quinta-feira, setembro 29, 2022

buscar o senhor padre ao céu

Eram umas santas devotas, as senhoras que enfeitavam os andores. Castiças e faladeiras. Contavam como eram as festas noutros tempos. Os seus tempos de meninice, quando a vida dos povos ainda girava à volta das paróquias ou se confundia com elas. Um tempo bom, sem dúvida, mas também cheio de caprichos, veleidades, quimeras. Uma espécie de devoções pagãs. Ó senhor padre, porque é que não fazemos como fazíamos dantes? Era tão bonito. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu. A procissão passava por ali e a festa enchia-se de gente. As crianças levavam não sei o quê. Era um arraial. E mais isto e mais aquilo. Era uma alegria, senhor padre. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu.
As ideias das santas devotas não eram más, mas eram descontextualizadas. Muito descontextualizadas. Como uma casa com o telhado no chão, duas ou três paredes em pé, mas se quer habitar como se não fosse casa em ruínas. E às tantas, o padre, cansado das belas ideias que, por mais explicações que desse, não conseguia contradizer, teve de dizer, com o rosto entre o sério e o sorriso maroto. A melhor solução é irem buscar o senhor padre Manuel ao céu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Procissões cheias de gente"

segunda-feira, setembro 26, 2022

Os pecados simplesmente

A senhora Antónia, que o nome me parece bem para a circunstância, faz parte do grupo de pessoas que tem medo de Deus por causa de achar que Deus castiga quem peca. No mínimo com o inferno. Por isso anda de roda dos padres à procura de sítio para entrar no céu, presa a alguma batina. E não se cansa dessa missão. Volta e meia, volta à carga com a sua aflicção. 
O pecado, minha estimada senhora Antónia, não existe para termos medo de viver. Existe como forma de ser pedra no caminho, e tanto pode servir para asfaltar a estrada, como pode servir para tropeçar na estrada. Viver o pecado com medo é o mesmo que ter medo da criação de Deus e do projecto de Deus para a criação. Como se Deus inventasse a criação de forma errada, por engano ou lapso. Como se Deus quisesse humilhar a sua criação imperfeita e assim deixasse claro quem mandava e quem tinha de obedecer. Como se Deus tivesse criado a humanidade para ter pena de nós. Não. Os pecados não são uma muralha. São uma ponte. São a humanidade que caminha na direcção do Deus perfeito e feito de amor. Perfeito no amor. O Deus que nos criou imperfeitos para nos amar como somos, na necessidade de caminhar para ser melhor. Esse caminho a que chamamos caminho da santidade.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me uma pecadora"

quarta-feira, setembro 21, 2022

O nosso senhor padre antigo

Numa troca de palavras com uma dezena de paroquianos, uma senhora, ao falar de um colega padre que fora o pároco deles há umas dezenas de anos, usou o termo “o nosso senhor padre antigo”. Olhei para ela com admiração e manifestei-lhe a minha alegria por ouvir falar do meu colega com esta designação, como se algo dele ainda restasse e quedasse neles. Como se ainda lhes pertencesse pelo bem que lhes fez. 
As pessoas que passam nas nossas vidas e nos deixam marcas são sempre um pedaço de nós e em nós permanecem desse modo. Por isso aquele meu colega ainda era um senhor padre deles, ainda que mais antigo do que o que aquele que tinham agora à frente dos rumos da paróquia. Foi muito bom ouvir aquelas palavras.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O padre que decidira deixar a comunidade sem padre"

sábado, setembro 17, 2022

Agarrado pelas mãos

Nos últimos dias vive entre picos de febre e rastos de febre. Come menos, segundo as cuidadoras me contam. Mas o rosto não engana. Come muito menos. Já fez alguns exames, mas apontam a nada que signifique algo concreto. Eu sei que a idade tem estas coisas e que a doença dele as destapa. Pouco olhou para mim desta vez. Nem os olhos ficaram parados. Ou se estavam parados, eu não via porque estavam igualmente fechados. Desta vez só as mãos falaram. O meu coração sente que a hora se torna mais visível e mais dolorosa. A enfermeira não o esconde. Eu gostava que ela o escondesse para eu pensar que eram apenas ideias minhas vindas da saudade e de um coração que deve tanto a quem nos dá a oportunidade de viver. Ao percebê-la, a lágrima cai pela máscara. Ninguém dá conta. Ele está no mundo dele e a enfermeira virou costas. Dou-lhe muitos beijos através da máscara. Encosto a minha face aos seus lábios e peço um beijo. Ele deu. Um beijo muito apagado, mas que guardei como se fosse o beijo mais expressivo do mundo e arredores. Foi o sinal mais positivo do meu paizinho nesta tarde. Enorme sinal. A ajudá-lo, as mãos agarradas quase o tempo todo da visita. Muito agarradas. Só me lembrava que eram o pedido para as não largar. No final decidi que em breve irei de novo, mas com os óleos dos enfermos na minha mala.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O tempo do meu pai"

