quinta-feira, maio 28, 2009

A senhora da unção

A primeira vez que apresentei publicamente a minha vontade em celebrarmos a Santa Unção de forma comunitária, logo alguns foram dizendo que isso era para os mortos. Não lhes estranhei o medo, porque foram habituados a usá-la em ocasiões de morte eminente. Torna-se, por isso, um sacramento menor, ou a desejar apenas em último caso. Eu não jogo à defesa, mas ao ataque, e tenho-me esforçado por ajudar a entender o valor deste sacramento nas minhas comunidades. Ano sim, ano não, realizamos comunitariamente a Unção dos doentes. Alguns teimam em resistir-lhe, em achar que é para os outros. Mas começam a surgir aqueles que vêem no sacramento a presença de Deus de forma excelente. A presença das suas forças, físicas, espirituais, morais, para quem está doente ou com idade avançada.
Este ano foi ano sim. Tocou-me de forma especial aquela senhora que, na hora em que lhe foi possível, na véspera da festa, como eu lhe chamei, me confidenciou. Estou tão contente, senhor padre. Há tanto tempo que esperava por isto. O mesmo tempo que fez a sua vida. O mesmo tempo que se fez fé. O tempo de Deus na esperança dos homens. Eis o sacramento em que Deus se faz esperança na vida e na doença. Deus está connosco quando parece que nada mais está ou que nada mais conta para nós.

segunda-feira, maio 25, 2009

A queixaria

O Carlos estava a conversar com um senhor, à porta de um café, numa mesa de esplanada, para ocupar o tempo entre as goladas do café e o poisar da chávena. Ambos sozinhos, isto é, um em cada mesa. Um com uma chávena de café e o outro com um traçadinho. O segundo, na falta de assunto, puxa algo que se torna sempre interessante. O padre da freguesia. Começa a queixaria. Sabe, o padre novo. Que tinha mudado isto. Que tinha dito aquilo. Que tinha feito não sei mais o quê que lhe tinham dito. Coisas de mulherio. Lá para as bandas do pinhal de cima. Uma vergonha, sabe. Até que a certa altura o Carlos lhe perguntou se ele já conhecia o padre. Poisou a chávena, levantou-se e pediu desculpa. Peço desculpa por não me ter apresentado. Como se nada fosse com ele, quando tudo tinha a ver com ele. Padre Carlos. Muito prazer. Partiu com um sorriso dentro dos lábios fechados pela pressão dos dentes. Deixou a chávena vazia sobre a mesa, e o copo de vinho cheio com o seu dono. O seu a seu dono, contou-me. Tu já viste que nem se dão ao trabalho de confirmar as suspeitas ou de conhecer os suspeitos? O que é preciso é dar uma de entendidos para maldizer os padres, seja ou não verdade. Assuntos de café, ou de quem não tem que fazer, anui.

quinta-feira, maio 21, 2009

O Zé, marido da Rosária

Vim agora da rua. Estava no meu balcão quando avistei ao longe o Zé, marido da Rosaria, que não sei se recordam.
O Zé tem a idade que Deus lhe permite ter e é muita. Mas ainda calcorreia os paralelos da vila. Vinha distraído e eu não quis distrai-lo da sua distracção. Mas como gosto de apreciar, fiquei preso a ele com o olhar, cogitando a fé desta gente. Nisto passa em frente da porta da Igreja, que é logo aqui ao lado. Não entra. Porém, para meu espanto, retira o chapéu da cabeça enquanto passa e coloca-o ao peito. Na hora exacta em que se encontra com a porta, faz aquilo que me pareceu uma genuflexão. Não tocou com o joelho no chão. Mas percebeu-se a intenção. Não deu conta da minha presença. Não precisava. Deve ser um gesto habitual, normal nele. Não entra na Igreja e segue viagem. Vai apressado. Entro em casa a sorrir. Permaneço em frente à minha porta, do lado de dentro, e penso a sorrir. Olha eu que imagino e tudo faço por uma igreja em permanente “Nova Evangelização”, agora recebo este ensinamento de alguém que ainda está preso a um hábito antigo, digo eu. Habituado ao grande respeito pela casa de Deus, pela porta para Deus, pelo próprio Deus. Ainda que de forma algo distante. Ainda que tenha ficado à porta. Ainda que possa ser apenas um hábito. Ainda que, de ensinamento, tenha sido apenas uma proposta à reflexão. Não sei se disse alguma oração. Mas o seu gesto foi para mim uma oração.
Obrigado, Zé

