quinta-feira, março 29, 2007

A minha avozinha

Já lá vai um dia, mas o meu coração continua sem sabor. Como se uma artéria estivesse desligada das outras ou não quisesse fazer parte do conjunto. Eu vou dizendo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque chega a um ponto em que os funerais a fazer são os dos amigos que constrói, dos mais chegados às artérias do nosso coração. E isso adoece o mesmo coração. Não amolece. Às vezes até o fortalece. Mas dói sem explicação.
A avozinha era desses. Não era minha avó. Mas ambos assumíramos esse parentesco. Ela fazia hoje 83. Mas o sorriso e o amor para dar era de 38. Fresco, livre, maduro, consciente, verdadeiro. Eu, com sorriso parecido, enternecia-me com o seu, com o olhar matreiro de cumplicidade quando olhávamos um para o outro na Eucaristia, com as suas lágrimas quando me contava as suas rugas, com a sua espera no final de cada missa, com as surpresas que me oferecia. Sobretudo com a verdade de tudo o que era. Olhe que eu gosto muito de si. Amo-o como um netinho. Tome para um café. E mais conversa. E mais outra conversa. Tenho de ir, vozinha. E um abraço apertado, um beijo nos cabelos brancos e penteados. Tapava-a com o xaile preto da viuvez. Brincávamos. Sabia-se na paróquia do nosso parentesco. Não sabiam que eu lhe levara uma flor na sexta-feira passada ao hospital. Um acidente acelerara o tempo. Rimos. Gargalhámos. E ainda me contou que era bom ter sido ela e não outro dos seus, pois ela já era velha. Nada me fazia pensar que eram as nossas últimas palavras visíveis. A notícia quis acordar-me faz dois dias. Ainda não acordei, e o coração continua sem sabor. Prometera-lhe uma festa no funeral. Eu pedia para se calar com essas conversas, mas anotava os seus desejos. Desde que participara no funeral da minha mãe que desejava uma festa como ela, dizia. E guardava uma foto da minha mãe junto com os seus santinhos. Rezava-lhe todos os dias. E sei que não mentia. Até porque sabia de cor a data do seu aniversário, da sua partida, e entregava-me sempre uma nota para levar um ramo de flores à campa. Não se esqueça. Ou quando ia a Fátima a uma reunião. Ponha lá uma velita. Não se esqueça. Como posso esquecer-me dela? Como posso aguentar um funeral duma amizade assim? Não aguentei mesmo. As lágrimas soltaram-se como se estivesse do outro lado do altar, junto com a família de sangue. Nos momentos mais importantes da Eucaristia fui forte. Deus deu-ma, a força. Homilia. Anáfora. Consagração. Nas palavras necessárias. Nos momentos de silêncio ou de canto, os lábios premiam-se, respirava fundo para conseguir, e as lágrimas caíam sem que as limpasse, a não ser discretamente com o lenço emprestado. Mas cantei. Tinha-lhe prometido. A paróquia toda engalanou-se para ela, como se fosse Domingo. Assim entendeu a maioria. Sinal do que era a sua presença na comunidade. Durante o acompanhamento novas e muitas lágrimas. Na despedida muitas mais. Levava do lado esquerdo, bem junto à face, a rosa amarela que levara ao hospital. Pedira a uma outra visita que a guardassem bem para quando regressasse a casa. Regressou em silêncio, mas entregaram-lha como prometido. No direito as duas rosas cor de rosa que diziam obrigado pelo amor que me deste. As quatro rosas já estão com a minha mãe.
Hoje celebrámos, como combinado, a missa de acção de graças pelo seu aniversário. Tinha sido combinado há quinze dias entre amigos. Contara-lhe no hospital. A família de sangue esteve presente. Uma das filhas prometeu continuar o que a mãe fazia na paróquia. Pelo menos parte. Outras agradeceram as cerimónias. Uma, a que mais admirei, afirmou que não havia necessidade de me agradecerem porque ela também era minha. Disse-o mais ou menos assim, ou eu senti-o. No final da missa, ficaram alguns amigos para deixar cair alguma que outra lágrima que ainda não tinha tido a sua oportunidade e para falar de saudades. O filho aproximou-se e disse. Padre, estes cinco euros a minha mãe mandara para o senhor, antes de morrer, para agradecer a missa de acção de graças e para um café. Era coisa sua, porque ela sabia que eu gosto de café. Sorri para ele e para ela. Até depois da partida, continuava a pensar em mim! Era a minha avozinha.
Entretanto vou repetindo que não é nada bom um padre estar muito tempo numa paróquia porque há coisas que doem sem explicação.