quarta-feira, setembro 14, 2022

os pecados e as pessoas

No mundo há, a meu ver, quatro tipos de pessoas que se relacionam com o pecado de modo diferente. Existem pessoas constantemente aflitas por causa dele. Fazem parte de um modo de ser Igreja que aprendeu a viver a fé presa ao antigo e com o pecado repetidamente a entrar pelos ouvidos e pela cabeça. Não conseguem deixar de ter medo de Deus que castiga os pecadores. Existe, no sentido oposto, um grupo de pessoas, substancialmente maior, que vive sem pecado, porque o que uns chamam de pecado outros lhe desconhecem o nome e o sentido. Ou não querem saber destes pormenores da vida da Igreja ou minimizam-nos. São o segundo e terceiro grupo de pessoas a que me refiro. Os que minimizam o papel e significado do pecado fazem parte dos que, de certo modo, podemos denominar de progressistas. Com base no amor infinito de Deus, desculpam com isso todas as suas falhas. Ultrapassam o pecado fazendo de conta que ele não tem peso ou pesa como um pequeno grão de pó numa balança. Também neste lado estão as pessoas para quem a vida não precisa destas coisas de Deus e se riem do que os católicos chamam de pecados. Vivem sem a consciência de pecar. O pecado é um termo que não faz parte das suas vidas e do seu mundo. E mesmo que a consciência os acuse de algo, nunca lhe dão o nome de pecado. Existem ainda aquelas pessoas que encaram com naturalidade o seu pecado e tentam incorporá-lo, para poderem lidar com ele e o superar. Não vivem com medo de Deus, e usam os pecados como ocasiões para fortalecer o caminho para Deus. É que essa fragilidade os faz reconhecer a necessidade do amor de Deus na forma de perdão.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Senhor, toma o meu pecado"

sábado, setembro 10, 2022

Testemunho sem nome e sem medida

A filha mais nova morrera com meningite. Tinha pouco mais de três anos quando o fatídico sucedeu. Os pais ficaram destroçados, como é de imaginar, e esqueceram que tinham outro filho, um pouco mais velho, com a idade suficiente para pensar estes acontecimentos e achar que os pais estavam perdidos e focados na morte da filha, esquecendo que eles próprios tinham uma vida e outro filho a precisar deles. 
Um dia, já lá iam vários meses da morte da irmã, o filho decidiu confrontar os pais com estes pensamentos, pedindo-lhes que não se esquecessem que ele existia, estava vivo e precisava deles. No seguimento da conversa, rogou-lhes que fossem ao jogo de futebol que ele tinha no dia seguinte, para o aplaudir e para o acompanharem num momento que lhe era muito importante. Os pais, caindo em si, decidiram acompanhar o filho. E lá estavam, naquele dia, na bancada do campo de futebol para se fazerem presentes na vida do seu filho, quando uma trovoada irrompeu pelo meio do jogo e um raio atingiu o filho que lhes restava, acabando por lhe tirar a vida. Ficaram sem chão, sem tecto, sem paredes, sem nada. 
A mãe contava tudo com os olhos lacrimejantes. Mas vivos. Haviam passado muitos anos. E ela não tinha deixado morrer a sua vida. A conversa que estava a ter com outras mães versava sobre a fé, sobre a sua necessidade, sobre os seus frutos e sobre a importância de Deus nas nossas vidas mesmo, e sobretudo, no meio das adversidades e afrontas. Quem a escutava perguntava como é que ela e o marido haviam conseguido ultrapassar e lidar com isto. E aquela mãe explicava que só a fé a ajudara a viver com esta dor. Ela que, antes da morte dos filhos, não tinha fé, passara a tê-la. Mais, dizia que não tínhamos nada e sabia que os filhos que trouxera ao mundo eram mais de Deus que dela. No entanto, sempre que rezava, os filhos voltavam a ela. Voltavam com Deus. E assim, em Deus, continuava a ter muito dos filhos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A Olímpia e o milagre da vida"

