas di-lo-á na procura daquilo que é a sua missão específica. Com o tempo creio que a Igreja assentará sobretudo no Povo de Deus que é constituído maioritariamente por leigos. Em breve serão eles a tomar conta das comunidades cristas, com um sacerdote que vai passando a celebrar missa de vez em quando. O próprio tempo fará com que deixemos de querer manter o de sempre. Talvez nessa altura descubramos que a Igreja é de Deus e não ao contrário, que a Igreja tem um deus. Na verdade, não é Cristo que precisa da Igreja, mas a Igreja que precisa de Cristo. 
Talvez nesse tempo sejamos obrigados a dar conta que os padres só são necessários porque Cristo é necessário.

sábado, janeiro 27, 2018

o verbo [poema 170]

Há uma palavra que não sou eu
Mas diz-se como se me habitasse
Vai-me soltando por entre os dedos
Como se suportasse
Esse segredo
Que não é seu

Vem ou vai, morre ou nasce
Sobe ou desce
pelo céu

quinta-feira, janeiro 25, 2018

Os padres impecáveis

Há tempos trocávamos aqui palavras sobre os seres perfeitos dos padres. Agora apetece-me falar dos mesmos, mas trocando os adjectivos. Falarei dos padres impecáveis, desses que, porventura, vivem para mostrar o Deus impecável que lhes dá poder, através da ordenação, de serem impecáveis. Esse Deus que não os habita, porque eles devem precisar pouco dele, dado que são impecáveis. 
Não sei quem são nem onde existem esses padres. Nem sei se existem. Por mim cá continuarei como S. Paulo, a professar que Deus entra na nossa fragilidade para lhe darmos espaço, a Ele e à sua força. E para que tudo o que façamos seja expressão dele e da sua força de amor, e não da nossa suposta impecabilidade. 
Como disse em tempos um grande amigo, uma coisa é fazer as coisas bem, e outras fazê-las brilhar!

terça-feira, janeiro 23, 2018

amor maior [poema 169]

Conta-me esse amor que dizes que eu não sei
Essa história que não é de encantar, mas encanta

Cada espaço do coração que não é só meu
Cada palavra dos textos que dizem quem sou
Desvendando que esse amor não se sabe,
mas se vive

sábado, janeiro 20, 2018

se são cruzes [poema 168]

Tenho uma pedra sentada, ao colo
E uma canga pesada, aos ombros.
Não vejo, mas creio que vem
Atrás de mim, numa sombra,
Uma cruz ou algo que não sei
Um pinheiro sem folhas
Uma casa sem janelas
Um mundo sem pessoas
Sei lá bem!

Sento-me, pesado, a ver passar
o tempo, e nele, cansado, vai passando,
Outro eu que não eu, como o tempo
Passando, às centenas e aos milhares
Com pedras, cangas e coisas que não sei
Se são cruzes, não sei bem!


quarta-feira, janeiro 17, 2018

Esta dor que não me consome

Hoje não quero saber se me dói alguma parte do corpo ou da alma. Enquanto fumo o último cigarro da noite, à janela que dá para as luzes da igreja, deixo que o tempo apenas passe por mim como o vento numa manhã de praia que avizinha o sol. Geralmente o tabaco ocupa aquela parte da meditação que faço, rabugento com o tempo, para me entregar a ele. Mas hoje quero que ele passe por mim, me cumprimente e se despeça no mesmo instante. É que, às vezes, damos tanta importância ao tempo que nos sobra que não damos conta do sol que desponta cada dia ao amanhecer. Sei que há algo de mim, neste corpo entregue a Deus, que precisa de algo mais do que o tempo. Mas hoje não quero mais pensar nisso. Vou apagar o cigarro, e deixar que as cinzas voem para longe. Lá, onde só eu e Deus daremos as mãos. Sorrio e digo. Bem-haja, Senhor meu Deus, que és tão generoso em mim, mesmo quando permites que uma dor perturbe a nossa amizade. Eu sei que há algo em nós que não se prova mas se sabe, como o sal que não se vê, mas que tempera o que comemos.

sexta-feira, janeiro 12, 2018

O matrimónio é coisa demasiado séria

Gostava de chamar José e Maria aos dois jovens que acabaram de sair do cartório paroquial depois de marcarem o matrimónio para a hora tal do dia tal. Gostava de lhes dar esse nome por analogia com a sagrada família de Nazaré, mas não me sinto no direito de estabelecer a comparação, sobretudo porque nem um nem o outro me pareceram suficientemente esclarecidos quanto a Deus ou quanto ao passo que querem dar. O diálogo foi franco e aberto. Tão franco e aberto que, ao final, me pareceu estar a oferecer um sacramento que nunca será entendido como tal. Também lhes falei de coisas como o Curso de Preparação para o Matrimónio ou a nulidade do matrimónio. Sobre este último, o interesse destes jovens veio ao de cima com rubores acrescidos. Sobre o referido curso, senti que lhes era um fardo que não pretendiam, embora tivessem de o cumprir. Estavam mais preocupados com pormenores cerimoniais, a beleza do espaço e da animação, os copos e bebes e as horas do casamento. Despedi-me deles com uma sensação estranha, uma sensação que já não é de hoje, mas de muitas outras ocasiões em que há algo que não entendemos mas desconfiamos. Vou rezar por eles esta tarde na Eucaristia.

