terça-feira, fevereiro 28, 2023

Beijos na mão

Pegou na minha mão sem eu quase dar conta. Sem mais nem meio mais, levou-a aos lábios e começou a beijá-la. Assim, do nada. Fechou os olhos entretanto, voltado para o seu mundo interior, mas sem parar de dar beijos pequeninos na minha mão. Muito pequenos, mas de um tamanho indizível. Beijos murmurados que, para mim, foram gritos. Foi como se sentisse que eu precisava de sossegar o meu coração. Sussurrei-lhe ao ouvido que o amava muito e ele dava mais força à expressão dos beijos. Foi assim durante um largo tempo. E quando chegou a hora de o deixar, de terminar a visita, o meu querido pai olhou fixamente para mim como se me quisesse dizer que ele olhava por mim. Foi bonito, foi intenso, mas também foi de lágrimas, limpas com as mesmas mãos que tinham sido acabadas de beijar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A oração do meu pai"

sábado, fevereiro 25, 2023

o cego [poema 360]

via as pessoas como árvores a andar

mesmo depois da saliva do mestre lhe ter tocado

no olhar 

 

via pessoas como criaturas sem bondade

a correr no meio da floresta, sem as olhar

 

via o mundo como o lugar das árvores a andar

para um lugar onde não chegava o seu

olhar

Mc 8,22-26

quinta-feira, fevereiro 23, 2023

Precisas de mim, Senhor?

Deus troca-nos as voltas diante das inúmeras ocasiões em que menosprezamos a nossa vocação e missão sacerdotal, porque não vemos os frutos que desejávamos ou porque sofremos embates dolorosos com que não contávamos ou porque, simplesmente, parece que não fazemos nada de especial. E então a vocação questiona-se e periga-se. Por isso, não raras vezes nos questionamos sobre a necessidade da nossa missão. Porquê isto? Por que continuar? O que é que tu queres, Senhor? Mas precisas mesmo de mim e da minha vocação? E depois, sem que se esperasse, em menos de vinte e quatro horas, ou mais coisa menos coisa, és solicitado por um casal que confia na tua missão e precisa que medeies as dificuldades que estão a passar; liga-te uma pessoa que precisa da tua ajuda por causa de alguém que se tentou suicidar e precisa de ajuda de um padre que, como disse, saiba ouvir, dar espaço ao sofrimento e ajudar a encontrar sentidos e luzes ao fundo do túnel; e ainda te contacta uma família que precisa que vás estar com uma familiar em fase terminal, pois precisam tranquilizar-se, tanto esse familiar como a restante família, e sabem que tu, o padre, podes fazer a diferença. Depois da pergunta que um padre faz a Deus da necessidade do seu ministério, obtém estas respostas, e tem de se calar, porque Deus troca-nos as voltas e responde-nos de uma forma meio estranha, mas tão concreta...


A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Chama-se Jesus"

domingo, fevereiro 19, 2023

Jesus no escuro

A capela fica no andar de baixo e é convidativa. Passam-se lá uns bons bocados. De vez em quando, chama-me e eu entro. Geralmente durante o dia, sem horas pré-programadas. É o que mais gosto dela. Está ali sempre, à mão, e pronta a receber-me sem horários e que fazeres. Mesmo durante a noite. E foi numa noite destas que entrei e me sentei ao fundo, numa das últimas cadeiras almofadadas. Não acendi a luz porque as duas lâmpadas acesas, embora discretas, chamavam a atenção para o essencial, o sacrário e a cruz. A luz desta última era tão ténue, mas tão ténue, que mal se percebia a silhueta de Jesus. Era o meu Jesus escondido, pensei. Para que eu soubesse que estava lá, mesmo quando só desse para perceber uma linha ou duas da sua presença. Porém, o mais curioso ocorreu passados uns largos minutos no escuro. Quanto mais tempo permanecia na escuridão, mais o seu rosto se desenhava e se tornava visível. A luz ia crescendo e tomando-lhe forma por inteiro. Quanto mais tempo estava na escuridão, mais se notava a sua presença. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A fissura do braço de Cristo"

sexta-feira, fevereiro 17, 2023

a pétala [poema 359]

era só uma pétala de uma flor
que teimava em ser de outra cor…

todas as pétalas do jardim gritavam em coro:
não podes ser pétala se assim não for!
 
era só a pétala mais bela daquela flor,
o sol nela brilhava como se fosse ardor
as chuvas faziam nela um ninho
as abelhas escolhiam-na pelo sabor
toda a criatura olhava para ela no caminho.
 
era só uma pétala
não era a flor.
 
