quinta-feira, março 30, 2023

a cidade que ri [poema 363]

a cidade rodeava-me como um tecido mal costurado, 
cheio de folhos, rendas e luzes a pestanejar 
tanto de dia como de noite, multicolor,
a mesma forma de ser muitas pessoas 
 
o cimento crescia no meio da gente 
e os pensamentos aglomeravam-se, uns em cima 
dos outros, como janelas mal talhadas, 
escancaradas, para que o fumo das corridas 
penetrasse para dentro da cidade, 
os tecidos das pessoas estendidas a secar…

domingo, março 26, 2023

Não sou padre para fazer a minha vontade, mas a vontade de Deus.

Quando alguém, há dias, me perguntou, por palavras parecidas com estas, porque é que ainda era padre quando tanta gente está constantemente contra os padres, quando estes vivem em suspeição constante, têm de humilhar-se a um celibato e a um constante confronto com os outros que só se abeiram da Igreja para consumir sacramentos sem verdade de coração, eu não soube responder senão que não era padre para fazer a minha vontade, mas a vontade de Deus. Todos nós queremos, e eu não sou diferente, que Deus faça a nossa vontade. Mas quem se entrega a Deus, fá-lo não para que se faça a sua própria vontade, mas a de Deus. Mesmo quando não entendemos os Seus desígnios. Mesmo quando não obtemos respostas aos porquês e temos de carregar uma cruz enorme e pesada que, mesmo assim, nunca se poderá comparar com a de Jesus. Não sou padre para fazer a minha vontade, mas a vontade de Deus. E se a vontade de Deus for diferente da minha, que assim seja. Porque gostava que a minha vontade fosse sempre a vontade de Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"

quinta-feira, março 23, 2023

Visão de Fé

No domingo passado, a mãe não teve possibilidade de ir à missa, mas o filho de sete anos acompanhou o pai, e ficaram no terceiro ou quarto banco da igreja, como é costume. O Mateus tem um modo de se dar com Deus que encanta quem ouve as histórias que a mãe conta. A missa era uma missa normal e a homilia era uma homilia normal que actualizava o relato da cura do cego de nascença nas nossas vidas. Chegado a casa, a mãe, para ver se ele estivera atento, perguntou-lhe de que tratava o evangelho. O Mateus, com as mãos na cabeça, respondeu prontamente: "nem vais acreditar. Jesus deu visão a um senhor cego, mas não foi só visão de ver. Foi também visão de Fé". 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Chama-se Jesus"

terça-feira, março 21, 2023

comprimido [poema 362]

vou-te dizer o que senti ontem quando me apertaste o corpo 
e hoje, quando amanhã se voltar a repetir esse aperto

sinto que nunca serei pequeno o suficiente
para te encontrar
 
dia Mundial da Poesia 2023

sexta-feira, março 17, 2023

os problemas

O João tinha um problema e estava obcecado com ele. Deitava-se e levantava-se como se deitava, com esse problema. Que ele dormia pouco, porque o problema não dormia nele. Em conclusão, vivia pouco mais que esse problema. De facto, quando um problema nos preocupa, parece que a nossa vida é só esse problema. O problema acaba tomando conta de nós e pode anular-nos. Até esquecemos que muitos problemas já passaram nas nossas vidas e deixaram de ser problemas ou, pelo menos, deixaram de ser o problema. Assim como esquecemos os problemas que os outros têm, muitas vezes, bem maiores e mais dolorosos. João, olha que Deus não nos criou para vivermos os problemas, mas para vivermos com eles. Eles fazem parte da nossa condição humana, mas não nos impedem de estar vivos. E Deus não dorme. Mesmo que pareça não nos resolver o problema, dá-nos a mão e ajuda-nos a subir um degrau de cada vez, pois só assim se sobem as escadas. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A palavra difícil"

