Já lá vai um dia, mas o meu coração continua sem sabor. Como se uma artéria estivesse desligada das outras ou não quisesse fazer parte do conjunto. Eu vou dizendo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque chega a um ponto em que os funerais a fazer são os dos amigos que constrói, dos mais chegados às artérias do nosso coração. E isso adoece o mesmo coração. Não amolece. Às vezes até o fortalece. Mas dói sem explicação.
A avozinha era desses. Não era minha avó. Mas ambos assumíramos esse parentesco. Ela fazia hoje 83. Mas o sorriso e o amor para dar era de 38. Fresco, livre, maduro, consciente, verdadeiro. Eu, com sorriso parecido, enternecia-me com o seu, com o olhar matreiro de cumplicidade quando olhávamos um para o outro na Eucaristia, com as suas lágrimas quando me contava as suas rugas, com a sua espera no final de cada missa, com as surpresas que me oferecia. Sobretudo com a verdade de tudo o que era. Olhe que eu gosto muito de si. Amo-o como um netinho. Tome para um café. E mais conversa. E mais outra conversa. Tenho de ir, vozinha. E um abraço apertado, um beijo nos cabelos brancos e penteados. Tapava-a com o xaile preto da viuvez. Brincávamos. Sabia-se na paróquia do nosso parentesco. Não sabiam que eu lhe levara uma flor na sexta-feira passada ao hospital. Um acidente acelerara o tempo. Rimos. Gargalhámos. E ainda me contou que era bom ter sido ela e não outro dos seus, pois ela já era velha. Nada me fazia pensar que eram as nossas últimas palavras visíveis. A notícia quis acordar-me faz dois dias. Ainda não acordei, e o coração continua sem sabor. Prometera-lhe uma festa no funeral. Eu pedia para se calar com essas conversas, mas anotava os seus desejos. Desde que participara no funeral da minha mãe que desejava uma festa como ela, dizia. E guardava uma foto da minha mãe junto com os seus santinhos. Rezava-lhe todos os dias. E sei que não mentia. Até porque sabia de cor a data do seu aniversário, da sua partida, e entregava-me sempre uma nota para levar um ramo de flores à campa. Não se esqueça. Ou quando ia a Fátima a uma reunião. Ponha lá uma velita. Não se esqueça. Como posso esquecer-me dela? Como posso aguentar um funeral duma amizade assim? Não aguentei mesmo. As lágrimas soltaram-se como se estivesse do outro lado do altar, junto com a família de sangue. Nos momentos mais importantes da Eucaristia fui forte. Deus deu-ma, a força. Homilia. Anáfora. Consagração. Nas palavras necessárias. Nos momentos de silêncio ou de canto, os lábios premiam-se, respirava fundo para conseguir, e as lágrimas caíam sem que as limpasse, a não ser discretamente com o lenço emprestado. Mas cantei. Tinha-lhe prometido. A paróquia toda engalanou-se para ela, como se fosse Domingo. Assim entendeu a maioria. Sinal do que era a sua presença na comunidade. Durante o acompanhamento novas e muitas lágrimas. Na despedida muitas mais. Levava do lado esquerdo, bem junto à face, a rosa amarela que levara ao hospital. Pedira a uma outra visita que a guardassem bem para quando regressasse a casa. Regressou em silêncio, mas entregaram-lha como prometido. No direito as duas rosas cor de rosa que diziam obrigado pelo amor que me deste. As quatro rosas já estão com a minha mãe.
Hoje celebrámos, como combinado, a missa de acção de graças pelo seu aniversário. Tinha sido combinado há quinze dias entre amigos. Contara-lhe no hospital. A família de sangue esteve presente. Uma das filhas prometeu continuar o que a mãe fazia na paróquia. Pelo menos parte. Outras agradeceram as cerimónias. Uma, a que mais admirei, afirmou que não havia necessidade de me agradecerem porque ela também era minha. Disse-o mais ou menos assim, ou eu senti-o. No final da missa, ficaram alguns amigos para deixar cair alguma que outra lágrima que ainda não tinha tido a sua oportunidade e para falar de saudades. O filho aproximou-se e disse. Padre, estes cinco euros a minha mãe mandara para o senhor, antes de morrer, para agradecer a missa de acção de graças e para um café. Era coisa sua, porque ela sabia que eu gosto de café. Sorri para ele e para ela. Até depois da partida, continuava a pensar em mim! Era a minha avozinha.
