sexta-feira, outubro 31, 2014

Gostei de ver o Coimbra

Avistei-o do altar. Destacava-se pela altura acima da média e pela tez morena. Estava no terceiro ou quarto banco. Intrigou-me a postura, o entoar dos cânticos com o coro, a forma de se ajoelhar e de estar atento às leituras. Como Deus não me dotou de larga visão, desenhei-lhe apenas estes gestos e atitudes que também se destacavam dos outros participantes na Eucaristia. Só quando a visão e a proximidade me permitiram desenhar mais que isso, descobri que era o Coimbra, o Coimbra que se ordenara no mesmo dia que eu e que, após ter abandonado o sacerdócio com uma filha no colo e uma esposa no abraço, já não via há anos. Viera porque era missa de sétimo dia de uma pessoa que lhe era querida. No final veio à sacristia dar-me um abraço. Gostei tanto de ver o Coimbra! Gostei sobretudo de perceber que se mantém o mesmo. Que se afastou do sacerdócio, mas não de Deus e da Igreja. Que a sua fé genuína continua lá. Lá onde Deus e homem se encontram, no coração do Coimbra.
Apetecia-me dizer Afinal um dia padre, padre todos os dias. Mas prefiro dizer que gostei muito de ver assim o Coimbra.

terça-feira, outubro 28, 2014

ponto [poema 28]

Na rua da minha cidade
Existe um ponto
onde ninguém ainda passou
Não tem estrada,
Não tem escada,
Não tem nada

É só um ponto
Mais nada

sábado, outubro 25, 2014

Não há caminhos certos

Não há caminhos certos. O único certo, a única certeza é que se chega lá se fizermos caminho. Deus tem estas coisas, a que não devia chamar coisa, de deixar que Lhe cheguem por diferentes caminhos, mesmo os mais inóspitos. Os mais desapreciados.
A Catarina chegou a Ele na morte do avô. O Pedro chegou a Ele quando descobriu que não tinha grande valor. A Dina chegou a Ele no meio da doença. O António chegou a Ele no meio de uma confissão que depois se tornou oração. O Lucas chegou a Ele porque estava zangado com Ele. O paradoxo é que às vezes quanto mais nos afastamos Dele, mais próximo Lhe ficamos. Deus tem esta coisa de esperar que cada um faça o seu caminho.

quinta-feira, outubro 23, 2014

Eu desejava que os padres fossem cada vez mais... [7]

Com esta nova sondagem, a sétima desta saga, encerramos a primeira parte deste pequeno exercício de reflexão sobre as características ou virtudes que gostaríamos de ver mais nos sacerdotes de hoje. Como o número 7 é simbolicamente apontado como o número da perfeição, lançamos hoje, pela sétima vez, mais seis opções possíveis.
Recordamos ainda as anteriores opções mais votadas: "autenticos", "acolhedores", "simples", “pastores”, “evangelizadores” e "íntegros", sendo que esta última apenas se distanciou 1% da segunda, com 33%, "coerentes".
Deixamos os resultados da última sondagem.

terça-feira, outubro 21, 2014

Sou Pão [poema 27]

Sou Pão que se oferece
Para que tu vivas.

Sou Pão que se despedaça
Para que tu construas.

Sou Pão que se parte
Para que tu unas.

Sou Pão, e posso
porém, deixar de sê-lo,
Porque não quero
Senão que tu sejas

sábado, outubro 18, 2014

Os pecados que são sempre os mesmos

Queria confessar-se. Porém, envergonhada, disse-me que trazia os mesmos pecados de sempre. Afinal são sempre os mesmos, padre. Isso, além de a irritar, cansava-a. Por isso nem sabia se devia confessar-se. Ou se era digna de usar a confissão para confessar pecados que eram sempre os mesmos. É que a confissão exige arrependimento, e arrependimento exige o desejo de mudar. Pelos vistos, ela não mudava.
Sentara-se a meu lado, resignada sem querer resignar-se. Ajude-me, senhor padre. O pedido era sincero. Muito sincero. Diga-me lá, disse eu, se nunca, mas nunca mesmo, conseguiu evitar algumas ocasiões desses pecados. Isso sim, senhor padre. Imagine então que de dez vezes que era para cometer os tais pecados que são sempre os mesmos, conseguiu evitar cometê-los duas vezes. O mesmo é dizer que só os cometeu oito vezes. Ora nós também devemos valorizar as vezes que fomos capazes de não cometer os tais pecados que são sempre os mesmos. Foram só duas vezes. Mas foram duas e não foram uma ou nenhuma. Assim, na verdade, crescemos e o perdão de Deus é mais agradável em nós. Deus sabe que foram oito, mas podiam ser dez. Ele sabe que foi fraca oito vezes, mas que também foi forte duas.
Porque nos havemos de amarrar aos pecados que cometemos e não às ocasiões em que fomos mais fortes que eles! Nunca tinha pensado nisto e assim, disse-me. Já aprendi uma coisa nova hoje. E melhor que isso, no final levantou-se mais feliz da cadeira das confissões e dos pecados.

quinta-feira, outubro 16, 2014

Ficar [poema 26]

Fica.
Fica sem mais palavras que o ficar.

Desnuda-te.
Desnuda-te sem mais roupas que o teu ser.