quarta-feira, maio 13, 2009

O casamento depois de dez anos casados

Estão casados pelo civil há cerca de dez anos. Têm duas crianças. A mais nova possui pouco mais que doze meses. Já os conhecia de outras andanças e de outras paróquias. Recordo ter perguntado na altura o motivo de não terem casado pela Igreja. Seria natural, pelo menos da parte dela, católica que vive os motivos de o ser. Recordo também a resposta que me deixou a pensar. O Afonso não fez caminhada de fé suficiente. Para ele não tem significado algum o casamento religioso. Deus ainda não é importante para ele. Eu vou esperar, disse a Teresa. Não quero fazer nem hipocrisias a Deus nem ao Afonso. No entanto quiseram baptizar o filho mais velho. Falámos de novo sobre o casamento. Não estava posto de parte. Falámos da verdade da sua fé. Quer mais verdade do que esta, padre? Perguntou a Teresa. Ambos queremos Deus nas nossas vidas. Mas não queremos nada à pressa. E queremos que o Tiago – chama-se assim o mais velho – tenha a oportunidade de fazer connosco o caminho. O Tiago baptizou-se na legalidade própria e possível.
Hoje o Afonso, a Teresa, o Tiago e o mais novo vivem, por acaso do destino, numa das minhas paróquias e tivemos oportunidade de nos reencontrar há dias. Queriam baptizar o mais novo. E queriam também confidenciar, dialogar e saber o que pensaria se eles quisessem casar pela Igreja. Eu fiz o mesmo que uns anos atrás. Deixei que tomassem eles a decisão de forma consciente. Perguntei do Afonso, de Deus na vida do Afonso. Respondeu-me o próprio que ainda precisava de caminhar mais, mas que neste momento Deus já lhe era algo importante. Não foi preciso muito. A papelada fez-se com serenidade. A cerimónia também. Nada de embrulhos. Eu sabia sobretudo o que ia na cabeça feliz da Teresa. Mas não resisti a perguntar na homilia o motivo de só agora, passados dez anos, terem optado pela sua união com a bênção de Deus. A Teresa olhou o Afonso. Este não teve meias medidas. Falou abertamente. Já somos uma família. Mas queremos constituir uma família cristã.
Of course que obriguei os presentes, que não eram muito mais que uma vintena, a perceber o que havia sido dito. Repeti-o e iniciei uma salva de palmas à verdade daquele casamento.
Hoje, cada vez que um casal, daqueles que não estão casados pela Igreja, me pede o baptismo de um filho, fico à espera de rever a família do Afonso, da Teresa, do Tiago e do Mateus.

sábado, maio 09, 2009

Quinze maçãs especiais

A ti Maria é uma figura ímpar. Usa, como bom costume, o preto. Lenço na cabeça. Rugas na face. Sobrolho em riste. Poucos dentes. Lembra um filme de Manoel de Oliveira, mas em género comédia. Tem atitudes engraçadas, que lhe são sempre perdoadas, pela figura. Trabalha imenso no campo, na sua horta de passatempo. Macieiras, oliveiras, couves, batatas, cenouras, tomates. Com as pitas e os recos. Passa por lá grande parte do tempo, que a vida está difícil e precisa estar ocupada para evitar pensamentos vãos ou pouco saudáveis. É generosa. Cultiva para si e para dar. Partilha o que tem e o que não tem. Por isso bateu-me à porta com um saco na mão. Não eram mais que umas quinze maçãs que o peso da idade não suporta facilmente o peso de muitas maças. Mas a generosidade suporta quinze maças. Digamos antes umas maçãzitas que, confirmei depois, possuíam uns sinais acastanhados da idade e do prazo. Senhor padre, trago-lhe este saquito. Não é muito, mas é de bom grado. Estava para as levar para os porcos, mas depois lembrei-me do senhor, e trago-lhas aqui com muita amizade. Aceitei-as com a mesma amizade, porque é importante para o cristão saber receber e aceitar. Mas fi-lo à pressa, para ter o tempo necessário de me conter. Contive-me até fechar a porta e depois desatei às gargalhadas sozinho. Sim senhora, a consideração era tão genuína como castiça. Estava para as levar para os porcos, mas depois lembrei-me do senhor.

terça-feira, maio 05, 2009

O Braço direito de um padre

O Braço direito de um padre é aquele que nos olha como homem, mas que sabe que temos uma missão a cumprir. Aquele que nos compreende como homem e como padre. Aquele que se preocupa connosco como homem. E que depois é capaz de dar uma ajuda ao padre e ao homem. Defendê-lo. Estar ao seu lado, como um anjo guardião. Sabe fazer aquilo que o padre não consegue fazer e prolonga o seu trabalho. Prolonga esse trabalho, mas sente que é um com o pároco e com a comunidade. Não se sente apenas um braço, mas um corpo do grande corpo que é a paróquia. É aquele que sabe respeitar os limites do padre e que os usa para o ajudar a crescer. Não concorda sempre. Mas aceita sempre. Ajuda sempre, mesmo que não concorde. Se o padre mostrar um rosto macerado, pergunta que tem aquele rosto. Se o padre tem vontade de sorrir, ampara-o com o mesmo sorriso. Não é perfeito. Não há ninguém perfeito. Mas sabe calar quando é necessário. Sabe guardar segredo. Sabe ser voz do padre quando os restantes paroquianos manifestam dar mais ouvidos aos iguais. Está comprometido, não com o padre, mas com Deus. Vive a fé sem fanatismos, porque consegue compreender a humanidade de cada um e como esta se resolve. Sabe que o padre é humano e precisa de resolver a sua humanidade. Não é um secretário, porque o secretário parece um apêndice do seu patrão. É antes aquele que age como uma missão, a sua missão. É aquele que, mesmo parecendo que não está lá, basta um olhar do padre para agir em conformidade, em cumplicidade. A cumplicidade dos que sabem o que Deus quer em cada momento.
Apetecia-me dizer uns quantos nomes. Mas vou apenas dizer obrigado.