quarta-feira, março 28, 2007

sondagem_ Perante a Vida Humana e perante o aborto, que defendes em concreto?

Passados que vão mais de 57 dias da última sondagem e 184 votos, chegou a hora de avaliar a sondagem que estava no lado direito, no sidebar. A questão era:

Perante a Vida Humana e perante o aborto, que defendes em concreto?

E os resultados são:
1.
A Vida humana,
incondicionalmente e como Direito Fundamental _56%
2. A Vida, mas não quero a penalização da mulher _35%
3. A lei vigente actualmente em Portugal _15%
4. A Total liberalização do Aborto _3%
5. Não tenho opinião formada e convicta _1%
________________________________________
algumas considerações:
1. Depois do referendo do dia 11 de Fevereiro, dos resultados, de todas as considerações pós-referendo e das mudanças legais, estruturais e de vida que possam ter surgido nesse dia, parece que esta sondagem não tinha mais sentido. A comprovar o que afirmo, está o número de votos e votantes, número que está longe dos habituais nestas sondagens. Quase me apetece dizer que se perdeu a vontade de discutir ou opinar sobre o assunto. Também a mim me ocorre a vontade de não abordar muito mais que os próprios dados obtidos. Aliás, esta sondagem nunca pretendeu ser um referendo nem a obrigação de uma tomada de posição neste espaço que considero de evangelização. Ela nasceu antes do referendo e foi mantida até hoje. O objectivo deste espaço de tempo também não passa pelo desleixo ou por uma manifestação de reprovação pelo resultado do referendo. Fi-lo para auscultar a tipologia geral nesta área das pessoas que frequentemente visitam este espaço. Fi-lo para perceber como cada um dos meus “penitentes” valoriza a vida, mesmo sabendo que nesta sondagem não está contido o absoluto de respostas nem representa, de todo, o conjunto das questões que se poderiam elaborar sobre a vida. Fi-lo também para que não se esquecesse que a Vida é importante e que não podemos reduzir a reflexão sobre a mesma a um período de referendo. Ela nem se devia referendar propriamente. Mas reflectir, sim.
2. Sobre os resultados, não há muito para comentar. Mais de 50% dos meus visitantes fez ou faz uma clara opção pela Vida, em todas as suas componentes e contextualizações. Imagino que o tenham feito para salvaguardar a nossa vida, a Vida Humana como direito fundamental e o dom da Vida que nos é concedido por Deus.
3. Quase um terço dos votantes escolheu a opção que não penaliza a mulher, embora defendendo a vida. Eu também não gosto muito de condenar, nem me acho nesse direito. Mas se me fosse pedido que fizesse alguma defesa, sairia sempre a favor da vida em toda a sua amplitude. Não quero tecer quaisquer comentários em relação à lei que está para ser aprovada na Assembleia da República. Mas espero que ela não banalize a vida e a defenda deveras.
4. As restantes opções tiveram poucos votos. A lei actual, ou que era actual na data do lançamento desta sondagem, apenas teve 10 votantes. Estavam nela contidos os casos excepcionais. Será que as pessoas hoje já não querem ter, viver ou ser excepção?!
5. Fico contente sobretudo porque a opção da total liberalização não obteve mais que 3%. Questiono-me um pouco sobre o como seria este espaço se a maioria dos votos recaísse nesta opção!
6. Por último resta-me fazer o apelo para que o valor da Vida esteja sempre contemplado nos nossos horizontes!