segunda-feira, março 13, 2023

A senhora de papelão

Caminhavam numa rua de uma cidade grande, mãe e filha de cinco anos, quando tiveram de passar junto a uma senhora deitada no passeio, embrulhada por uns papelões de um bege sujo pelo uso, mal-vestida, mal-arranjada, a chorar. Estava frio. A mãe e a menina iam com pressa, porque tinham uma consulta marcada no médico e não podiam atrasar-se, mas a filha não retirava os olhos da senhora dos papelões. Uns bons metros depois, largou a mão da mãe, pôs-se em frente dela, obrigando-a a parar, e perguntou porque é que a senhora estava a chorar. A mãe tentou explicar-lhe que ela deveria estar a chorar por causa da dificuldade da vida, porque não deveria ter casa para se abrigar do frio, cama onde dormir e prato onde comer. Como as crianças destas idades nunca se contentam com uma pergunta, a pequena disparou de imediato: Então porque é que tu não a ajudaste? A mãe ficou desarmada por fora e sobretudo por dentro, deixando que as lágrimas da senhora de papelão chegassem ao seu rosto. Com a maior honestidade possível, baixou-se e explicou à filha que tinha errado muito ao não ajudá-la. A pequena limpou-lhe algumas lágrimas e abraçou-a. Abraçaram-se. E aquela mãe, ainda hoje, quando conta esta pequena história, chora como a senhora de papelão. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O Carlos que é meu sacristão"

sábado, março 11, 2023

o nevoeiro que ri [poema 361]

e o nevoeiro ri-se
na vontade cinzenta de escurecer,
 
ri-se do mundo que vai fazer...
desaparecer
 
ri-se de tudo o que escurece
e desaparece,
para que apenas ele se veja, 
por entre as réstias de um sol escondido,
de uma giesta que outrora era uma árvore,
de uma levada que deixou de ser um rio
e um punhado de terra que fora um caminho,
de uma parede que um dia foi uma casa
ou uma cruz que já foi uma grande catedral
 
ri-se como nevoeiro que quer ser...
eternamente nevoeiro 

terça-feira, março 07, 2023

A nota sem dono

Era seu costume levar sempre qualquer coisa ao mendigo que estava sentado no seu posto de abrigo, ao sair da faculdade. Uma peça de fruto, um chocolate, uma moeda, uma notita. Chegou a levar-lhe um maço de cigarros, porque ele fumava. Ao princípio achou estranho que um mendigo fumasse quando tinha necessidade de tantas outras coisas. Mas depois foi percebendo que era assim que ele gastava a vida, porque não tinha outro modo de a gastar. E aceitou-o como ele era. Foi a descoberta mais bonita que fez da mendicidade. Não julgar quem é mendigo. Tornaram-se amigos, ao ponto do mendigo dizer bom dia e boa tarde sempre que se viam, e ao ponto deste meu colega padre o chamar do meu amigo mendigo. Estas coisas não se contam e ele só mas contou porque, há dias, quando se aproximava do transporte para casa, encontrou uma nota de dez euros no chão. Pegou nela, percebeu que não era possível encontrar-lhe o dono. E no outro dia, de manhã cedo, antes de entrar na faculdade, depois do bom dia habitual e de um trocar de pequenas palavras, arranjou um novo dono para a nota, o seu amigo mendigo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quem olha para dentro, desespera"

sexta-feira, março 03, 2023

o obrigado

Passara um ano desde que, como me recordou, estivera a desabafar comigo por causa de um grande problema que, na altura, estava a viver. Na ocasião, entrara na sacristia, acompanhada das lágrimas, para uma palavra que se transformou em muitas palavras. Entrara com o peso da dor e precisava dividi-lo com alguém. Hoje regressara, porque viera a uma missa pela intenção especial de uma amiga que falecera, entretanto. Vinha de braço dado com a filha, a dor que ela precisara desabafar há um ano. Cruzámo-nos no final da missa e, já na rua, veio ao meu encalço para perguntar se me recordava de há um ano a ter acolhido na dor. Naturalmente que eu já não lembrava pormenores, mas ela lembrava cada atenção, cada olhar, cada palavra, cada segundo que eu investira nela. E por isso, dizia, venho agradecer-lhe. Ainda não tinha tido oportunidade de o fazer. E insistia. Padre, tenho tanto que lhe agradecer. A filha interrompeu-a, para concordar com ela. Respondi que eu era somente um instrumento de Deus. Que lhe agradecesse a Ele. Porque era Ele que fazia tudo. É Ele que faz tudo. Nós somos apenas seus instrumentos. Apesar de até concordarem comigo, ambas referiram que então eu era um bom instrumento de Deus. E repetiram. Obrigada. Foi bom ouvi-lo nestes tempos constrangedores e confrangedores. Obrigado. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Padre com fé"