segunda-feira, março 29, 2021

O drama de ser mortal

Era uma vez um rei que estava à beira da morte por causa de uma doença incurável. Já estava nas últimas. Porém, cada vez que a rainha lhe dizia que ia morrer, ele afirmava que não. Quando o príncipe insistia, ele insistia que não. Quando, por fim, o médico lhe explicava que ia morrer, ele persistia no seu rotundo Não. Que havia de durar mais quarenta anos, porque ele era o rei e era ele quem decidia. 
Olhamos para a personagem principal desta pequena história, o rei, e o mais provável é rirmo-nos da sua tolice. Mas esta atitude, com mais ou menos obviedade, é uma atitude recorrente nas nossas vidas. Também nós vivemos como se a nossa vida e a nossa morte fossem decisões exclusivamente pessoais. E alimentamos uma esperança vazia de que há-de ser como queremos que seja. Por isso, diante do sofrimento, entusiasmamo-nos uns aos outros com expressões do tipo “vai correr tudo bem”, “deus vai ajudar”, “a esperança é a última a morrer”. 
O drama humano começa quando tomamos consciência de que somos e não somos. A consciência de que não podemos decidir sobre nós. Sabemos que a morte nos vai encontrar, mas não sabemos como será nem como a conseguiremos afrontar. O que podemos fazer é ir configurando o nosso ser mortal, o nosso ser limitado. É preciso aprender a ser mortais. Que é quase o mesmo que aprender a amar e a ser amado. A dar consistência à vida que temos. 
Devemos aprender com Cristo a viver a mortalidade. E aprender a viver a mortalidade com Cristo é reconhecer a nossa vida, o que a sustém, o que ela vale. Deste-me esta vida. Não a vida, mas esta vida. E dizê-lo com gratidão, num exercício de amor. E isto é que é morrer com Cristo. Aprender a ser mortal, a ser limitado, é aprender a amar. Nunca somos da vida, mas participamos dela. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "É a vida
 
desejo a todos uma Semana Santa a olhar para dentro e para fora de nós!

sábado, março 27, 2021

limiar [poema 308]

No limiar da hora, agora entendo 
O corpo desnudado de quem me vê 
Sem-abrigo ou sem nada, penso que sei 
quem é. 
 
Na hora tardia, quando o rosto cai 
Sobre o corpo, e inspira a noite 
O vento do espírito levará à vida 
No chegar da hora 
Entendo que é para poder ser 
Mais do que tem sido 
Agora

quarta-feira, março 24, 2021

Estou com um coração nas mãos

Estava aflita. Era o adjectivo mais adequado ao seu estado de vida e de saúde. Ainda não sabia o que tinha. Andava a fazer exames. Já fizera vários. Mas a ansiedade e a dor não paravam. Deixava que uma e outra se transformassem em aflição. A doença da aflição. Senhor padre. Estou com o coração nas mãos. Aqui está o principal sintoma da aflição! Ter o coração nas mãos. 
E quantas vezes o coração nos vem parar às mãos, sem sabermos o que fazer com ele! Nestas circunstâncias, a melhor solução é, a meu ver, pedir o apoio de outras mãos. Na verdade, todas as coisas pesadas se tornam menos pesadas se forem seguras ou levantadas por várias mãos. Tudo o que nos pesa pode ter menos peso quando procuramos outras mãos. Dar as mãos é quase como dar o coração. E quando se partilha o coração, outros corações ganham vida! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me uma pecadora"

segunda-feira, março 22, 2021

há festa [poema 307]

Convoco as flores do quintal para um jantar, e num frenesim 
Seguem-nas as folhas, mesmo as caídas dentro de mim 
 
Fazemos figuras de mimos a correr, ou máscaras para nos cobrir 
Estalamos dedos para que dancem as meninas a florir 
 
Sinto os sinos a rebate, como se fosse sábado santo 
Porém, no quintal, todos parecem chorar em verde pranto 
 
Se escutasse o que a vida diz, convocava festas dia a dia 
Mesmo que não houvessem flores, era o que eu queria…

sexta-feira, março 19, 2021

Sou muito mais a Sofia

A Sofia está casada com o seu marido há cerca de vinte anos, os anos suficientes para saber o que é o matrimónio e a família, com os seus lados positivos e os seus lados mais frágeis. Os anos suficientes para falar deles com o peso da experiência vivida e sentida. Vem esta descrição a propósito da conversa que encetámos há dias, com uns amigos, sobre o modo de viver em casal. Alguém referia, sem mais, que nenhum dos cônjuges podia perder a sua personalidade. Outro interveniente opinava que nenhum dos dois deveria perder a sua personalidade, mas que deveriam necessariamente ajustar-se em casal, fazer conceções, readaptações de vida e de personalidade. Ao menos para evitar uma forma de amar egocêntrica e indiferente. E às tantas, a Sofia interrompeu-nos e disse que, no que toca a personalidade, ela era muito mais a Sofia com o Fernando, seu marido. Assim, sem mais. Que ela era muito mais a Sofia com o Fernando. E todos nos calámos a olhar a beleza do que ela havia dito. Pelo menos eu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "José, de personagem secundária a modelo principal