Hoje surge nova sondagem. Numa época em que, a propósito do novo texto de Bento XVI, “Sacramentum Caritatis”, tanto se especula sobre a Eucaristia, surge esta sondagem que não pretende ser fechada. A Eucaristia tem outros momentos ou acções impor-tantes. Não se trata de escolher o que é mais importante, mas o que se valoriza mais. Sempre podem deixar escritas as razões da escolha e, porventura, as opções que faltam na sondagem. A pergunta é:

Qual o momento da Eucaristia que te prende mais a atenção ou que valorizas mais?

quarta-feira, março 21, 2007

Já viram?

Já viram um indivíduo atender o telemóvel enquanto se caminha para o cemitério com um morto? Eu já. Já viram um cangalheiro atender um telefonema na Capela Mortuária para dizer que agora não posso que estou num serviço? Eu já. Já viram que os funerais têm mais gente fora da Igreja do que dentro? Eu já. Já ouviram as orações de alguns que acompanham o morto fora da Igreja e no caminho do cemitério que são o tempo está bom, o Benfica jogou mal, aquela coisa está mal feita? Eu já. Já viram uma pessoa que em vida nunca recebeu flores da família, filhos e marido, e que depois de morta lhe enchem o caixão de flores? Eu já. Já viram parentes que estavam zangados, de costas voltadas, sem palavra que fosse, nem bom dia, e que na hora choram sobre o corpo que nem madalenas? Eu já. Já viram gente a maldizer a vida porque o padre não reza no acompanhamento fúnebre, mas não esboçam sinal de oração, sequer se benzem? Eu já. Já viram pessoas, depois de perseguir a carrinha funerária, e mal entrados no cemitério, debandarem para junto das campas dos seus, esquecendo o morto a sepultar, esquecendo o resto das exéquias? Eu já. Já viram o início de uma zaragata no meio de um acompanhamento porque se encontraram aqueles que não se podiam encontrar e quase se oferecem porrada por se encontrarem? Infelizmente, eu já. Já viram alguém desbaratar com a família do defunto na hora de ir para debaixo da terra porque, afinal a junta se enganara no terreno da mortalha? Eu já. Já viram um indivíduo na mortuária acender do cigarro para fumar? Eu não vi, mas contou quem viu. E quantas coisas não vimos já nós por aí fora em funerais? E quantas não iremos ver mais?
Enfim, consola-me que os que morrem já não vão ver mais.

segunda-feira, março 19, 2007

Não gostavas de saber-te apaixonada por Jesus?

Adolescente na força dos músculos, das pressas, da alegria e da vontade. Veio porque a mãe pedira para vir. A mesma mãe que não ia à missa e que dizia: vai. Ela insistia. Mas tu não vais! Deixa-te de coisas e não me chateies mais. Pouco tempo demorara a deixar a catequese. Não me apetece. Mas tu não amas a Jesus? Sei lá. A missa é meio seca. É sempre o mesmo. O rosto movia-se com alegria, num ritmo de simplicidade. Os olhos pequenitos, como o resto do corpo, brincavam às mães e aos papás, ainda. Olhavam-me directo e desinibidos. Dir-se-ia que não temia as palavras e que se houvesse culpa por perto, não era dela, de certeza. Eu gostava assim de uma missa mais alegre. Eu quero é divertir-me. A missa não me faz falta. É sempre igual. Já não ia há mais de meio ano. Falei-lhe da comida. Que também era igual, mas que precisávamos dela para viver. Ela respondeu, satisfazendo-se da vitória no combate com o padre. Quando não me apetece, não como. Ainda hoje não jantei. Insisti. E se fosse meio ano sem comer. Morria. Pois, falei-lhe de uma morte espiritual. Não entendeu muito bem, pois olhou-me desconfiada. Utilizei outra arma. Não sentes falta do amor de Deus? Eu conheço jovens que não têm sentido na vida porque se limitam a trabalhar, constituir família, ter casa e ir andando. Para lá de tudo isto, devia haver algo que preocupa mais cada um. E os jovens com fé passavam à frente nesta frente. Ela começou a achar aquilo mais importante. Ou interessante. Notei pelo descair do sorriso, que agora parecia mais disfarçado. Não gostavas de saber-te apaixonada por Jesus? Baixou as armas. Acho que sim. Arrebitou porém, de repente. Mas a minha mãe não me deixa ir à catequese. Eu queria. O João é fixe e eu ficava com ele na catequese. Mas não foi a tua mãe que te mandou falar comigo? Foi. Então tens de falar com ela, pois a catequese dá-te a oportunidade de conhecer melhor Jesus para o poderes amar, e até te ajudará a perceber a Eucaristia. Ela depende da forma com a sentimos e não da forma como é dita ou celebrada. Prometes que vais falar com a tua mãe? Mas falar a sério. Prometo. Levantou-se a correr, como chegara. E eu acenei com a mão, pensando na mãe.

