quarta-feira, novembro 30, 2016

entrar no silêncio [poema 123]

Entrei no silêncio sem me dizer
Esgotei as palavras por escrever
Como a água quando vai beber
Ou a rocha nua se quer vestir

Entrei pelas palavras sem querer
Soltei-as como eram e as sentia
Eu nunca entrara donde saía
O meu estar era como um dia

Entrei só, e não me quis fazer
Gritei sem voz, gritei por vós
Desfiz as palavras e todos os nós
Em silêncio, ficámos a sós.

domingo, novembro 27, 2016

Perder o que se não tem

Depois de me cumprimentar com um sorriso, o genro do falecido alterou ligeiramente a tom da voz e a inclinação da cabeça para alegar o seu descontentamento. O funeral do sogro fora presidido pelo diácono, pois eu não estava, e outras dezenas de colegas que haviam contactado também não estavam disponíveis. Tiveram que aceitar o diácono ou o morto ficava por sepultar. Compreenderam, dizia ele, que eu não pudesse, pela distância a que me encontrava. Mas não compreendia onde a Igreja ia parar. Assim tudo acabava. Assim acabava a Igreja e a fé. Como se ambas estivessem dependentes de funerais. Ou como se o diácono não fosse Igreja como os padres e os leigos. E assim o meu amigo dava a entender que perdia ou poderia perder a sua fé, coisa que eu não me lembro de nas celebrações da comunidade ou fora delas ter percebido nele. Mas agora é que perdia o que não tinha. 
Pelos vistos são bastantes os que por causa de não terem o que queriam, dizem ter perdido aquilo que não têm.

sexta-feira, novembro 25, 2016

senhor padre tal

O pedaço de história que ouso contar foi-me sussurrado por uma amiga que um dia deu de caras, no local de trabalho, com um sacerdote que em tempos da sua juventude, quando ainda era seminarista, trocara com ela gestos e momentos de amizade. Tinham sido um para o outro amigos de tu a tu. Tu isto, tu aquilo. O tempo passou e não se viam com frequência. Nesse dia, ela cumprimentou-o com o mesmo entusiasmo de outrora e simplesmente chamou-o pelo primeiro nome, que era o que conhecia melhor. A resposta dele foi mais ou menos esta Minha cara somos todos irmãos, mas uns são mais irmãos que outros. Ao que ela replicou com um Claro sr padre. peço desculpa pelo abuso! Pôs-lhe ela o ponto de exclamação e escrevo tal como mo contou. E amuou, sem perceber a razão de tamanha superioridade. 
O que eu não disse à Juliana é que às vezes as distâncias deste tipo podem ter a sua utilidade. Porque há quem abuse ou distorça. Eu trato meus amigos por tu e gosto que me tratem por tu. Mas nas paróquias às vezes o “senhor” acaba por, ao menos, parecer conteúdo de maior respeito.
Mas o que me fez pensar a sério no assunto dos tus e dos senhores, ou das distâncias e dos nós e vós, foi o que ela contou no final. Pois o senhor padre, ao despedir-se, deu um arzinho de graça, e disse Adeus, Julianinha. Ela, que tirou um curso e não assina doutora porque não quer, não conseguiu responder-lhe, e dizia-me. Só faltava que nas assinaturas, também os padres assinassem como senhores, e repetiu as siglas, senhor padre tal.

quarta-feira, novembro 23, 2016

Liberdade de não ter nada

Comprei algo que me custou bastante. Bastante dinheiro e bastante atenção. Bastante tempo e bastantes indecisões. Comprei algo que me é absolutamente necessário até para cumprir a minha missão sacerdotal. Um carro. Nem foi assim tão caro. É algo que comprei e que é meu. É algo que me pertence. E preciso. E hoje dei por mim a pensar que quando compramos algo que custa e que é novo, é quando damos valor à liberdade de não ter nada. Sim, lembrei aqueles que não têm nada e também não têm muito com que se preocupar para além do que é essencial. Aqueles que dão valor a cada pequenina coisa que possuem. Aqueles que, de tão pouco que possuem, têm todo o espaço do mundo para si mesmos e para Deus. Não precisam de preocupar-se se o carro está na rua ou na garagem. Se o esmurram ou se lhe estragam a pintura. Se está à chuva ou ao sol que queima. É nesses momentos, algo banais, que damos valor à liberdade de não ter nada.

segunda-feira, novembro 21, 2016

Senhor padre, como é que se pode amar mais a Deus?

