sábado, agosto 27, 2016

O padre não é bom da cabeça

O senhor estava ao telefone a convidar um amigo para a festa do seu filho que ia fazer a primeira comunhão no dia tal. Eu estava numa mesa ao lado à espera que me entregassem o carro após a mudança do vidro que se partira vá-se lá saber como. O senhor esperava também o seu carro por motivo idêntico, quando, para ocupar o tempo, efectuou a chamada que ouvi como se fosse para mim. O que ele não sabia é que eu era padre e que o padre a que se havia de referir o conhecia bastante bem. 
O padre não é bom da cabeça, dizia. Olha que ele exige três anos para fazer a primeira comunhão. São de facto três os anos estipulados pela Conferência episcopal portuguesa e pelo itinerário da Catequese. Para mostrar ainda mais a força da decisão que tomara, queixava-se que o padre, que não é bom da cabeça, dizia que com mais de três faltas o miúdo seria retido na catequese. Onde já se viu! Exclamava. 
O padre é doido por exigir estas coisas. E depois encontrou uma catequista ali ao lado, pareceu-me que numa paróquia bem ao lado, que aceitou o miúdo para fazer a primeira comunhão, e em dois meses vai conseguir fazer catequese de três anos. Grande catequista. E ainda diz o senhor que o filho, afinal, até gosta daquilo, e já sabe tudo. Como se fosse uma questão de saber. 
Estava o filho contente e o pai mais que contente, porque afinal o seu filho querido ia fazer uma festa linda. Aquela festa que provavelmente irá fazer poucas vezes na vida. Porque comungar deveria ser sempre uma festa. E vai ter casa cheia com almoço bem melhorado. 
Tal pai, tal catequista, que nunca devem ter ouvido a Jesus dizer que se o quisessem seguir, até teriam de deixar pai e mãe!

terça-feira, agosto 23, 2016

Um casamento que se chama civil

Por obrigações de sangue, participei há poucos dias naquilo que se chama um casamento civil. Uma experiência inolvidável. Uma tentativa de fazer de um contrato uma cerimónia. Foi o que me pareceu e, durante os largos minutos em que a senhora primeira ajudante de conservadora lia os números da lei, o meu coração palpitava de inconformação. Reconheço que desconhecia esses números da lei e desconhecia que apenas utilizavam palavras como contrato, deveres e direitos. Um dos meus cunhados e uma das minhas irmãs, que me observavam, comentaram depois que até parecia que me saía fumo da cabeça, tal seria o meu desconforto. Era o desconforto de quem tem claro que o casamento é um matrimónio, e que mais do que um contrato é uma aliança. Não tenho nada contra o que se chama de casamento civil. E sei que em muitas circunstancias, como era o caso, é a única solução possível para quem quer manifestar o amor como um compromisso para toda a vida. Foi assim que quis entender e viver o momento. Mas não consegui abstrair-me daquilo que é a aliança de amor entre duas pessoas que se amam e dão este passo. Não consegui abstrair-me do facto de a palavra amor não ter sido utilizada em nenhum momento da pretensa cerimónia. Não consegui distanciar-me daquilo que sou, sacerdote. Não consegui, e por isso no final perdi a vergonha e pedi autorização aos noivos, o que me foi concedido, para dizer umas palavras. Peguei no microfone e expressei o que sentia, ao mesmo tempo dizendo que desejava que aquele momento não fosse apenas um contrato, mas uma aliança, e que embora não tivessem podido fazê-lo diante de Deus, que Deus estivesse com eles o resto das suas vidas como creio que estará.

domingo, agosto 21, 2016

as duas formigas [poema 112]

Na mesma história habitavam duas formigas
Uma cantante, outra trabalhadeira fatigante
Duas pequenas donas de terra e de lugar

Na mesma história duraram a emigrar
Presas ao canto, ao trabalho e ao lugar
Duas pequenas formigas na história de encantar

Na mesma casa se lembraram de casar
Tiveram filhos e filhos e netos a acasalar
Duas pequenas vidas que hoje vão a enterrar