sexta-feira, março 16, 2007

Tem de ser ele o padrinho

O João é meu acólito. Tem treze anos. É bastante responsável. Merece a minha atenção, como padre, como amigo, como companheiro. Entusiasmou-se com a ideia de ser padrinho da primita. Disse-mo a tia. Tem de ser ele o padrinho. E as normas? catequese dos dez anos. Ele só está no sétimo. E não há muitos que fizeram os dez anos e são crismados e não têm manifestação de fé visível e são padrinhos? Ela vencera esta primeira batalha. Mas as leis, mesmo as inventadas, vencem sempre, sobretudo por uma questão de igualdade. Falei disso, mas com alguma tristeza, pois percebia as suas razõesPressupõe-se que um padrinho tenha atingido a sua maturidade da fé. Por isso a, melhores que muitas das que escolhem padrinhos fáceis. E se ele não assinar, para já? Esperamos o crisma e os dezasseis anos. Só que isso criava precedentes. E se eu fosse a outro lado, a outra paróquia, passava-me uma declaração para ele ser padrinho? Claro que entendi, mas falei da incoerência. E já a pedir dó, relembrei que eles, como bons cristãos, deviam ser os primeiros a entender e a facilitar-me a decisão. Eles entendiam. Eram boa gente, de facto. Mas não queriam. E como explicar ao miúdo? Eu posso ajudar. Ele até já lhe ofereceu prendas, padre. Eu ia andando, porque tinha confissões à espreita. Esperavam-me uns colegas. Já quase em desespero, e espero que tenha sido só em desespero e sem pensar porque a frase não foi acertada. Isso agora não é importante. Importante é decidir que sim, que ele pode ser padrinho. Olhei com ar de autoritário. Este olhar não era meu. Era da decisão. Não gosto deste olhar. Abri a porta do carro para entrar. Insistia. Então a resposta é sim. Eu dizia que não. Olhe que vai ser sim. Ficamos combinados. Dizia isto quase a fugir para ter a certeza que não me ouvia dizer não e para que a sua consciência ditasse sim e não houvessem dúvidas. Não. Entrei também com a mesma forma de pensar.
E agora, como vai ser quando abrir definitivamente o carro e a encontrar de novo na reunião de preparação?