Senhor padre, como é que se pode amar mais a Deus? 
Uma pergunta destas que surge desprovida de contexto e sem se contar com ela, parece algo banal ou sem sentido. Mas não era banal e fazia muito sentido a pergunta da senhora Luísa. Uma senhora que eu tinha e tenho como boa paroquiana e como crente. Aliás, é pergunta que já me ocorreu em noites mais escuras ou em dias mais fechados em mim. 
 Na verdade, quando percebemos e caímos na conta do amor perfeito de Deus, que ama sem limites, sem interesses, em liberdade, sem maquilhagem, e quando isso contrasta com as nossas debilidades, com os nossos interesses, com os nossos medos, com a nossa forma tão medida de amar, a pergunta da senhora Luísa começa a ganhar sentido e uma série de novos contornos. Será possível amá-lo mais? Como poderíamos amá-lo na perfeição? Como podemos amá-lo mais? Que fazer para aumentar esse amor? 
Reconheço que a primeira reação que a senhora Luísa me incitou foi a de lhe responder com alguma doutrina à maneira, com palavras do costume, aquelas frases que nós padres temos muita mania em usar. Mas também não tinha palavras destas em mim. Naquele imediato e como quase sempre, foi o coração que falou sem que eu lhe desse autorização consentida. A melhor forma de amarmos mais a Deus é deixarmos que o seu amor entre mais ainda em nós.

sábado, novembro 19, 2016

O que pensas da nova apresentação do blogue?

A última sondagem esteve online um mês, e pretendia reflectir sobre o ano jubilar que termina agora. 
Não farei muitas considerações a propósito das votações finais, porque creio que o fruto mais verdadeiro deste ano da Misericórdia só cada um pode ratificar ou tornar válido dentro de si. 
Destaco apenas que a opção mais votada foi "algo positivo". Se considerássemos uma linha divisória entre os que achavam que tinha sido bom ou excelente e os que o consideram como algo ou pouco positivo, teríamos uma relação de 44% para 50%. 
O que poderá tudo significar? Que a ideia do papa Francisco chegou ou não aos seus destinatários? Que mudou muitos cristãos ou não mudou nada, nem neles nem à sua volta? Que foi apenas mais uma manobra de marketing? As respostas deixo-as no ar... para que alguém as agarre e as ponha em palavras.


Hoje surge uma nova sondagem, e pelos vistos, bastante simples: "O que pensas da nova apresentação do blogue?"

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quinta-feira, novembro 17, 2016

Dia de padre é assim

Este dia que passou foi um dia atípico. Quando o relógio despertou já eu tinha despertado sem saber qual era o lado da cama onde estava. Erguido da noite, com as olheiras de quem ainda precisa mais tempo para ver o dia, abri, como sempre, as persianas das várias janelas por onde o sol costuma entrar. Carreguei também no botão do computador que diz On. É um exercício matinal para quem quer exercitar os seus neurónios dando umas voltas pelo correio electrónico, pelas últimas do face ou do blogue, ou então para ver os últimos documentos elaborados ou por terminar. Só depois deste exercício corro, porque já não aguento mais, para a casa de banho. Depois aquece-se um pedaço de água na chaleira, mistura-se-lhe chá, pão, manteiga e o que houver nas prateleiras do frigorífico, e come-se. Neste entretanto já tomei banho ou estou para tomar. Fazem-se umas orações, a maioria das vezes, a correr, porque algo me espera, nem que seja somente uma ideia que tenho da vida. Que algo sempre me espera. Começa a manhã de trabalho com milhentas coisas da paróquia e dos outros serviços onde faço algo. Deixo espaço para almoço, em casa ou com alguém que se lembre de me fazer companhia. Segue-se uma tarde que em pouco difere da manhã, a não ser que na manhã o sol está a pôr-se e na tarde o sol está a ir-se. Jantar depois de uma ou duas missas. É costume atender várias vezes o telefone e pessoas que aparecem na paróquia. Passo nalgumas catequeses ou nem por isso. Reúno-me para tratar assuntos. A noite termina já avançada. E é óbvio que não contei tim tim por tim o que aconteceu neste dia de padre atípico. Atenção que o dia é que é atípico e não o padre. Ou então não. Talvez o padre também seja atípico. Foi assim o dia de hoje. Tal como a maior parte dos dias da minha vida de padre. E dirá alguém dos mais atentos que não tem nada de atípico. Mas foi. Foi atípico, porque ao deitar-me, veio-me esta frase ao pensamento: a vida neste mundo é mesmo muito efémera!

