segunda-feira, maio 29, 2023

o paramento vermelho

A Eucaristia da solenidade de Pentecostes ia iniciar-se quando o pequeno acólito André, no início do cortejo, se voltou para trás e me perguntou porque é que tinha vestido um paramento vermelho. Não é costume, senhor padre. Pois não, não é muito hábito, respondi. Que te parece, André? E ele respondeu prontamente, com a alegria estampada nos ombros por causa dos seus gostos clubísticos: só se for por causa do Benfica ter ganho! A risada foi grande, mesmo depois de lhe ter explicado o verdadeiro motivo para usar esta cor litúrgica. E o resto da comunidade acabou por se rir igualmente quando também perguntei, do altar para baixo, se sabiam porque tinha vestido um paramento vermelho e lhes contei o que se passara um minuto antes. Viva o Benfica! Disse o André. E não é que até Jesus é o verbo “encarnado”!


A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sou do Benfica"

sábado, maio 27, 2023

espiritualidade como caminho a andar

A sociedade secularizada em que vivemos reclama dos padres uma maior formação. Contudo, a formação que os padres mais necessitam é a formação espiritual. Precisamos saber os nomes das coisas, mas os desígnios das coisas só a intimidade com Deus no-los ajuda a vislumbrar. Ou melhor, a desvelar. Porque ficará sempre muito por encontrar. E é bom que assim seja, para que a nossa vida seja um eterno buscar. Um padre que busca não é sempre um padre que encontra, mas é um padre que caminha para encontrar.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O assunto era padres"

quarta-feira, maio 24, 2023

a estrada do padre

Não conheço nenhuma estrada que tenha o nome de um padre. Nem um beco. Mas escolhi este título para falar dos quilómetros do padre. Há uns cinquenta anos, o padre tinha um quilómetro ou dois de estrada. Às vezes mais e tardava-se muito tempo na mula ou no cavalo para chegar de uma paróquia a outra. Era pároco de uma ou duas paróquias, quando muito três. Hoje o padre tem muitos quilómetros pela frente, muitas curvas e contracurvas. Muitas paróquias. E se antes o padre sabia os nomes das pessoas e intervinha nos nomes que os pais davam às crianças no baptismo, hoje o padre não consegue saber os nomes de todos. A estrada alargou-se. A vida alargou-se. O ministério alargou-se. O cansaço alargou-se. 
Não é, por isso, de estranhar que muitos dos meus colegas façam do automóvel um escritório. Tudo aparece na bagageira ou no banco de trás. Livros, rituais, sacos de hóstias por consagrar, uma alva e uma estola. Uma pasta com documentos. Livros no meio da confusão. E, às vezes, uma peça de fruta ou um tupperwere com comida. E muitas garrafas de água vazias, que se vão acumulando como tapetes. E como a maioria do tempo gasto no automóvel é um tempo solitário, não vem mal ao mundo nem pressa para ter o “escritório” arrumado. 
O padre moderno passa muito tempo na estrada. A vida transformou-se numa corrida de automóvel mesmo quando está fora dele. A vida humana, em geral, e a do padre, em particular, tem-se tornado numa corrida, com ou sem automóvel. Tão apressada e tão preenchida de coisas e afazeres que, muitas vezes, o mais importante fica escondido ou apenas se vê a correr do lado de fora da janela, como aquela margem da estrada que nunca acaba, que está sempre lá, mas que não temos tempo para olhar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O buraco"

sábado, maio 20, 2023

Os abraços que falam

Tinha tido um problema no coração há uns anos e recuperara entretanto. Nada fazia prever que, de um momento para o outro, tivesse um pequeno derrame cerebral. Mas teve. Foi tudo muito rápido. Encontramo-nos antes da missa, mas já na igreja. Olhei-o e perguntei como fora aquilo. Abraçou-se a mim. Apertou-me quanto pôde. E ficámos assim. Tinha muita vontade em me abraçar para me dizer como se sentia. E não disse mais nada para lá do abraço que disse tudo. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Uma confissão ou um abraço?"