quarta-feira, março 14, 2007

Não emprestei o guarda-chuva, senhor padre

Chovia lá fora. Ventava. Ela tremia. Gaguejava. Soluçava. Digamos que chovia também. Senhor padre, preciso mesmo falar consigo. Nunca a tinha visto neste estado. Branca. Doente. Sentou-se ao meu lado. Segurei-lhe a mão esquerda com as minhas. Começaram também a tremer. Pensei o pior. Tropecei as palavras com um esforço de parecerem calmas: Diga, mas acalme-se. Precisava mesmo falar-lhe. Já tinha pensado ir ter consigo, mas temia incomodá-lo. Não sabia se tinha tempo. Lá está mais uma vez a minha desdita. A de muitos. Aconteceu há dias. Chovia imenso. Como hoje. Estava à janela. Tem esse hábito, que eu sei. Sabe sempre a que horas me deito! Uma moça corria por causa da chuva. Estava completamente molhada. Os cabelos pingavam. De repente viu-me e gritou por um guarda-chuva: Tem um guarda-chuva que me empreste? A casa dela ficava longe. Disse-lhe sem pensar que não. No outro segundo arrependi-me e gritei-lhe que sim. Corri à porta. Já ia longe. Berrei, mas a chuva não permitiu que me ouvisse. Voltei para casa com o coração a tremer. Até lá tinha vários, e ela devolvia-mo depressa. Como fui capaz! E repetia estas palavras muitas vezes. Segurava a cabeça com as mãos. Chorava. Eu disse que de facto tinha errado. Mas que agora devia ficar em paz. Não mereço perdão. Merece sim. Toda a gente merece. E continuava aos soluços. Precisava desabafar consigo. Precisava ficar em paz. Ajude-me. Como é que fui capaz de fazer uma coisa destas?! Quem conhece esta senhora sabe que está sempre disposta a ajudar, a dar de si. Não tinha muito sentido ter acontecido. Mas acontece a todos. Até aos mais santos e mais perfeitos. Todos fraquejamos. A moça já estava seca. Agora restava que esta ficasse em paz. Dei-lhe mais umas palavras de conforto. Não chegou. Levantámo-nos. Ainda tremia. Dei-lhe um abraço apertado. Tem 72 anos, minha gente! Apertou-se ainda mais ao meu coração. Quase um minuto sem palavras. No segundo minuto já não tremia tanto.
No outro dia falou para mim do abraço de Deus. E já não é a primeira vez que me falam deste abraço.

segunda-feira, março 12, 2007

As três freiras

O melhor local de Fátima inteira é a Capela do Santíssimo. Também lá encontro Maria. A brisa na Capelinha das Aparições agrada-me. O vento leve que vem à face leva um pouco de mim pelo espaço em silêncio, ou quase. Mas a Capela do Santíssimo é melhor. Não tem brisa, mas faz sentir o mesmo vento que leva um pouco de mim. Procuro um banco ao fundo. Chovia e fechei o guarda-chuva. Fechei também os olhos para abrir o coração. Tão bom, este momento. Quando o faço na paróquia parece diferente. Ninguém olha para mim, o que facilita não olhar ninguém. E após uma boa hora, chegam três mulheres novas, quase iguais. Rosto esbelto, posso garantir, porque me distraí do diálogo com Deus ao ouvir o chocalhar. Abri os olhos e a curiosidade. Vestiam azul claro, num tem quase cinzento. Eram novas, pela beleza, pela sinuosidade da silhueta. Sorridentes. Rosto a terminar no pano azulado que pendia e escondia os cabelos dourados. Imagino, pela tez visível. E donde vinha o chocalhar que quase lembrava o retinir dos sinos sem melodia e menos audíveis, para não falar noutras metáforas menos próprias para o local? Como me haviam distraído, se nem estava interessado em reparar nos presentes ou nas suas belezas!? Ao passarem mais perto reparei nos cordéis cheios de pontinhos organizados, de dez em dez. O rosário. E o porquê do ruído?! O meu que se queda vários dias no bolso esquerdo das calças não faz esse barulho. Foi quando descobri, não um, mas vários rosários, ou terços, como lhe quiserem chamar, um enorme, a pender do mesmo lado, deixa ver, esquerdo também, das roupas azuladas que terminavam quase sem deixar ver os sapatos ou sandálias. Não conheço a congregação nem julgo. Mas pergunto: faria parte das suas regras rezarem por diversos terços?! Ou seria um peso medido que deviam colocar no quadril?! Ou era para sinalizar a sua localização?! Estou aqui e vou passar. Ou adorno?! Que seria afinal? Não consegui perguntar, porque o local era de silêncio, embora as passadas delas, delineadas a manequim, não permitissem a concentração por causa do chocalhar das contas do terço. Como me havia distraído decidi sair para me concentrar.