quarta-feira, novembro 16, 2016

Outono [poema 122]

A folha imaginária de papel caiu no jardim
Soltou-se das árvores que o sonho labutava
com pincéis verdes que se faziam amarelos
com mãos de pintor que esgrimiam palavras

Caía o Outono dos pensamentos, chegara,
tropeçando nas horas das coisas, olvidado
Com ele tombou meu cigarro, por apagar,
Como a folha, sem imaginar, sem discutir
com Deus

segunda-feira, novembro 14, 2016

Padre com fé

A mãe da jovem que morrera faz um ano estava na missa. Bem como o namorado e o pai do namorado que são de outras paróquias. Estava mais uma série de pessoas que lhe eram próximas. No final da missa parei para dar um beijo (chamemos-lhe de força) à mãe. Pressinto que o necessitava. Com o beijo veio uma conversa simples e rápida. 
Mal acabou, o pai do jovem namorado acercou-se do carro. Estendi-lhe a mão para o cumprimentar. Agarrou-ma, com a força típica de quem quer expressar mais que um mero cumprimento. Depois levou-a à boca, beijou-a, e disse Senhor padre, continue sempre com essa fé. 
Pasmei sem palavras. Não sei de onde retirou a conclusão de que eu tinha uma grande fé. A homilia fora mais uma daquelas homilias normais, comuns, banais. Ou então não. Talvez tenha sido a forma como me expressei. Ou como celebrei. Ou não sei. Só sei que pasmei. Mas foi com alegria que recebi aquelas palavras. Mau seria que me dissesse que eu não tinha fé. Mau seria que se percebesse que um padre não tinha fé.

quinta-feira, novembro 10, 2016

Perguntou quais eram os motivos para ser padre

No local onde em tempo de estudos resido tenho a oportunidade de me juntar com mais colegas sacerdotes e discutir sobre tudo e nada, a propósito e a despropósito. Como sou um dos que possui mais anos de sacerdócio, um deles decidiu perguntar-me qual ou quais eram os motivos para ser padre, o que é que ainda me mantinha após estes anos todos. E por acaso, como era um assunto que já pensara muitas vezes e em especial nesta semana dos Seminários, respondi que só tenho um motivo para ser padre, embora às vezes, ou muitas vezes, busque outros. 
É difícil dar razões do nosso sacerdócio, buscá-las, dizê-las. Se calhar deveria haver milhares de razões e motivos. São esses que às vezes procuro para me justificar ou para me sentir um padre com razões para sê-lo. São, quase sempre, humanos e mundanos, mesmo que bons e altamente positivos. Contudo, e sinceramente, penso que só vale a pena ser sacerdote por um motivo: o Amor de Deus que nos chama e fala mais alto.