caiu ao chão... para ser terra
onde pudesse, um dia, brotar uma flor

segunda-feira, fevereiro 13, 2023

as lágrimas do Isidoro e as lágrimas do padre

O Isidoro é um homem de fé, que não falta nunca à missa e ajuda no que pode. A idade começa a notar-se, mas não desiste de dar o seu contributo na comunidade cristã. Digamos que é tímido e discreto, mas conversamos o suficiente. Para além disso, vai conhecendo o seu pároco e sabe que ele procura estar atento aos seus, sobretudo os doentes. As suas homilias falam muitas vezes do sentido da vida e do sofrimento, da morte como caminho da ressurreição e das forças que brotam da fé. E o senhor Isidoro adoeceu. De um momento para o outro, aquilo que parecia uma dor de estômago, passou a ser um caso complicado de cirurgia urgente. Ele já tinha tido a sua dose de sacrifício e dor em outras operações. A operação não correu mal, mas o recobro foi muito difícil. Segundo me contou, viu a morte várias vezes. Até porque estava quase pele e osso. Mas, sabe, padre, houve uma noite que sonhei consigo. E as lágrimas caíram-me. Não era por medo. Era por me lembrar de tantas coisas que o senhor fala e que eu precisava ouvir novamente. Naquela noite, desejei muito ouvir novamente o senhor e reconhecer em si, como instrumento de Deus, a força que eu precisava. O Isidoro contava isto, entre soluços. E a mim vieram a correr duas pequeninas lágrimas de comoção. É que Deus faz coisas através de nós que nem nós sabemos. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A chorar durante a missa"

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

Os papas são homens?

Nasci no tempo de Paulo VI, que admiro sobremaneira, mas só tenho verdadeira recordação de vida e de fé nos últimos três papas. 
Lembro o saudoso papa João Paulo II, o santo súbito, o homem carismático que encantava as multidões, e que mostrou a sua doença e sofrimento até ao fim, deixando o pontificado nas mãos da máquina do Vaticano. Liderou no sofrimento e, na altura, gostei muito disso como sinal de que temos valor até ao fim da nossa vida aqui na terra. Reconheço porém, que não comandou a Igreja nesses tempos. 
Já o papa Bento XVI, um homem bem mais tímido, com a sua renúncia manifestou que o serviço era mais importante que o testemunho, que ser pastor era também saber retirar-se para que outros pastores em melhores condições guiassem o seu rebanho. Na época foi como uma bomba que explodia nas mãos dos que achavam, e porventura ainda estão convencidos, que os papas são infalíveis porque estão mais perto de Deus, na sua divindade, que dos homens, na sua humanidade. 
O papa Francisco, por quem nutro uma empatia de concordância com um novo modo de ver as coisas da Igreja e da humanidade, parece-me um homem livre e destemido, ao ponto de cair em descuidos sistemáticos diante da comunicação social ou do inesperado. É igualmente um homem de simplicidade, que procura uma vivência simples e natural das coisas, começando pelo modo como se estabeleceu no Vaticano e como procura viver com os que o rodeiam. 
Ora, vai-se a ver e os papas, afinal, cada um à sua maneira, são apenas homens com uma missão enorme, gigantesca. Eu diria, com uma missão que parece sobre-humana, mas que é completamente humana, embora a finalidade da missão seja Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja que não é de um Papa"

terça-feira, fevereiro 07, 2023

os casamentos sem divórcio

A noiva sentara-se à minha frente para dialogarmos sobre o seu casamento. Pormenores. Alguma logística. Acerca das leituras não quis saber. Deixou ao meu critério de escolha. Mas sobre a homilia, largou um pedido. Senhor padre, gostava que não falasse de divórcio no meu casamento. Pois muito bem. Falar só coisas bonitas e positivas, que a moça não quer que na festa dela se falem de coisas menos boas. E tem razão, a moça. Tem toda a razão. Os casamentos não servem para falar de coisas tristes. São celebrações do amor e o amor é o caminho da felicidade. Não é o caminho da tristeza. É o caminho da união e não da separação. Por isso, não falarei de divórcio no casamento desta noiva. E evitarei nos casamentos de outras noivas que hão-de vir. Aprendi que nos casamentos só se deve falar de coisas boas, não vá ser mau agouro da coisa. É que uma vez, num casamento, contou-me ela, eu apresentara alguns dados de divórcios em Portugal e acontece que, passado pouco tempo, aqueles nubentes se divorciaram. Foi mau agouro. A tal homilia começara por constatar que o amor era o que mais nos fazia felizes, depois perguntava então porque motivo é que havia tantas divórcios, e no final apresentava pistas do que seria ou deveria ser o verdadeiro amor, aquele amor que não redunda em divórcio. No entanto, a noiva só escutara os dados. E o mais certo é que toda a assembleia só tenha ouvido os dados. E o agoiro agoirou. Pronto, prometo que não vou agoirar mais. Mas olhem que isto me fez lembrar aqueles pais que evitam que os filhos encarem a morte dos entes queridos e fazem de conta para que estes não se aflijam. Não vá ser mau agoiro também e as crianças fiquem tristes.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O caso descaso!"

sábado, fevereiro 04, 2023

flor desfalecida [poema 358]

há uma flor em mim que murchou
de tanto a regar, se cansou, e na terra
húmida de lágrimas, descansou

eu ia todos os dias à fonte buscar mais água
com a cantarinha cheia até ao cimo, a transbordar 
de vida por onde, pouco a pouco, passo a passo,
caía...
e as margens que bebiam dessas gotas, 
em frenesim, cresciam, faziam um jardim
um muro que era um jardim que não tinha,
imaginem só, fim
 
a flor em mim, porém, encharcou-se
por tanto dela cuidar, e desfaleceu
sufocada, com tanto 
amor
cedeu

e se deu