Acabara-se a história, acabou-se o lugar
Já não tenho palavras para vos escrever
Duas pequenas criaturas de Deus em ser

Que em mim eu deixei nascer
Porque de tão pequenas eu não vi crescer

quinta-feira, agosto 18, 2016

Fazer caminho

É mãe de três filhos. Diz-me que é maravilhoso o dom que Deus lhe deu de ter filhos. São de facto uma alegria sem tamanho, mas também um desafio diário. Neste desafio, há dias em que não se sente à altura de tamanha responsabilidade. E outros dias há em que a sua vida familiar entra em conflito com a sua vida na Igreja, na comunidade cristã, e isso deixa-a confusa e angustiada. Vai tentando sempre ver o lado positivo, se bem que às vezes não seja muito fácil e se sinta um pouco perdida no caminho. Mas vai-se caminhando, diz. Di-lo de uma forma que parece não ver mais que a dificuldade. 
Não me pedia uma resposta, nem conforto, nem nada que se parecesse, pois estava convencida de que era assim que tinha de ser. Porém, quando lhe disse que se não estivesse perdida de vez em quando provavelmente não daria conta de que estava a caminhar, respondeu, com satisfação, que nunca tinha pensado assim, e que de facto assim se dava conta que fazia caminho.

segunda-feira, agosto 15, 2016

tolices de padres... ou casa cheia, talvez seja melhor

O calor encheu tanto a casa, que não tenho lugar nela. Moro alto. Num sítio alto. Para desculpar o lugar que encontraram para mim na paróquia, digo que estou mais perto do céu. Não sei se estou. Mas queria estar. 
Quando o sol chega, não há roupa que resista no sítio onde habito. Acontece quase igual em sentido inverso quando vem o Inverno. Não há aquecedor que resista. Não tem mal. Assim sabemos que a casa está sempre cheia e não moramos sozinhos. 
Hoje escrevo com pouca roupa e parece uma tolice um padre dizer estas coisas. Nem sequer vem a propósito de nada. Mas apetece-me escrever. E não estou a queixar-me. É assim que apetece. 
Ah, recordo agora que isto poderia ter a ver com Deus. 
Quando uma casa se enche de Deus, ocupa tanto espaço, o espaço todo, que parece que nem moramos nela. Parece que é Deus que lá mora.

sexta-feira, agosto 12, 2016

As famílias que não rezam

Numa reunião de pais de meninos que iam fazer a festa da Oração do Pai Nosso, estivemos a reflectir sobre o valor e importância da oração. Começámos por fazer um pequeno inquérito anónimo sobre aqueles que tinham por hábito rezar com os filhos em casa, fosse muito ou pouco. Constatou-se, no final do escrutínio, que mais de 50% não rezavam praticamente nada, e uns 20% rezavam muito pouco. Foram honestos os pais daqueles meninos, e chegámos juntos à conclusão de que a oração está ausente nas famílias de hoje, mesmo as famílias que se dizem cristãs ou que têm filhos na catequese. Alguns concluíram que tinham de alterar a percentagem. Outros, não sei. O que sei é que, como imaginava, as famílias dedicam muito pouco tempo das suas vidas a falar com Deus.

terça-feira, agosto 09, 2016

Casamentos sem missa

Estão ambos fora do país há muito. Agora pretendem casar, e já marcaram uma data do próximo ano. Querem casar pela Igreja num dia que coincide com outro compromisso idêntico que assumira anteriormente. Como tal, falámos da possibilidade de não ser eu a presidir e, eventualmente, não ter missa. Em princípio concordaram, e assim assumimos, juntos, essa data. Ontem vieram falar-me de novo e referiram que queriam com missa. Depois de uma pergunta discreta, descaíram-se dizendo que não costumavam ir à missa. Só quando estão em Portugal, cerca de três meses, e nem sempre vão, mesmo nessa ocasião. Mas querem missa, e perguntei o porquê da insistência. Ao que responderam que senão não era a mesma coisa. 
Claro que não. Uma coisa é uma Eucaristia e outra uma celebração sem Eucaristia. Estamos de acordo nisso que é uma evidência óbvia. Mas insistir que deve ter missa, quando ela tem pouco sentido nas suas vidas, o que pensar?! E lá vem outra vez a questão cultural dos sacramentos.