quarta-feira, maio 17, 2023

vida das pedras [poema 368]

apetecem-me as pedras 
 
quisera tropeçar nelas para ser lançado 
como pássaro que não controla seu voo, 
essa dor que dói mais que a dor do tropeço 
e da pedra no princípio do voo 
 
apetecem-me as pedras 
 
quisera umas em cima das outras, 
como muros dos apriscos ou casas 
dos sentimentos 
esse baú que guarda a possibilidade 
de vida 
 
de pedras

sábado, maio 13, 2023

ir ao funeral sem ir

Terminara a cerimónia do funeral na igreja. Após as encomendações, saímos para fora, eu e os ministros concelebrantes, os homens das insígnias e da cruz e os que tinham estado na celebração. Alguns cantavam, outros faziam silêncio. Mas as várias dezenas de pessoas que tinham permanecido na rua durante toda a cerimónia não pararam os seus afazeres de boca. Era como se estivessem ali, mas não estivessem no momento que se vivia. Como se não estivessem na cerimónia de despedida de uma pessoa que tinha falecido. Parecia nitidamente uma feira sem tendas, comes e bebes e negócios. Nem quando o caixão saiu da igreja na mão dos homens que o carregavam, os seus amigos que tinham vindo despedir-se pararam a barulheira e as conversas mais típicas de café. Acho que nem deram conta. Alguns não saíram do seu lugar de conversa e uma grande maioria não entrou no cemitério. Tinham ido apenas cumprir o preceito de ir ao funeral sem ir. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha avozinha"

terça-feira, maio 09, 2023

thaddaeus [poema 367]

escolhi não ter rosto para saberes de mim 
sem as letras que plantei como flores 
que morreram no jardim 
 
cobrei o teu madeiro como tábuas de marfim 
esculpido para morrer ao teu lado 
entre as chamas que há em mim 
 
sabes que o meu rosto é do mundo, mas só teu 
a queimar, coração ao peito no meu peito 
sempre teu

sábado, maio 06, 2023

A visita do senhor e do Senhor

Os dias e os meses passaram entretanto. O marido estivera bastante doente, no hospital. Estivera à beira da morte, como ele dizia. Quando regressou a casa, todos os cuidados eram poucos. Não podia mesmo sair de lá. E a idade de ambos também não permitia descuidos. Por isso, quando os visitei foi uma enorme alegria. A visita do senhor foi muito boa, explicava a senhora. O meu marido até melhorou, senhor padre. Não sabe o bem que lhe fez. Mas o melhor mesmo, dizia ela, foi quando, dois ou três dias depois, recebemos o Senhor das mãos do ministro extraordinário da comunhão. Tinham ficado ambos muito contentes com a proposta que lhes fizera de comungarem em casa, e assim foi. E se a visita do senhor padre tinha sido excelente, pelos vistos não teve comparação com a visita do próprio Senhor! Nem imagina, senhor padre, como eu estava nesse dia, com dores de estomago. Acho que até tinha febre. Não sabia como havia de estar. As dores eram demasiadas. Contudo, quando a senhora da comunhão entrou em nossa casa e nos trouxe o Senhor, curiosamente, não sei como explicar, a dor até se foi embora. Nunca imaginara que o Senhor entraria em minha casa como entrou. Foi tudo tão bom, que não há palavras, senhor padre. Tão bom mesmo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não estás nunca sozinho"

quinta-feira, maio 04, 2023

par e cer [poema 366]

num primeiro momento parecia um sopro 
vindo não sei de onde, mas de algum lado, 
inóspito ou sem nome para se dizer. 

depois, quando me atirou ao chão, parecia 
um vendaval, a passar, entre as casas 
de calcário envelhecido para se parecer.

mas quando a tempestade me levou com ela 
acima do lugar onde a vida parece, 
elevado pela força que, não, perece 
veio a brisa que me fez entender, isso 
que é sempre um sopro, mesmo a morrer 
para o que permanece a viver