sexta-feira, dezembro 30, 2022

explicação da morte [poema 356]

a imagem do caixão guardei-a para deixar
entre o lugar da porta e o lugar da chave
onde pendurei o que eras, árvore
que não morre, e dava flores
essa fruta de primavera que colocamos
em cima dos caixões para dar vida

sábado, dezembro 24, 2022

o Deus oculto [poema 355]

Tu desceste ao tempo, eterno minguante 
no amor crescente
eras tudo, 
para ser o quase nada 
entre os homens
 
eras a palavra e vieste no silêncio
a meio da noite, e por entre o escuro,
encarnaste a luz que não se apaga
nem se cala
 
eras a eternidade, e caíste na realidade
Tu és o Deus oculto, mas presente,
um presente em nós


um Natal cheio da Esperança que brota da encarnação de Deus em nós, nos nossos corações!

quinta-feira, dezembro 22, 2022

O cansaço da hora

A hora ia adiantada. A conversa também. Dois colegas falavam coisas de padres. Um deles perguntava porque é que o assaltava tantas vezes a vontade em largar tudo. Já se está a ver que mais do que uma pergunta, era um desabafo, e mais do que um falar para o outro, era um falar para se escutar no que falava. Dizia que lhe assaltava muitas vezes esta vontade de deixar tudo para trás, tal como deixara tudo quando aceitara dar o passo da ordenação, mas agora em sentido inverso. Estava cansado do clima de suspeição que vive diariamente, tal como todos os outros padres. A Igreja encontra-se sob a lente de uma comunicação social e de uma sociedade bastante ideológica, com interesses em a descredibilizar, é certo. E doi. Mas também nas suas comunidades sente que as pessoas estão convencidas que o padre só quer é dinheiro e que a Igreja é muito rica. E também se avolumam as tentativas inglórias para propor a fé. E os esforços por ajudar a compreender a verdade nos sacramentos. 
Ele não faz parte do grupo daqueles que têm nostalgia do passado e a ele querem regressar. Aliás, sonha com uma Igreja mais humanizadora e mais próxima das pessoas, mesmo que em menor relevância na sociedade e na cultura. Não quer nada com a Igreja jurídica, sacral e burguesa. Ele quer identificar o seu sacerdócio com a Igreja dos peregrinos, dos que caminham e que, muitas vezes, nem contam. Mas estava cansado. Pensava em deixar o ministério, não como um acto de fraqueza, mas como um acto de franqueza. Não como uma acto de decisão, mas como um acto de vocação. A validação, diante dele mesmo e do próprio Deus, de que há uma náusea, uma solidão, uma ausência, um vazio, uma paixão que é uma cruz desamarrada. É sincero. É autêntico este padre, que apenas quer ser padre para servir e não sabe suportar este cansaço que vem mais de fora dele que de dentro, mas que se entranha.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Há-de ser o que Deus quiser"

sábado, dezembro 17, 2022

A Igreja e a ciência

Quando a Catarina, no meio da conversa sem pretensões, afirmou que a Igreja estava contra a ciência e que havia um conflito de poder entre ambas, o meu estado de admiração quase me emudeceu. Pensava eu que, nesta sociedade pós-moderna, o ensino escolar já ultrapassara a ideia descabida desta tolice. O conflito foi alimentado pela famosa “ilustração” que pretendia convencer que a ciência foi uma conquista perante o cristianismo que enganava as pessoas, as reprimia e as levava à ignorância e estagnação. Contudo, o diálogo entre a Igreja e a ciência tem evoluindo imenso e hoje parece-me que ainda pensar deste maneira é completamente descabido. 
Para alunos que se contentam com aprendizagens acríticas, convém recordar algumas coisas que a sociedade deve à Igreja. Por isso lembrei à Catarina que a civilização ocidental deve à Igreja o sistema universitário, as ciências, os hospitais, o direito internacional, bastantes princípios do sistema jurídico e os valores da constituição, entre muitas outras coisas que proporcionaram ao homem o seu progresso. A própria revolução científica fez-se com grandes contributos da Igreja, muitos deles padres, como por exemplo Copérnico, Nicolau Steno, Grimaldi, Lemaitre, Riccioli.  

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Hoje em dia"

quarta-feira, dezembro 14, 2022

haver [poema 354]

não há olho aberto que não feche, cansado
para adormecer

não há manhã que não caminhe para a noite
é a sua labuta para tornar a ser
 
não há palavra que não se escreva e termine
para se poder ler
 
e as letras são letras porque se fazem palavras
e as manhãs são um novo dia depois do seu findar
e os olhos encerram-se para que o coração veja.
o homem vive para crescer, por dentro e por fora
num abraço se encerra o homem no outro
para viver

domingo, dezembro 11, 2022

A Igreja fria

O frio entrou pela fraca claridade da manhã, ao abrir o reposteiro. Estava mesmo muito frio, o que aumentou a vontade de ficar debaixo dos cobertores. Mas as eucaristias dominicais clamavam por mim e não lhes podia dizer Não. Era cedo, de facto, e o frio era enorme, mas a primeira missa dominical deste dia foi celebrada para cinco pessoas. Cinco exactas. Gente boa. Duas delas leram as leituras, mas nenhuma cantou. Três delas comungaram. As quatro paredes da igreja estendem-se e dariam guarida segura a umas duas centenas, no mínimo. As cinco pessoas estavam espalhadas nos bancos, distantes umas das outras. As pessoas têm morrido. A terra tem cada vez menos habitantes. E estava frio. As mãos enregelavam. Tudo parecia frio naquela missa. A Igreja fria. É esta a verdadeira Igreja fria.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Hoje entrou Deus em minha casa"

quarta-feira, dezembro 07, 2022

Deus não me ouve!

Uma familiar, um pouco aflita com algumas situações difíceis da sua vida, contactou-me por telefone, e o desabafo, que foi prolongado, terminou assim. Reza lá por mim, que a mim Deus não me ouve. E repetiu num tom de voz mais apagado, a deixar de se ouvir. Reza lá por mim, que a mim Deus não me ouve. Lembrei-me de perguntar-lhe se tem rezado, e ela respondeu-me que não. Que não tem rezado praticamente nada. Ora, pois então como é que Deus a há-de ouvir, pensei eu para os meus botões! E em tom de galhofa, que originou umas boas gargalhadas e aliviou a tensão, lá lhe disse. Então como queres que Ele te ouça se tu não falas com Ele!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "De rabo para o ar"