Esquece.
Esquece o que trazes no teu silêncio

Deixa-Me falar,
Tão só escuta.
Deixarás de ser apenas tu:
serás Eu em ti

segunda-feira, outubro 13, 2014

Deus pouco omnipotente

Ontem, numa mesa de um restaurante, assisti a uma cena que não sei muito bem descrever. Aquilo lembrava um tribunal onde era permitido comer, rir, falar alto, gesticular com os talheres e os punhos em riste. A conversa era audível em todo o restaurante. Pelo menos pareceu-me. Eram quase todos advogados de acusação. Falavam do suposto Deus dos católicos que era uma treta, uma história bem ou mal inventada por um grupinho de gajos de vestido preto até aos pés com interesses económicos. O que me custou mais a engolir não foi “os gajos de preto”. Foi a forma como falavam de Deus. Eu comia um carapau grelhado e a espinha ia-se-me entalando na garganta, o que fez nascer em mim um desejo secreto que já tive outras tantas vezes. Deus havia de intervir. Deus havia de se mostrar a esta gente. Mostrar o seu poder. Mostrar a sua omnipotência para que todos acreditassem. Mas Ele ainda teima em fazer as Suas grandes obras no meio de tanta simplicidade, pequenez e outras vezes até fragilidade. Valha-nos Deus. Porque não dá uma ensaboadela ou uma ensinadela a esta gentinha que usa estes temas para comer um almoço opíparo e divertir-se à custa de assuntos sérios! Já me ocorreu que Deus podia perfeitamente enviar um missilzinho à cabeça de alguns para lhes organizar os miolos. Bem, estou a exagerar, como é óbvio. Não era preciso um míssil. Bastavam uns pozinhos miraculosos. Quer-me parecer que Ele já deve ter usado este remédio e que também não funcionou.
Este Deus não é como os poderosos da terra. Ele, que tudo pode, age com um poder tão pequenino, tão à maneira dos mais pequeninos.
E é assim o Deus da minha fragilidade, da minha pequenez, da minha simplicidade. E se assim não fosse, era apenas o Deus que admiro. O Deus que me faria acreditar. Mas não seria o Deus que amo. Ainda bem que Deus é tão assim.

sexta-feira, outubro 10, 2014

um do outro [poema 25]

Pergunto assim:
Que faço aqui
Diante de Ti?

Respondo enfim:
Que fazes aí
Diante de mim?

terça-feira, outubro 07, 2014

mais mãe

Onde estás? Sei onde estavas há treze anos, mas onde estás agora, passado tanto tempo e que para mim parece pouco? Na minha cabeça? No meu coração? No meu que fazer? Na minha saudade? Na minha lágrima?
Onde está o teu sorriso que revia no meu? Onde estão as tuas mãos que teciam como a melhor tecedeira do meu reino? Onde estão as tuas palavras sábias para o meu caminho incerto? Onde estão as tuas orações que eram por mim e por tudo o que nem sei? Onde está o teu amor que eu sentia tão mas tão enorme e tão mas tão próximo? Onde está a mãe que faz falta a qualquer filho?
Sei onde estavas há treze anos, mas o tempo passa e aquilo que sabia há treze anos não sei como sabê-lo hoje. As perguntas que faço mais não são que desejos. Ou presenças. Talvez sejam presenças daquilo que tenho de ti em mim. Mas não deixam de ser perguntas de quem te queria ter mais presente. Embora no céu, embora minha ainda mãe, eu quisera ter-te mais minha, mais hoje, mais mãe.

quinta-feira, outubro 02, 2014

nulidade do matrimónio

Tenho um amigo que andou quase dez anos a tentar anular um casamento que deveras nunca lhe existiu. Eu disse de propósito a palavra “anular” porque era assim que ele pensava antes de se dar conta que “anular” era dizer que queria acabar com algo que existira. Afinal não existira. Por isso passou a pedir a “nulidade” do seu casamento. A sua vida tinha sido um embuste. Entretanto, descobrira a fé e Deus. Queria começar tudo de novo. Queria participar com todas as letras nos sacramentos, mormente no que o fazia ser parte de uma comunidade concreta e viva, a Eucaristia. Não podia. Durante anos, em tribunais eclesiásticos, juntou forças com desânimos, vontades com paciências. Pedia a nulidade do matrimónio. Era um sacramento que nunca fora. Um casamento que nunca fora. Tem filhos desse tempo. Não se arrepende. Da vida nunca nos devemos arrepender. Mas queria a verdade. Sobretudo a verdade da fé. A Verdade que descobrira em Deus. A verdade que lhe era vedada por uma lei que até fazia o seu sentido. Sim, ele sabia que fazia sentido. Só não sabia que o sentido de uma lei estava acima da vida e da fé. Hoje, num autêntico casamento, é feliz e aproveita o tempo e a voz que possui para dizer que agora não só tem um casamento autêntico como tem uma fé preenchida. Conheço mais casos de gente que a meio do seu percurso de vida e de fé se acharam, muitas vezes sem culpa medida, com um Deus que lhes é próximo mas que lhes pede uma certa distância. Sinceramente, como padre, como pastor, como pároco, como amigo, como crente, eu acho que devemos dizer sempre que o melhor caminho para fazer o caminho é aquele que não tem buracos na estrada, que tem um asfalto de topo, que não tem portagens. Mas quem percebe de carros sabe que nem sempre o carro está como novo. E quem percebe de condução sabe que nem sempre o condutor está em condições. Há cansaços, há sonos, há adrenalinas, há distrações. E assim os caminhos para chegar ao outro lado nem sempre são os que vêm no GPS. Como fazer? Fazemos um stop forçado na estrada para impedir que se chegue ao destino, ou ajudamos a pessoa que se enganou no caminho a voltar ao caminho?