quinta-feira, março 08, 2007

O fenómeno dos homens que não se confessam

Estava no café, e depois de um trocar de palavras e de atenções. Ó padre, as confissões são pá semana? Respondi afirmativamente. Sexta. Mais umas palavras e atenções, umas graças, e despedimo-nos. Então até sexta se não for antes. Ó padre, eu não vou lá. Perguntei só para dizer à minha. Voltei atrás. Não me diga que nem desta se confessa! Ó padre, sabe… As palavras não eram abundantes para explicar a sua pouca vontade ou indecisão. As asneiras, as carvalhadas. Que vou lá fazer se depois vou continuar?
Ai o fenómeno dos homens que não se confessam! Não é único, este amigo. Faz parte de um universo que nos devia levar a reflectir. Porque será? Porque sempre foi um hábito apenas das mulheres? Ou então consequência de machismo da parte dos homens não assumir? Ou então ser uma Igreja feminista a que temos? Ou dificuldade em aceitar a fé? Ou não acreditar no dom do perdão de Deus? Ou então não sei.
Segundo me dizem, depois de umas asneiritas, de umas carvalhadas, custa-lhes confessar-se. São as razões apresentadas. E julgam que não devem porque ao sair do confessionário já estão naquela porrada de palavras. Mas isso não é propriamente grande pecado! A não ser que sejam ditas para magoar alguém. É antes uma falta de respeito, uma falta de educação. Imaginem o que seria no norte do país, onde dizer asneiras é um hábito normal de todos, até dos padres!
Se for essa a razão, não há razão para não aparecer sexta. Mas será?

quarta-feira, março 07, 2007

E se a Confissão fosse comprada?

Partilha com colegas. Ajuda. Confissões quaresmais. Para alguns, desobriga. Não gosto desta palavra. Éramos quatro. Foi num instante, e como tal, fiquei ali, a observar as pessoas quietas, sentadas à espera de que Deus se manifestasse, digo eu. E observava Deus no altar gótico e no ar. Ele pairava por ali. Encostei-me na parede a pensar. Estava nos fundos. Assistia a tudo sem ser assistido. Diferente esta perspectiva. O colega começou a missa. Imaginei-me no altar em vez do colega, para me apreciar. Continuei incólume. Na hora da comunhão é que reparei que eu era a única cor viva presente. Laranja. Discutível. De resto, cinzas, pretos e afins. Cabelos brancos ou quase a despontarem em alva. As pessoas dispersas pelo espaço. Pouco juntas, convenhamos. É esta a Igreja que se confessa? Terminada a Missa, saímos os quatro. Quantos confessastes, perguntei a um. Uns poucos. E tu? Cinco. Hora e meia para cinco pessoas. As pessoas já não querem nada com a graça de Deus. Querem, quis crer. Foi quando me lembrei. Se fosse a pagar poderia vir mais gente. Dariam mais valor. É como as intenções de missa. As pessoas vêm para a sua missa. É como as promessas. Compra-se Deus, negoceia-se o seu jeito. Se a confissão fosse comprada, se calhar vinha mais gente. Ou não. Ou já não há pecados?! Ou consciência?!

