terça-feira, setembro 29, 2020

o nome [poema 285]

Daqui houve um nome que se ouviu no eco 
Um nome que se diz em surdina às paredes 
Com as trepadeiras a entrar pelas janelas 
O vidro baço que as segurava entre madeira antiga 
Um nome que nem se sabia que nome era 
Mas dizia-se, em palavras que se sentiam 
Pulsar entre mãos de terra húmida e corações 
A sangrar. 
 
Eu sou aquele que sou

sábado, setembro 26, 2020

A sociedade irritada V

Hoje usamos as redes sociais porque, para além de ser moda, é o foco da nossa personalização ou identidade, o local onde, como os adolescentes em tempos de emancipação, se procura manifestar uma personalidade. Ou melhor, para se dizer que se existe. Como se isso fosse a personalidade de uma pessoa ou a identificasse! Por isso as redes sociais se tornaram o mundo das opiniões, dos comentadores de bancada, dos julgamentos sem juiz. Por isso se tornaram o álbum favorito das nossas pequenas demonstrações do que visitamos, do que vestimos, do que comemos, das pessoas que nos acompanham, do que fazemos… mesmo que isso diga apenas uma muito ínfima parte de quem somos. Mas o importante é mostrarmos que somos! Por isso somos cada vez mais virtuais e a nossa personalidade é cada vez mais bipolar. 
 

quinta-feira, setembro 24, 2020

as pedras [poema 284]

A paixão das pedras começou cedo 
Durou uma vida inteira para as ver crescer 
Para as colecionar 
E as percorrer 
 
Voltava do mar todas os dias com pedras 
Que eram búzios, caramujos e conchas 
E do campo voltava com mais pedras 
Que eram árvores, flores, e frutos 
E da cidade voltava com mais pedras 
Que eram casas, lojas e outras pessoas 
 
Para subir escadas

terça-feira, setembro 22, 2020

dois mundos num [poema 283]

Viver no desmentido do mundo 
No outro lado das coisas que parecem 
Onde a imaginação não tem limite 
E nada se perde a não ser o efémero 
 
Tenho dó de mim pela distância 
No meu mundo há reservas para ti 
E abraços para te acolherem adentro 
Os dois mundos num só viver 
Onde um começa o outro é.

sexta-feira, setembro 18, 2020

A oração como saída de nós mesmos

Quando ela me disse que não ouvia Deus na oração, que não lhe eram atendidos os pedidos que fazia, que não costumava sentir nada de especial na oração, senti-me obrigado a explicar-lhe onde estava o seu pequeno erro na forma como orava. 
A verdadeira oração vai ao encontro. Não é um monólogo. Não são palavras sem sentido. Mesmo quando são repetições ou fórmulas. A verdadeira oração é relação. Abertura a Deus. A Oração é encontro com o outro, um diálogo aberto do homem com o Tu absoluto. Por isso não podemos fazer dela apenas um recurso psicológico para resolver os nossos problemas, ou um recurso narcisista para nos sentirmos bem. Por isso não podemos fazer dela o constante pedido de favores ou uma busca desesperada de nos sentirmos bem. A verdadeira oração faz-nos sair de nós mesmos e do nosso egocentrismo. Ela deveria ser espaço de relação, de saída e de abandono na direcção de Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta é a minha arma"

terça-feira, setembro 15, 2020

casa [poema 282]

Trazer a casa às costas é viver com tudo em nós 
Carregar o fardo dos espinhos com as sementeiras 
E os prédios ao colo no regaço das matinas 
Trazer para dentro o nosso eco e as vozes 
Que gritámos para nos soltarem tanto peso 
E não fomos ouvidos senão por dentro da voz 
Esse espaço da casa que quer dizer a nossa habitação 
Às costas

sábado, setembro 12, 2020

O trabalho das missas

O meu trabalho não são as missas. Mas é difícil não pensar que o meu trabalho são as missas. Porque as pessoas pensam que os padres só trabalham quando estão a celebrar missas. E nós pensamos que o nosso trabalho anda todo à volta das missas. 
Elas são, como já repeti até à saciedade, tanto para os outros como para mim próprio, o centro, o cume, o núcleo e demais palavras que signifiquem esse ponto nevrálgico da vida do cristão. Mas a vida é sempre maior, mais importante, mais acima que qualquer celebração, por mais nevrálgica que seja. 
Gostava de me entender de outro modo nas missas que celebro, muitas vezes como consumo que se faz parecido ao consumo das refeições diárias. Comer para viver. Gosto da expressão. Mas parece mais uma coisa que se faz para o físico e não para o mais íntimo de nós, que é o sentido da vida. E não sei se as missas alimentam o sentido da missa ou o consumo delas. 
Esta pandemia tem-me dado tanto que pensar! 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As missas ou missinhas"

terça-feira, setembro 08, 2020

iohannes [poema 281]

Calças os pés de terra batida
E tapas o corpo com a terra mãe
No deserto

Sabes o seu nome
Sabes quem é
Mas não sabes por onde vem

Joelho no chão a traçar o caminho
De quem sabes o nome
E não sabes onde,
Mas é

e vem

sexta-feira, setembro 04, 2020

Os abusos da caridade

Ligavam e pediam. E a Manuela, minha paroquiana, dava. Ligavam e pediam. E a Manuela dava. Continuavam a ligar e a pedir, e a Manuela dava, mesmo sem o marido saber. Mesmo sem conhecer muito bem a instituição do outro lado da linha do telefone. Mas podia dar. E dava. Aprendera que a caridade é dar sem saber a quem. Mas, como nem tudo parece o que é, ou é o que parece, no último ano, tornaram a ligar, e a Manuela, porque o seu marido acabara de falecer, porque achava que não era oportuno, porque estava sem vontade anímica para nada, explicou humildemente que o momento não era muito bom, que compreendesse, pois o marido falecera há pouco, que talvez noutra ocasião. E então ouviu do outro lado da linha algo que lhe perfurou o coração através dos ouvidos. Porque é que me está a mentir? A senhora está a mentir, só para não dar. Padre, foi como se tivesse bebido água ardente a pensar que era água natural. Nem consegui desligar o telefone. Foi a menina do outro lado que o desligou. A menina também não precisava dizer mais nada. Agora a Manuela percebera tudo. Finalmente. Há pedidos de caridade estranhos. Esquisitos. Ou melhor, fora da caridade. Verdadeiros abusos para quem vive a caridade e da verdadeira caridade. 

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Pobres de rua"

quarta-feira, setembro 02, 2020

esconderijo [poema 280]

Há duas coisas numa vida escondida:
O lado de quem se esconde e o outro lado
Que são os outros de quem se esconde.

Há porém uma outra face, uma vida,
mais esquecida que escondida,
No meio desse apagamento em si,
De quem nunca se consegue esconder
Porque vive no esconderijo
Que é cada um que se esconde