terça-feira, abril 30, 2019

Relojoeiro do tempo [poema 213]

Gostava de brincar aos relógios. Coleccionava
horas a rodar sempre para o mesmo lado
O lado que ele não sabia onde começava e terminava
Onde o fim se iniciava, rodava e rodava

Os ponteiros das horas nunca estavam sós. Estavam com o lugar
Onde se perdiam se os buscassse mais cedo ou mais tarde
À noite era mais fácil, porque o medo vem mas adormece
E a rodar continua, como relógio, no sentido dos ponteiros

sábado, abril 27, 2019

Jesus trabalha na farmácia

Depois das férias da Páscoa, uma das nossas catequistas, por sinal religiosa consagrada, regressou aos encontros que, de vez em quando, fazia na creche, com os petizes que tinham entre 4 e 5 anos de idade. Costumava contar-lhe muitas histórias à volta da grande história de Jesus. Como vinha mais que a propósito, começou a falar-lhes sobre os acontecimentos vividos na Páscoa. Sobre a Morte e Ressurreição de Jesus. Alguns deles tinham participado na encenação da via-sacra e, pelo que a catequista percebera, haviam interiorizado grande parte dos momentos encenados. Aproveitou a ocasião para afirmar que Jesus dera a vida, de verdade, porque era muito nosso amigo e que ressuscitara, voltara a viver para nós sermos muito felizes um dia, com Ele, no céu. 
Mas nisto, um dos pequenitos levantou a mão e disse. Olha, Jesus não morreu de verdade. Foi só faz-de-conta, a fingir. A catequista ficou estarrecida. E a criança continuou. Não sei se sabes, mas Jesus é o senhor Fernando e ele está vivo a trabalhar na farmácia. Pois é, reponderam os outros em coro. Sabes, catequista, os maus puseram-lhe uma coisa na cabeça, com picos, bateram-lhe com umas coisas mas não fazia doer, porque outros batiam numa tábua para fazer barulho. Tinha muito sangue, faz de conta, porque era tinta. Ele caiu na rua, mas levantou-se. E quando o pregaram numa cruz, o senhor Fernando disse umas palavras e fez assim. Ao dizer isto, inclinou a cabecita. 
A catequista já não sabia bem o que dizer. Tinha sido, de certo modo, desarmada. Entretanto, pegou nas palavras que acabara de escutar e começou a fazer a destrinça entre Jesus verdadeiro e o senhor Fernando, seu fiel seguidor, que tinha, de facto, encarnado de forma excelente, a figura de Jesus. Dizia-me a catequista que achava que eles haviam percebido a diferença entre Jesus, que deu a vida de verdade, e que ressuscitou, voltou a viver, e o senhor Fernando, que foi só faz de conta, por isso não morreu e continua a trabalhar, na farmácia. Pelo menos ficaram a conhecer melhor como foi que Jesus deu a vida por nós.

quinta-feira, abril 25, 2019

Madalena [poema 212]

Entrou pela porta fechada, em pranto
Ajoelhou diante de mim como um sacrário
Banhou-me os pés, lembrou-me alguém
Ouviam-se vozes por dentro das vozes
O grito vinha de um local que não sei
Abraçava o que sobrava das minhas pernas
Mendigava que não lhe desse nada, de nada
Entrou e saiu, surgiu e partiu, como um fantasma
Nem odor, nem rumor, dela não ficou nada
nada de nada

domingo, abril 21, 2019

Jesus morreu e ressuscitou aqui na minha terra

Foi isto que uma criança disse um dia depois de termos encenado a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Como ela era uma criança pequenina, a mãe deve ter-lhe explicado algumas coisas. E foi assim que ela se acercou de mim e me informou, para o caso de eu não saber, que Jesus tinha morrido e ressuscitado na nossa terra.
Era bom, era. Era bom que Ele morresse e ressuscitasse em cada um de nós, nas nossas terras, nas nossas vidas… 

Aproveito para desejar a todos os meus visitantes e amigos uma Santa Páscoa.
Que Jesus ressuscite nas nossas terras, nas nossas comunidades e nas nossas vidas!

sexta-feira, abril 19, 2019

Iouda Iskariôth [poema 211]

Há um precipício enorme no meu nome
Um fingimento entre o beijo e a emboscada
Um nome que é e não é, nunca sei quem sou
Farsa, perfídia, logro, trapaça ou cilada
De tanto, mas tanto, me transformei em nada.