Entretanto vou repetindo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque há coisas que doem sem explicação.
A avozinha era desses. Não era minha avó. Mas ambos assumíramos esse parentesco. Ela fazia hoje 83. Mas o sorriso e o amor para dar era de 38. Fresco, livre, maduro, consciente, verdadeiro. Eu, com sorriso parecido, enternecia-me com o seu, com o olhar matreiro de cumplicidade quando olhávamos um para o outro na Eucaristia, com as suas lágrimas quando me contava as suas rugas, com a sua espera no final de cada missa, com as surpresas que me oferecia. Sobretudo com a verdade de tudo o que era. Olhe que eu gosto muito de si. Amo-o como um netinho. Tome para um café. E mais conversa. E mais outra conversa. Tenho de ir, vozinha. E um abraço apertado, um beijo nos cabelos brancos e penteados. Tapava-a com o xaile preto da viuvez. Brincávamos. Sabia-se na paróquia do nosso parentesco. Não sabiam que eu lhe levara uma flor na sexta-feira passada ao hospital. Um acidente acelerara o tempo. Rimos. Gargalhámos. E ainda me contou que era bom ter sido ela e não outro dos seus, pois ela já era velha. Nada me fazia pensar que eram as nossas últimas palavras visíveis. A notícia quis acordar-me faz dois dias. Ainda não acordei, e o coração continua sem sabor. Prometera-lhe uma festa no funeral. Eu pedia para se calar com essas conversas, mas anotava os seus desejos. Desde que participara no funeral da minha mãe que desejava uma festa como ela, dizia. E guardava uma foto da minha mãe junto com os seus santinhos. Rezava-lhe todos os dias. E sei que não mentia. Até porque sabia de cor a data do seu aniversário, da sua partida, e entregava-me sempre uma nota para levar um ramo de flores à campa. Não se esqueça. Ou quando ia a Fátima a uma reunião. Ponha lá uma velita. Não se esqueça. Como posso esquecer-me dela? Como posso aguentar um funeral duma amizade assim? Não aguentei mesmo. As lágrimas soltaram-se como se estivesse do outro lado do altar, junto com a família de sangue. Nos momentos mais importantes da Eucaristia fui forte. Deus deu-ma, a força. Homilia. Anáfora. Consagração. Nas palavras necessárias. Nos momentos de silêncio ou de canto, os lábios premiam-se, respirava fundo para conseguir, e as lágrimas caíam sem que as limpasse, a não ser discretamente com o lenço emprestado. Mas cantei. Tinha-lhe prometido. A paróquia toda engalanou-se para ela, como se fosse Domingo. Assim entendeu a maioria. Sinal do que era a sua presença na comunidade. Durante o acompanhamento novas e muitas lágrimas. Na despedida muitas mais. Levava do lado esquerdo, bem junto à face, a rosa amarela que levara ao hospital. Pedira a uma outra visita que a guardassem bem para quando regressasse a casa. Regressou em silêncio, mas entregaram-lha como prometido. No direito as duas rosas cor de rosa que diziam obrigado pelo amor que me deste. As quatro rosas já estão com a minha mãe.
Hoje celebrámos, como combinado, a missa de acção de graças pelo seu aniversário. Tinha sido combinado há quinze dias entre amigos. Contara-lhe no hospital. A família de sangue esteve presente. Uma das filhas prometeu continuar o que a mãe fazia na paróquia. Pelo menos parte. Outras agradeceram as cerimónias. Uma, a que mais admirei, afirmou que não havia necessidade de me agradecerem porque ela também era minha. Disse-o mais ou menos assim, ou eu senti-o. No final da missa, ficaram alguns amigos para deixar cair alguma que outra lágrima que ainda não tinha tido a sua oportunidade e para falar de saudades. O filho aproximou-se e disse. Padre, estes cinco euros a minha mãe mandara para o senhor, antes de morrer, para agradecer a missa de acção de graças e para um café. Era coisa sua, porque ela sabia que eu gosto de café. Sorri para ele e para ela. Até depois da partida, continuava a pensar em mim! Era a minha avozinha.
Entretanto vou repetindo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque há coisas que doem sem explicação.