terça-feira, novembro 08, 2016

pessoas especiais

Veio uma filha falar comigo passadas umas horas da suposta missa de sétimo dia para me dizer que estava magoada porque não fizera nenhum tipo de homenagem ou referência à sua mãe. A intenção de missa da sua mãe era uma entre outras, e pedira para que fosse a primeira a ser referida na eucaristia. Mesmo assim, estava magoada, e nisso temos de ser compreensivos. São momentos de especial dor. E a sua mãe era especial. Para ela. Provavelmente não para as outras dezenas ou centenas de pessoas que estavam na eucaristia. Mas era ela que desejava que eu fizesse da sua mãe o ser mais especial do mundo. Que era. Mas para ela. Que era, tal como as mães das outras dezenas ou centenas de pessoas que estavam na eucaristia. Pedi perdão por tê-la magoado sem intenção. E que não era meu costume fazer homenagens senão a Deus na Palavra que é lida em cada liturgia.

sábado, novembro 05, 2016

Homilias do padre

Gosto de fazer das homilias um espaço em que pensamos em conjunto, como comunidade. Por isso é meu costume fazer algumas perguntas, simples, sobretudo relacionadas com o que se acabou de ler nas leituras. Penso que deste modo os meus queridos paroquianos vão sentindo a necessidade de, cada vez mais, estarem atentos à Palavra de Deus proferida. 
Depois de cinco anos à frente destas paróquias, o hábito foi entrando. Mas há locais onde as pessoas ficam em silêncio. Não respondem. Ou esperam que outros respondam. Sim, falta de coragem. Sim, medo de errar. Sim, são muitos os motivos possíveis para que teimem em ficar calados. Mas sinto que é sobretudo o peso da história que lhes dificulta o passo. Esse peso de uma história de passividade, em que os leigos eram a plateia do padre. Não tinham que pensar em nada, senão estar ali aqueles minutos e depois regressar a sua casa de consciência descansada pelo dever cumprido.

quarta-feira, novembro 02, 2016

Como serão os funerais quando não houver padres?

Como serão os funerais quando não houver padres? E quem os fará? 
Apetece-me deixar a questão assim, no ar, sem respostas, sem nuances, sem rodeios, sem certezas, sem vontade maior que fazê-la sem elaborações. 
Contudo, depois apetece-me dizer que a Igreja é de Cristo e é natural que sempre haja padres. Digo eu. E também não se sabe se daqui por uns anos vão querer os padres a fazer funerais, quando já hoje muitos dizem à boca cheia que não querem padres para nada e garantem que não precisam deles. 
Ainda refaço a pergunta para me entender. Como serão os funerais sem missa? 
Mas não sei se me entendi. São perguntas que faço sem me dar conta que as faço. São perguntas de quem está a pensar nessa coisa que é não se precisar do padre para nada, como dizia há dias um jovem de óculos de sol. De quem vê o número de padres na europa cristã a diminuir. São perguntas de um padre que em algumas ocasiões precisava que aceitassem com fluidez, que é como quem diz, com naturalidade, que fosse o diácono a presidir ao funeral. Mas não. Não é fácil impingir um diácono nestas cerimónias. E já vimos porquê. Imensas razões culturais, sentimentais e outras que tais. Eu próprio sinto que são ocasiões de evangelização ímpares. Assim como é uma forma de a Igreja estar com quem sofre. É nosso dever estar presente no momento culminante da vida das pessoas, porque é esse que muitas vezes nos dá a vontade de Deus. Ou então não. Então é apenas a dor que precisa de ombro amigo que o padre pode ser por excelência. São só tolices, amigos, porque eu bem sei que devo estar presente o mais possível nestas ocasiões e não há volta a dar. 
Mas há dias, a propósito de alguém que queria missa para o pai, mesmo sem nunca ou quase nunca lá ir, nem pai, nem filha, mesmo que para isso o padre tivesse de sacrificar o seu único dia de folga, veio-me esta tolice ao pensamento (mesmo sabendo que o padre tem mais folgas do que as que precisa e que só tem trabalho aos domingos. Fora de brincadeiras). Mas se em vez de 60 ou 70 padres que uma diocese possua, passe a ter uns 10, com trinta paróquias cada um, quem fará os funerais? Como serão os funerais?