terça-feira, setembro 06, 2022

O direito ao aborto

Ao contrário de algumas que o pensam mas não o conseguem dizer na minha frente, uma jovem da comunidade dizia-me abertamente que era a favor do direito ao aborto. A conversa não estava inflamada nem tinha a ver com quem ganhava ou tinha os melhores argumentos. Era uma conversa franca e aberta, como deveriam ser todas as conversas onde a Igreja se faz presente. A Joana dizia que as mulheres precisavam ser defendidas e tinham o direito de optar. Portanto, o foco da Joana eram as mulheres. As mesmas mulheres que, por exemplo e como lhe lembrei, morrem em embarcações para fugir de guerra, com a designação de refugiadas, e não se defendem com tanta veemência. Essas morrem esquecidas. Também a Joana dizia que muitos dos que defendem o não ao aborto são os mesmos que defendem o porte de armas ou a construção de muros entre países. E tem razão a Joana. Nisto concordámos. E embora o seu foco continuasse preso na mesma linha, abrira a possibilidade de falarmos da diferença entre legislações, direitos e bem comum ou bem das pessoas. A missão do legislador não é impor a moral, mas buscar o bem comum. Na verdade, descriminalizar o aborto não significa que haja direito de abortar. Assim como, por exemplo, descriminalizar a prostituição não significa que haja direito de se prostituir ou de procurar prostitutas. O que nos deveria preocupar não eram os direitos ou as leis que favorecem ou desfavorecem opções, mas as opções que fazemos. O nosso foco não deveria estar no bem particular de cada um, mas no bem comum, no bem da humanidade, no bem da criação. Pode parecer um exemplo despropositado, mas eu li-o algures. Uma coisa é a obrigação de não maltratar os animais e outra a de conceder direitos aos animais. No final da conversa nenhum dos dois mudou de opinião. Eu sou contra o aborto e ela a favor do direito de abortar. Proporcionou-se, porém, um diálogo muito interessante, que talvez tenha mudado o foco da Joana e, ao menos, me fez pensar que uma coisa é o direito ao aborto, direito que ninguém deveria ter, e outra a sua descriminalização. Uma coisa é o que a lei descriminaliza e outra um direito ético. Uma coisa são os interesses de cada um ou cada uma e o projecto da humanidade e da criação.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Devo o meu filho à minha mãe"

quinta-feira, setembro 01, 2022

Um concílio desconhecido

Já não é a primeira vez que falo do Concílio Vaticano II nas homilias. Os meus paroquianos hão-de saber, ao menos, que existiu algo tão importante que mudou substancialmente o rumo da Igreja, que passou a ser um pouco mais comunhão que elite, um pouco mais aberta ao mundo que fechada em si, entre outras tantas ‘revoluções’ que pediram uma Igreja mais humanizadora, aberta, participativa, corresponsável e missionária. 
Contudo, as senhoras da paróquia não sabiam o que isso era. Não sabemos nada dessas coisas dos concílios, diziam. Claro que não sabem, porque ainda somos fruto de uma Igreja que não ensinava senão a moral e os costumes. Somos fruto de uma Igreja de promessas, devoções, procissões e sacramentos para assinalar estados de vida. As homilias são, muitas vezes, o único momento de formação dos nossos cristãos. E são também, outras tantas muitas vezes, um espaço de palavras piedosas sem mais. Embora elas devam ser uma actualização da Palavra de Deus nas nossas vidas, não chega fazer homilias piedosas. É preciso ajudar as pessoas a entender a essência do cristianismo, pois só assim se consegue entende o que é ser cristão. Por isso perguntei a uma destas senhoras boas da paróquia, uma daquelas que a idade já marcara, se tinha memória da missa passar a ser dita em português, na língua vernácula. Ah isso, sim. E de o padre deixar de celebrar de costas para o povo. Ah isso também. Ora, essas mudanças, e muitas outras similares, foram operadas a partir deste concílio. Ah, então esse concílio deve ter sido uma coisa muito boa, senhor padre. Pois foi, pois foi.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja formatada"