... no início do Ano da Família Amoris Laetitia

terça-feira, março 16, 2021

Sociedade irritada VI

As redes sociais expõem, mesmo sem os seus utilizadores darem conta, as fragilidades, a ignorância, a inoperância das pessoas e, muitas vezes, ainda projecta o que de pior têm. O Papa diz mais ou menos isto na encíclica Fratelli Tutti, mas eu também penso deste modo quando penso nesta sociedade que tem criado redes de relações superficiais a quase todos os níveis. Os erros ortográficos dão conta da ignorância de muitos. As opiniões sem argumentos ou com argumentos falaciosos dão conta do desconhecimento e da incapacidade de reflectir de muitos. Os ataques verbais escritos dão conta do íntimo de muitos. As críticas constantes do que este e aquele deviam fazer dão conta da acção de bancada de muitos. Com pena, vivemos nesta virtualidade, sem dar conta que, na maioria das vezes e dos casos, o que mostramos de nós não é o melhor. 
 

sexta-feira, março 12, 2021

lar [poema 306]

Meu pai era emigrante ainda antes de eu nascer 
A vida negra das mãos era a mesma dos escravos, sem o ser 
Uma nesga do que havia no meu coração, ainda antes 
De querer 
 
Minha mãe trouxe-me ao mundo muito antes de me trazer 
E a ela devo quem o mundo me quis ensinar 
A ser 
 
Minha família conto-a pelos dedos, como contas do rosário 
Que passo, a rezar, para nelas 
Me rever 
 
Sou uma casa de pedras, um lar como gostava de dizer 
No meio das palavras que guardarei sempre aqui 
Enquanto viver

quarta-feira, março 10, 2021

A culpa do pecado é do perdão de Deus

A culpa do pecado é do perdão de Deus. Sei que a afirmação pode não fazer sentido. Aliás pensar que o perdão de Deus possa ser o culpado dos nossos pecados, parece descabido e despropositado. E informo que não li isto em nenhum lado. Li-o, no meu coração, numa daquelas meditações em que a gente se põe a deambular. Talvez até seja mesmo uma expressão excessiva se a fizer como se todos pecassem mais à vontade por se saberem continuamente perdoados por uma tão grande misericórdia como é a misericórdia de Deus. Se calhar é apenas a minha preciosa desculpa diante de Deus. 
Eu sei que Ele está sempre pronto a perdoar e a fazer-me sentir o Seu perdão. Por ter esta certeza tão certa, não será que fico à espera que Deus faça tudo por mim? Que faça aquilo que não me apetece fazer? Talvez seja essa a maior desculpa para não enfrentarmos os nossos pecados. Ou dito de outra forma, creio que diante do pecado, para além de valorizarmos o perdão de Deus, deveríamos rever também o nosso amor a Deus e a verdade da nossa fidelidade. Deus perdoa sem nós o merecermos. Mas também devemos viver no Seu Amor e procurar a sua Graça. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A rixa"

segunda-feira, março 08, 2021

sem nome [poema 305]

Fiz o repouso da seara nos teus olhos 
Brilhantes 
Fiz a meia de lã dobada na casa 
Grande 
Carreguei-a na barca de água que chovera na 
Fonte 
No caminho calcei todas as pedras para chegar ao mais alto 
De ti

sábado, março 06, 2021

Os padres auto-dependentes

Nós, padres, somos, tal como qualquer indivíduo, fruto de uma sociedade que fabrica auto-dependentes. Por isso nos tornamos auto-dependentes, mesmo sem querer. Mesmo quando procuramos um ombro amigo, um auxílio, uma força nos outros, buscamo-lo para a nossa auto-dependencia. Mesmo quando nos esforçamos por aparentar aos outros, fazêmo-lo na busca da nossa segurança… quando tudo depende de Deus e é Ele a verdadeira segurança das nossas vidas. Por isso quando não alcançamos o sucesso pastoral almejado, ficamos frustrados, porque a nossa auto-dependencia nos mostra que a maioria das coisas nos escapam e não são como sonhámos. Às vezes esquecemos que devemos semear, outros regarão e que só Deus faz crescer a planta. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Há dias assim"

quarta-feira, março 03, 2021

as cinzas [poema 304]

A mulher desfez-se em cinzas, daquelas cinzas que voam 
Não disse adeus, mas agora despede-se nos meus olhos 
A voar com ela 
 
As palavras fecharam-se no meio da nuvem de pó 
E nesse silêncio falaram como se não fossem delas 
Os sons que vemos partir 
 
Estas mulheres que se tornam cinzas são as nossas mães 
As asas cinzentas que são todas as cores a esvoaçar
Dentro de nós

São as vidas que do nada vêm e no coração de nada ficam 
Como labareda sempre a arder 
 
à minha tia que faleceu com covid