O colega que está agora nas minhas antigas paróquias há dias fez-me o convite para entrar em sua casa, aquela que outrora foi minha, aquela que foi construída com a imagem que eu fazia dela. Morei lá quatro anos, os suficientes para me apegar à cor dos sofás que tanto gostava, aos azulejos pequeninos que havia escolhido de propósito, ao cheiro das madeiras e do aquecimento aceso. Não acedi ao convite. Aquela casa não é mais a minha casa, apesar de ter espaço suficiente para mais de uma dúzia de pessoas. Era o meu casarão. Por isso, talvez por lhe lembrar o cheiro e o gosto, eu não acedi ao convite.
Na altura em que as decisões de mudar de paróquias ficaram feitas, pensei várias vezes no meu habitat natural dos últimos anos. Não pensei apenas na casa que ajudei a construir com a minha imaginação. Pensei também na organização, nas estruturas que deixava, nas minhas formas de agir que já encaixavam naturalmente com as das pessoas, com os caminhos que trilhámos em comunidade. Recordo que na altura tive um pensamento que não quis reprovar: Os problemas que tinha nas paróquias já não eram os problemas que as pessoas criavam, mas os problemas que as pessoas tinham. Estava, portanto, com uma certa estabilidade pessoal, difícil de apagar. Muito difícil.
O meu Sim não tinha sido um Está Bem, nem tinha sido um Não ao que vivia. Tinha sido um Sim à vida e ao chamamento de Deus. Não era um Sim conformado. Era um Sim inconformado, porque a nossa missão deve estar sempre inconformada, desformatada, desacomodada. E parti. Parti com a certeza de que naquele momento o meu sacerdócio saía reforçado. Estar desprendido da minha casa, do meu habitat, das minhas coisas, das paredes com quem tantas horas falei, das minhas organizações, dos meu ganhos de onze anos, das minhas conquistas, até dos que amava, só me fez pensar que o meu sacerdócio não é meu, mas de Deus. Que a minha vida não é minha, mas de Deus. E isso fez-me bem. Muito bem, agora que vejo tudo a uma certa distância. A Casa que tenho hoje é pequena, fria ou quente consoante é Inverno ou Verão para não dizer mais, embora ajeitadinha. Tenho muito que tratar e organizar. Tenho muito que fazer e compor. Tenho muitas amizades por fazer. Tenho muito que amar. Não é bem deixar tudo para trás. Mas é deixar a vida que tinha, em troca de uma vida por ajeitar. E isso só fez crescer em mim o meu sacerdócio.
Mas já agora, ó Senhor, o que disse até aqui é verdade, mas a ver se não te lembras de passar a vida a tentar fazer crescer em mim o meu sacerdócio desta forma, que um padre não é de ferro.
terça-feira, janeiro 29, 2013
quarta-feira, janeiro 23, 2013
Ser padre é um bom emprego
Conversa entre padres, numa daquelas refeições opíparas que se fazem num dia de folga. Ó pá, estou a pensar deixar de ser padre. Disse-o em tom de brincadeira, no meio do palavreado do colega que desabafava um problema da paróquia. Ai, e tal, tenho este problema, é uma chatice, estou cansado destas coisas, e vai que o tal padre, com os lábios a sorrir, num tom de galhofa, solta um Ó pá, vou deixar de ser padre. E um terceiro colega, assim de chofre e para completar o esgar galhofento do outro, acrescentou Não te aconselho, pá. Da maneira como estão as coisas, é melhor deixares tudo como está. Com a falta de emprego que por aí vai... e fez reticências a rir. Todos se riram e concordaram. Eu também. Na verdade, enquanto o comum das pessoas vai perdendo o seu emprego, nós vamos aumentando o emprego, isto é, aumentando o número de paróquias e trabalhos. E claro, não escondamos a peneira, pode não aumentar a generosidade das pessoas, mas aumentam o número das pessoas que são generosas. Ainda me lembro do outro seminarista a quem em tempos ouvi dizer que ia para padre porque tinha emprego garantido! E por mais que a gente diga que este não deve ser o motivo das nossas opções vocacionais, e por mais que se recorde que as ovelhas não são todas viçosas, a verdade é que a realidade é assim. E agora digo eu no meio de uma enorme gargalhada. Vale mais continuar como estou.