Vendi meu corpo às pessoas e às árvores
No balanço da vida pendurei quem fui
Poderia ter renascido, todavia me perdi
Entre os pedaços de nomes que possuo
Com um precipício de um tamanho enorme
Sem Ti

terça-feira, abril 16, 2019

Luto [poema 210]

Eu vi o luto por entre a terra
Os juncos ao seu redor a correr como ponteiros
Não era negro. Não era senão dor. Rebento

As carpideiras saltavam de junco em junco
A gosto do tempo. Seduzido como amigo
desconhecido

E apareceste tu, carregado de muita gente
Mundos que o mundo levou com o vento.
As carpideiras passaram, os juncos pararam,
Tudo se silenciou
Num momento

E o luto voou como se tivesse nascido
Para morrer no tempo

sábado, abril 13, 2019

A tradição da procissão de Páscoa

O padre tinha a sua saúde bastante debilitada, A idade avançada também não o auxiliava. Arrastava-se mais que andava. Mas era dia de Páscoa e, como a tradição manda, depois da missa tem de haver procissão. Dizem assim as vozes religiosas que estão habituadas desta maneira. Com as tradições. O padre, no final da missa, que presidiu a um custo notório, fez uma pergunta. Tendo em conta o estado débil em que se encontrava, perguntou a quem o ouvia na assembleia se achavam que devia fazer a procissão ou não. Contou-me quem ficou chocado nesse momento, já lá vão uma série de anos, porque ninguém abriu a boca. Ninguém fora capaz de dizer que, para cuidar da sua saúde, melhor seria não se fazer a procissão. Como ninguém abrira a boca, o padre resignou-se e respondeu por eles. Assim sendo, faz-se a procissão, mesmo que não resista a meio dela. Continuou sem resposta. Fez-se a procissão. O padre, graças a Deus, não caiu. Poucos meses depois o padre faleceu. Não há causa efeito, como é óbvio. Mas há uma Páscoa que não se percebe muito bem se foi Páscoa se foi apenas mais uma tradição.

quarta-feira, abril 10, 2019

A Rosário, apertada pela vida

Só se lhe adivinhavam os olhos, porque brilhavam. De resto, estava tão agasalhada, tão coberta, que nada mais se via. Reparei que trazia um cachecol, um xaile, uma echarpe, umas coisas por cima das outras, a apertar, que o frio aperta. Vinha confessar-se, que o medo também aperta. Senhor prior, queria confessar-me. Não quero morrer em pecado. Quase todas as semanas, ou semana sim semana não, tenho de confessar a Rosário que tem medo de morrer em pecado. Desta vez, e antes de aceder ao seu pedido, quis saber porque fazia aquilo daquela maneira, aflita, apertada pelos andrajos e pela vida. Respondeu de chofre que tinha medo do castigo de Deus. A Rosário deve ser daquelas pessoas que passa o tempo da homilia a rezar e não ouve as minhas pregações que falam do Amor de Deus que não castiga. Ou então é daquelas que o tempo marcou por uma enformação exagerada do pecado, e por mais que ouça falar do Amor de Deus, apenas o sente quando se confessa e se livra de castigos. 
E mesmo antes de o fazer já estava a dizer. Não quero morrer em pecado, senhor prior. E era assim que vinha confessar-se porque a saúde já não é a mesma. Porque não sabe o dia e a hora e tem de estar confessada. Mesmo que o pecado sejam apenas umas pequenas falhas de atenção ou lucidez. A Rosário tem sempre de se confessar. Vive apertada pelos andrajos e pela vida. Vive apertada pelo medo de que Deus não se lembre dela quando, afinal, Deus tem o amor todo para dar a cada um de nós, como se nós fossemos tudo para ele.

sexta-feira, abril 05, 2019

Anjos caídos [poema 209]

Vieram do céu, em magotes, anjos sem véu
gotas de chuva dourada, estrelas candentes
cheias de céu

Vieram renascer, aqui pernoitar, no mundo
Nos seus mil braços, em mil e um pedaços

Chegaram, viveram, moraram
Sofreram, no mundo acordaram
pernoitaram
Na morte adormeceram

Subiram, voaram e para o céu voltaram
Como anjos caídos
do Céu

terça-feira, abril 02, 2019

A Adelaide prefere abraçar Deus

Não há muitas palavras que consigam traduzir como fiquei depois de escutar a Adelaide, que é uma senhora com alguma idade, reformada do ensino, viúva, mãe e avó. É uma cristã autêntica. Pelo menos no sentido em que procura a autenticidade da fé. 
No meio de um diálogo interessante e discreto, contou-me que, às vezes, perguntando-se a si mesma se tivesse que escolher entre abraçar Deus ou os filhos, ela escolhia abraçar Deus. Parece uma afirmação crua. Meio fanática. Meio despropositada. Mas eu sei que a sua afirmação é verdadeira. Tal como sei que, na terra, o seu amor maior são os filhos. Nunca se cansa de falar deles e com eles, apesar das distâncias. 
Por isso fiquei sem palavras. Fiquei sem chão. Não sei se algum dia eu conseguiria fazer tamanha afirmação de amor!