quinta-feira, julho 26, 2012

Corda bamba

Quando era pequeno, experimentei uma vez o trapézio. Ou parecido. Não foi no circo, pois foi à porta de casa, numa corda suspensa e presa a duas varandas que ficavam no primeiro andar. A ideia era caminhar de peito erguido, como os artistas, numa corda suspensa. Foi uma tentativa apenas. Não podia passar de uma tentativa. E bastou para fazer um rasgão na cabeça que teve de levar pontos. É aquilo que chamaria de corda bamba. E hoje lembrei-me desta corda e desta experiência circense dos meus, para aí, sete anos. É que na minha vida de padre sinto-me muitas vezes desta forma, numa corda bamba. Mais parece um circo. Tocamos uma pessoa ou uma comunidade numa bela experiência de fé e sentimos que podemos avançar. Não só podemos, como é bom e dá vontade de avançar. São aqueles momentos em que alguém cresce para Deus com a nossa ajuda. E depois vêm outros momentos em que apenas nos sentimos a funcionar. Nos sentimos como funcionários e a fazer coisas. Uma festa de primeira comunhão que pode ser também a última ou apenas uma das muitas que podiam ser. Uma festa de baptismo para as fotografias e a refeição que vem a seguir. Um casamento para que conste que agora estamos mais juntos do que o que estávamos. Uma missa para não contrariar o ritual de ir à missa. Uma procissão que é tradição na terra. Um crisma que é para ser padrinho de outro crisma ou de preferência um baptizado. Uma burocracia na administração da paróquia que é mais uma empresa sem empregados. Uma papelada para constar que sabemos assinar. Não fazia assim Jesus. Não é isto ser padre. Isto mais parece um circo. E assim me sinto muitas vezes numa corda bamba e acabo por ter medo de, como outrora, fazer um rasgão na cabeça.

quinta-feira, julho 19, 2012

A oração da minha noite

Ontem à noite, antes de deitar-me, fui à janela, como de costume, olhar a noite, o céu escuro e pensar na vida. É um momento em que, embora não fazendo o exame de consciência, passo os meus pensamentos pelo declinar do dia que passou. E geralmente paraliso no tempo, considerando o meu tempo de vida, o que vivo e como vivo. Fico ali parado a pensar e a olhar. Quase sempre concluo que o meu dia não me satisfez. Há sempre um turbilhão de coisas que não estão bem, que não me trazem a paz, que não me fazem sentir realizado. E por isso rezei. Falei com Ele deste sentir. E neste rezar não me senti melhor. Passaram uns largos minutos, estava já a fechar a janela, quando me vieram estas perguntas à mente. Quem procuro na oração? Procuro-me a mim ou a Deus? E descobri que tinha estado à minha procura e não de Deus. Não deve ser assim a oração. E se ela nos traz paz é porque o estar com Ele faz isso. A oração não deve ser egoísmo. Não devemos rezar para nos sentirmos melhor connosco. Devemos rezar para nos sentirmos melhor com Deus.

sexta-feira, julho 13, 2012

Santo Anás

O texto da Oração dos Fieis, a determinada altura, dizia qualquer coisa como Deus nos livre das tentações de Satanás. Ora, Satanás toda a gente sabe que é uma das formas de tratamento para o Demónio ou Diabo. Mas quando se fala neste ser, só de o imaginar, a nossa espinha recebe um arrepio e peras. Porém, o arrepio que me percorreu a espinha no outro dia, durante a missa de uma das paróquias, não se deveu ao ser em causa, mas a outro que, à partida, faria parte dos bons e do reino celestial mais celestial que se pode imaginar. Conto. A Carlita deve ter uns quinze anos e é uma moça cinco estrelas. Quando vai à missa, participa nos cânticos e nas leituras. Lá estava ela preparadinha da silva, como se costuma dizer, para ler a oração dos fiéis. E tudo correu na perfeição até ao exacto momento em que surge a palavra “satanás” e a Carlita se desconcentra e acaba por apelar a Deus para que nos livre das tentações do santo Anás. E foi por este motivo que um arrepio me percorreu a espinha e me fez meter mão à boca para que ninguém visse a minha vontade de me espalhar em gargalhas. Todavia, aprendi duas coisas. Primeiro, que ninguém na assembleia devia estar atento, porque ninguém fez gestos parecidos com o meu. Segundo, para que peçamos que nos livre das tentações, este santo só pode ser o padroeiro das altas farras. Ora toma lá, santo Anás.

sábado, julho 07, 2012

Reze, padre, reze. Mas não reze muito

O colega estava em casa de uma família amiga da paróquia. Acabado o jantar, o filho mais novo, um petiz de 11 anos, para meter conversa com o padre, revelou que a sua tia, uma senhora consagrada que mora num instituto religioso, diz que reza muito para que ele seja padre. A reação do padre não se fez esperar e aproveitou a deixa para mostrar que era uma óptima ideia. Ora ficas tu a saber, Afonso, que também eu tenho rezado muito para que tu sejas padre, para que Deus te chame e tu lhe respondas que sim. Nisto o pai do miúdo, bom homem, homem de missa que até, se for preciso, dá uma mãozinha ao padre, diz em tom de quase brincadeira. Reze, padre, reze. Mas não reze muito. O colega não contou o que se passou a seguir. Mas, para terminar a sua história, bateu-me no ombro e disse. São assim as famílias de hoje. Mesmo as famílias que vão à missa. Os filhos são poucos e é melhor que não sejam padres. E repetiu. Reze, padre, reze. Mas não reze muito.

terça-feira, julho 03, 2012

O padre é uma loja aberta

A senhora chegou à hora que lhe deu jeito. Ainda não seriam dez horas. Queria falar com o padre. É só com ele. A funcionária informou que o padre não devia estar disponível. A senhora insistiu. Os padres devem estar sempre disponíveis. Foi desta maneira soft que a funcionária, com os olhos a olhar o chão, contou o que a senhora respondera. A sua forma de olhar para o chão deu-me a entender que não deveriam ter sido bem estas as palavras utilizadas pela senhora. Eu já tinha explicado à funcionária que preciso de tempo para mim, para as minhas coisas, para me preparar, para meditar, para organizar a paróquia e as coisas da paróquia, para fazer as homilias, para rezar. Por isso marquei horas e dias de atendimento, a não ser que hajam casos urgentes. A minha funcionária respeita muito este meu desejo. Mas muitas pessoas não. E é verdade que os padres devem ser pessoas disponíveis. Mas não têm de ser lojas abertas. Aliás, mesmo as lojas abertas têm horários de funcionamento. Para mim a disponibilidade do padre deve ser acima de tudo uma disponibilidade de coração. As pessoas vão ao médico quando este tem o consultório aberto. Vão às repartições quando estas estão abertas. Vão ao supermercado quando este está aberto. Mas vão ao padre quando lhes dá jeito e o padre, seja a que horas for, tem de ser a loja aberta.