quinta-feira, janeiro 17, 2013
Um medo meu
As coisas nas novas paróquias estão a correr bem, escrevia eu há uns meses no meu caderno de ideias ou apontamentos só meus. Relativamente bem, escrevi a seguir. E refiz a frase. O padre é novo. Sabe sorrir. Dizem que sabe falar. Dizem que é dinâmico. Que a paróquia agora não pára. A comunidade parece viva, a viver. Um novo produto vende. A imagem também e a do padre não é má. Quero pensar que sim. Mas a verdade é que a imagem que queremos passar aos outros tem muito a ver com os medos que temos. Um dos maiores medos do mundo, senão o maior, é o medo do que os outros pensam de nós. E paralisa-nos. Chega a atrofiar o que somos, a apagar o que de melhor temos, ou ainda a apagar-nos. Criam em nós um outro eu. Tiram-nos a possibilidade de sermos livres. De sermos autênticos. De sermos. E por isso tenho medo de estar a preservar mais a minha imagem que a imagem de Deus. Tenho medo de não ser imagem de Deus.
sábado, janeiro 12, 2013
Os funerais fazem-me dor de estômago
Fico sempre com o coração aos pulos quando vem um funeral. Desarranja-me a vida e às vezes os intestinos. E não há funeral em que o meu coração não pule repetidamente, em tic-tac, e em acelerando. Porque é estranho ver as pessoas de luto, de escuro. Ver as pessoas com lágrimas nos olhos. Muitas vezes aos gritos ou gemidos. Fazermos o trajecto do cemitério. Darmos conta que alguns dos presentes só fazem acompanhamento, mais nada. Antes do funeral olho para baixo, para o trajecto que faço, para ver se me concentro em fazer o que tem de ser feito, dando algum ânimo às pessoas e muita esperança que vem da fé. Tremo quando penso que vem aí um funeral. Basta ver no ecran do telemóvel o número de uma funerária e já estou assim. Só tenho algum alívio quando deixo as pessoas no cemitério e corro para não estar mais lá. Dizem que os médicos, com o tempo, lidam com a doença e as pessoas doentes como se fossem apenas mais uma ou algo que manejam como o agricultor maneja a enxada. Mas eu não sinto que as centenas de funerais que já fiz deixem de pesar e deixem de me fazer sentir aflito. Ainda por cimo acredito na Ressurreição. Às vezes até me parece que acredito mais na Ressurreição que no próprio Deus. Podia dizer a mim próprio que é uma boa ocasião para pregar a Vida Eterna. Mas quer-me parecer que andarei aqui a vida eternamente com dor de estômago cada vez que tenho de fazer um funeral.
sexta-feira, janeiro 04, 2013
A dona Olímpia e o menino Jesus da cabeleira
A dona Olímpia é tão boa, tão boa, que vê bem em tudo, porque vê com o coração dela que é bom. Já tinha reparado, mas há dias desfizeram-se-me todas as dúvidas. O que vou contar aconteceu numa destas tardes de inverno, depois de ter passado aqui pela paróquia um senhor especialista que veio investigar umas imagens de vestir que andam, ou melhor, estão aqui pelas capelas da paróquia. Uma dessas imagens era um menino Jesus que o meu sacristão deixou de cima de uma arca. Tratava-se de um menino Jesus com roupinha feita pelas senhoras da terra e uma cabeleira comprida, que ele merece. Aliás, não se põe cabelo ao menino se não for para se ver bem ao longe. Por isso que seja comprido. Era uma cabeleira que eu diria mais apropriada para um Senhor Jesus de barba rija, com carreiro ao meio e tudo. Mas pronto. Era, enfim, uma senhora cabeleira. Ora o malvado do padre, que sou eu, resolveu brincar com a cabeleira revirando ou remexendo o cabelo para o lado, isto é, deixando o carreiro ao lado, e fazendo com que a imagem parecesse mais um roqueiro dos modernos que outra coisa. E assim cada vez que alguém passava, o padre perguntava o que achava daquele Jesus moderno. As senhoras com a boca a tapar o riso, compunham de novo a cabeleira. Só que o padre teimava na brincadeira, até que apareceu a dona Olímpia. Vinha para me dar um pequeno recado, mas não se livrou da malvadez do padre e da cabeleira ao lado. Dona Olímpia, como vai a senhora, perguntou o padre sem a deixar dar o recado. E ainda sem receber a resposta foi logo indagando. O que acha deste menino Jesus com este penteado moderno, dona Olímpia. E a dona Olímpia foi logo dizendo. Ai tão lindo que ele está. Foi o senhor padre. Só podia. O senhor padre só faz coisas lindas. Disse-o de forma convicta, que eu sei e já falámos disso. Deu o recado. Saiu. E eu, envergonhado, compus a cabeleira, e pensei para comigo. Aqueles que tudo vêm com um coração sem maldade, não vêm a maldade das coisas.
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