terça-feira, janeiro 09, 2018

casa [poema 167]

E a casa cai na enxurrada
Na lama jaz, nela é nada.
É depois pisada, toda calcada,
Debicada por quem passa

Por toda a passarada

E a casa se faz estrada
para quem passa.

Até para a passarada

sábado, janeiro 06, 2018

A menina que eu chamaria de Felicidade

Já não se usa muito o termo “menina”, mas eu ouso usá-lo para falar da menina Felicidade. É uma senhora com idade para ser um pouco mais que minha mãe. Enviuvou há muito. Não vive sozinha, mas vive com as suas maleitas como se existisse sozinha nesse mundo. A única filha morreu há duas dezenas de anos com a doença que é redobrada constantemente nos sinos das nossas igrejas, o cancro. Ela própria sobreviveu a esse maldito pesar na própria pele. Foi, ao que me dizem, uma força da natureza ou uma força de Deus nos muitos embates que a sua vida tem tido. É verdade que se queixa muito do que vai sofrendo. Mas não se queixa da vida. Eu diria que se resigna, e vive a lamentação própria de quem sabe cada minuto da vida. Que sabe que vivemos enquanto estamos vivos, e que é a Deus que devemos tão grande dom. Apesar de viver nesse mundo das queixas e apesar de desfalecer constantemente com os achaques das doenças que lhe aparecem, eu descubro nela constantemente o dom da vida. Aceita que a vida é isto. Entrega-se nas mãos de Deus como se fossem a melhor almofada para adormecer. Possui um misto de azar e sorte. Um misto de tristeza e de felicidade. Aguenta-se nas canelas, dizendo que o dia está a chegar. Sorri para mim e beija-me fora da barba, que não gosta dela e que perturba a sua face limpa e viçosa. Chego a pensar que a vida da menina Felicidade é um misto de muitas coisas que parecem não ser boas, mas com as quais se vive. 
Um beijinho do tamanho da tua vida, minha menina Felicidade.

quarta-feira, janeiro 03, 2018

Uma confissão banal

Confesso que faço demasiadas vezes a pergunta a Deus sobre o que ele quer de mim. Imagino-o a assobiar para o lado, cansado de ouvir insistentemente a mesma pergunta deste pobre padreco. Com tantos assuntos com que tem de preocupar-se, porque cargas de água havia de prestar atenção a uma pergunta tão banal e que, afinal já respondera uma que outra vez. Talvez o padreco estivesse distraído com os seus muitos afazeres. Talvez já não recorde mais, por entre as teias de aranha do tempo, o que lhe disse naquele famoso retiro de há décadas, quando lhe respondeu directamente Quero-te a ti, e ponto final. 
Confesso que também eu estou cansado de fazer a pergunta. Parece que ela já me sai dos lábios sem que dê conta. Como quando se vai ao dentista, se leva uma anestesia e não se consegue controlar verdadeiramente os lábios. Já me tenho mordido, sem querer, à custa dessas anestesias. Talvez devesse morder de novo os lábios e calar o que me vai no coração. Talvez a resposta que um dia Deus me deu bastasse para viver ao comando de uma série de paróquias, de uma outra série de serviços e prestações à Igreja. Mas eu imagino sempre os meus diálogos com Deus como se fosse um namoro. Gosto tanto desta forma de pensar a minha relação com Deus que às vezes até me parece uma veleidade. Ou soberba. Mas é por essa razão que eu faço insistentemente a pergunta e espero constantemente a resposta. Sim, tal como no namoro não basta dizer uma vez Eu amo-te, também a mim não me basta que Deus me diga uma vez que quer de mim. 
Confesso que no fundo, assim, lá naquele cantinho que só existe quando estamos sozinhos e a falar connosco mesmos, eu até consigo esboçar a sua resposta. Tenho umas quantas pistas dela. Mas eu queria ouvir. Ouvir para me assegurar que as pistas são, afinal, mapas. Queria ouvir, porque apesar de saber que fui escolhido para ser sacerdote, eu não sei sempre como sê-lo. Era tão bom que, de vez em quando, pelo menos uma vez por semana, o Senhor Deus se distraísse um pouco dos seus mil afazeres para me dizer Agora faz assim. Mas não diz. Espera por mim, pela minha descoberta, pela minha resposta. Diz ele que essa é a sua resposta. Que a minha resposta é a sua resposta.