segunda-feira, março 05, 2007

Esta igreja que não é minha

Peguei nas trouxas do confessionário. Desfiz estradas, curvas, vários quilómetros. Parei para beber e dar de beber ao Corsa. Coisa simples. A rodar. Nas minhas mãos, ultrapassando porches e afins. Não vejo ninguém. Asfalto, apenas. A direcção. Onde quero chegar. Fátima, no fim de semana. Sempre que chego, o cheiro de Fátima faz sentir-me noutro mundo. Parece um país dentro de outro. Sempre que entro no Santuário, rezo… e peco. Rezo, porque o ambiente convida. Peco, porque não consigo deixar de pensar mal de algumas coisas que vejo. Nem vou dizer quais. Aquelas que roçam o paganismo e a crendice. Não discuto. Deus tem lugar para todos. Mas dói. Dói uma fé que não tem nada a ver com a minha. Nem tenho nada contra velas. Aliás, elas elevam-me. Transportam-me a Deus e ao círio. A vela para mim representa sempre a fé. A forma como se usa é que pode ter falta dela. Da fé.
Porém, desta vez, fui a Fátima para um encontro bem interessante. Artes. Evangelização. Pluralidade. Comunhão. Workshops. Oração. Muita música. Entretanto, num descanso. Pausa. Saí do espaço onde estava e desviei a minha direcção para outro espaço. Cheio. Muita gente. Gente de pouca formação. Gentes estranhas. Num momento ouço músicas. Noutro vejo coisas estranhas. A determinada altura, alguém começa aos berros. A gritar como uma gata em cio. Levei a minha mão à cabeça. Limpei o susto. Um grupo de branco. Alvas? Padres? Aproximaram-se do ruído. Fecharam as portas e as cortinas. Ninguém de fora podia ter lugar dentro. Penso que ia ter lugar uma bênção. Depois em conversa com uma amiga, soube algo mais. Um padre com o Santíssimo nas mãos. Atrás pessoas vestidas de branco que eram amparadas por outras. Uma vinha atrás a gemer. Caíam e levantavam-se. A minha amiga ficou tremendamente assustada. Eu fechei também as minhas cortinas. As de fumo não. As da paz. Fiquei muito perturbado com esta minha igreja que não é minha. Onde estou?!

quinta-feira, março 01, 2007

Preferia não ter padre

Já é velha a de que os padres é que tiram a fé ou a outra, quase igual mas pior, de que os padres tiram a fé. Tão velha ou mais que a mãe da senhora que me indagou. Padre, a minha mãe já está velha e, quando morrer, não quer ir para a Capela Tal, a que temos neste momento como mortuária. Ela antes quer ir para a Outra Tal. Eu já lhe disse que o senhor não devia querer, mas ela não desiste. Diz que não vai para a Tal de maneira nenhuma. Prefere não ir para lado nenhum. Prefere não ter padre. Fica em casa.
Respondi-lhe, com modos e a sorrir, tentando ajustar os desejos com a idade e com a situação. É obvio que eu não posso forçar ninguém a ir para a capela Tal, mas também não me podem obrigar a mim a assumir desejos sem os desejar ou a fazer o que não for oportuno. Não iria levantar-lhe o corpo. Qualquer um podia lembrar-se disto ou daquilo, inóspito ou não, e fazer exigências sem pedir ou sem medir! Não pus a hipótese. Apenas adiantei. Também não me repugna que ela fique em casa desde que esteja na Igreja à hora das exéquias. Padre, mas ela também disse que levá-la da Igreja para o cemitério, só uns metros, não era nada. De novo preferia não ter padre. Anui que não eram os metros ou quilómetros ou padres ou capelas que a iam salvar. E a resposta veio da boca da filha como sendo da mãe. Os padres é que tiram a fé às pessoas. Como se alguém nos conseguisse tirar tamanha coisa quando ela existe realmente! Há padres muito maus. Não sou eu que digo, mas a minha mãe, que insiste, insiste, insiste. E obriga-me a prometer que, se não for como ela quer, não vá padre.
Ainda me contou que esta senhora tinha sido de missa diária, zeladora mor, ajudante de tudo, responsável de montes de coisas. Que arranjara muitas coisas para a Igreja. Que oferecera. Que pedira. E que não merecia o que alguns padres lhe tinham feito em tempos. Não se dirigia a mim. Graças a Deus. E assim, mesmo não sabendo o que acontecera, entendi o que os tais padres haviam feito.
Haviam-lhe tirado aquela fé. Aquela.