sábado, agosto 06, 2016

O padre tem de saber perdoar

O padre tem de saber perdoar. Dizia um bispo, em voz grave, no meio de uma pequena palestra sobre a confissão. E argumentava a afirmação com frases do papa. Recordava inclusive uma pequena história que este contara sobre um padre que tinha escrúpulos porque arranjava sempre uma forma de perdoar na confissão. 
Perdoem a ousadia que eu não tive para interromper o senhor bispo da voz grave. O padre não é dono do perdão. É instrumento do perdão de Deus. Usa o perdão de Deus na confissão. Tem de saber usar o perdão como ele é, infinito e sem explicação que não seja amor. Tem de ser sinal do amor de Deus na confissão. Tem de ser o rosto de Cristo que acolhe. Talvez isso seja saber perdoar, Mas não é ele que perdoa na confissão. 
O padre tem de sentir o perdão. Isso sim. Só quando sente o perdão em si, sabe o que é o perdão nos outros. Só sabe ser instrumento de perdão quem já foi objecto desse perdão. Só sabe acolher em amor na confissão quem um dia foi também acolhido com perdão e amor.

quinta-feira, agosto 04, 2016

o dia dos dias [poema 112]

Os dias passam, dentro de um baú,
Como um tesouro que é escondido,
Encerrados pelo tempo que voa
E plana no meio de tempestades.
Vão em busca na nau imaginária,
No porão, entre outras relíquias.

Passam os dias por mim e eu digo:
São apenas dias que um dia serão

segunda-feira, agosto 01, 2016

Atentados ou sublimados

Um muçulmano diz que precisa meia hora para rezar de manhã e o patrão dá-lhe autorização. Se um católico pede para ir à missa, não pode. Há que cumprir horários. Um muçulmano no hospital pede que não lhe dêem carne e já está. Não come carne. Um católico diz que não quer comer carne na quarta-feira de cinzas, e ou come carne ou não come nada. Se um artista plástico, como aconteceu em Espanha, decide fazer uma obra, a que chamou de arte, com hóstias consagradas roubadas, isso é arte e não tem mal. Mas se alguém propõe que se celebre uma Eucaristia na escola por alturas do Natal, isso não é de permitir, pois atenta contra aqueles que não são católicos. 
O Ocidente quer entrar em ruptura com a sua história, cultura e valores. Não me importuna que o faça. Mas não desta forma aviltante. Não de modo a perder-se, sem solução para se encontrar. 
Os que apregoam e exigem mais tolerância são geralmente os que menos tolerância têm para com a Igreja. De que terão medo? Ou qual a razão para tamanho incómodo? 
Os que apregoam mais liberdade e democracia são os que mais se impõem contra a Igreja e os valores que propõe. Os mesmos valores com que nasceram. Que pretendem afinal? Porque incomoda tanto a Igreja? 
Se há um atentado ao Charlie Hebdo é um atentado contra a liberdade de expressão. Se há um atentado numa discoteca gay, é homofobia. Se há um atentado em Nice, é atentado contra a liberdade, igualdade e fraternidade. Se há um atentado a um pobre homem de 84 anos, sacerdote, no meio da sua missão, é apenas mais um atentado. Assim como os milhares de cristãos, católicos ou não, que têm sido vítimas de violência em zonas fora da Europa. São apenas mais umas mortes. 
Quase apetece pedir ao Senhor Deus que encarne de novo, que venha por isto em ordem, ou que descarregue umas quantas rajadas neste mundo tão líquido. 
Ou então não. Podemos sempre pensar que o cristianismo tem esta capacidade de sublimação! Afinal, a cruz é o nosso sinal mais. O amor é a nossa melhor arma.