quarta-feira, novembro 29, 2023

Ter que fazer diferente

Vivemos no tempo das palavras que toda a gente tem que dizer e das opiniões que se têm de dar. Proliferam notícias, reportagens, entrevistas, artigos de opinião sobre tudo e mais alguma coisa. Aliás, parece-me que nunca como hoje os artigos de opinião ocuparam tanto espaço na comunicação social, assim como o direito de contraditório, isto é, artigos a falar de alguém que contrasta o que outro afirmou ou que defende uma ideia que outro contrastou. Ora, como a Igreja existe num aqui e agora, ou seja, nesta sociedade e nesta história, sofre dos mesmos males. 
Esta introdução vem a propósito dos chavões que cansam, das mesmas frases que se ouvem anos seguidos de gente que supostamente descobriu que na pastoral se tem de fazer diferente, embora quase nunca se diga que diferença é essa a que se refere essa opinião. Toda a gente parece vir a público com a consciência de que as coisas estão mal e que há que fazer diferente. Mas até nesse ‘dizer’ se mantém tudo na mesma. É o mesmo 'dizer' de sempre. Faltam rasgos. Faltam verdadeiros pensadores práticos, objectivos, assertivos, que ousem arriscar horizontes, mas que, sobretudo, ponham mãos à obra, sujem as mãos nessa obra, se gastem, ao menos, a tentar, sem certezas, mas com a consciência de que o caminho só se faz caminhando e que as palavras podem ser apenas isso, palavras. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Às vezes sinto que não escolhi o meu destino"

sábado, novembro 25, 2023

o passo [poema 377]

ainda resisto em dar o passo.
lembro que dar é mais fácil que pedir, mas o passo 
está à minha frente, sei que posso 
deixar que seja o passo, para ser,
ou o passo por acrescentar 

ainda resisto por não saber 
o tamanho de vida que tem este passo, por isso passo 
o tempo a olhar o passo sem o tornar passo.
olho-o e ali me fico, no passo 
que hei-de dar

terça-feira, novembro 21, 2023

procuro a fé…

imagem de benzoix no Freepik
Penso muitas vezes a fé. A fé vive-se, mas também se pensa. Pensa-se para se descobrir e para se encontrar as razões dela. E procuro-a entre a razão e a vida. Procuro-a e gosto de não a encontrar. Para andar sempre à sua procura. Vivemos num tempo em que a fé é chamada, como dizia Hallík, a sair da casa das certezas em que sempre viveu. Eu sei que a fé é um dom de Deus, pois começa n’Ele. Gosto, porém, da inquietação que ela gera em nós. E as dúvidas, as incertezas. A vontade de ir sempre mais longe e mais profundo, até ao lugar maior do coração de Deus. Também as crises de fé são ou podem ser um estímulo da fé. Sei que tenho fé ou essa qualquer coisa que mexe comigo e sei que tem a ver com um coração a querer juntar-se ao coração de Deus. Chamemos-lhe fé. E eu chamar-lhe-ei Amor. Chamemos-lhe ‘mistério’ e eu chamar-lhe-ei ‘procura’. Quanto mais desvelo a fé, mais me apetece procurá-la. Só se procura aquilo que já se encontrou, mas se quer encontrar mais e melhor. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Obrigado pela fé que me deste"

sexta-feira, novembro 17, 2023

O céu do senhor João

O senhor João é um homem divertido. Geralmente acompanha as palavras, mesmo as profundas, com um sorriso. O rosto apimenta-se cada vez que tem oportunidade de dar uma graça. É um homem bem-disposto, mas isso não significa que não pense o que diz. Falávamos do céu e da morte. Da dificuldade das pessoas diante da morte. Do que nos espera ou desespera. E o senhor João olhou para mim de um modo muito sério, que quase me assustou, e disse em tom de desdém. As pessoas não querem morrer, não querem morrer, mas elas não pensam no que dizem. Eu tenho a certeza de que no céu se deve estar muito bem, porque ainda ninguém de lá voltou. E começou a rir às gargalhadas com o seu próprio argumento.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Será que os animais vão para o céu?"

segunda-feira, novembro 13, 2023

Seminários que formam clérigos e não pastores

Quando leio o que alguns jovens seminaristas escrevem por estes dias, por ocasião da semana dos seminários, e me apercebo que lhes falta a frescura das palavras e da novidade de Cristo no seu coração, e que insistem em repetir palavras clericais que parecem ter aprendido no percurso do seminário, palavras de bem dizer, mas que dizem pouco, devo confessar que fico triste. Parece-me que falta vida nos nossos seminários. Vida de verdade. Não quero generalizar e quero imaginar que a grande maioria dos nossos seminaristas é bem mais santa do que eu. E precisamos de padres santos. No entanto, estou convencido que ainda há muito por fazer para que os seminários deixem de ser redomas de vidro que protegem os futuros padres dos males do mundo ou fábricas de uma casta clerical que se fecha sobre si mesma. Ainda bem que a assembleia sinodal do último mês de outubro deixou plasmada, no seu relatório de síntese, a necessidade de uma formação dos candidatos ao sacerdócio ministerial que não crie um ambiente artificial separado da vida normal dos fiéis. Precisamos de seminários que formem pastores e não clérigos!

sexta-feira, novembro 10, 2023

Olha que Deus castiga

Quando a mãe, uma jovem dos seus trinta anos, disse ao filho rebelde de oito anos que, se ele não se portasse bem, Deus o castigava, não me contive. A catequista do filho contara-lhe como ele se comportara mal na catequese, e aquela mãe solicita achou que a melhor pressão era invocar o castigo de Deus. Creio que o disse sem pensar e tal como já o ouviu muitas vezes desde pequena. Mas assim é dificílimo que as crianças aprendam a gostar de Deus. Mais lhe terão medo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

quarta-feira, novembro 08, 2023

orfandade [poema 376]

a menina recortava a seara, ceifando o tempo, 
longe se encontrava de viver ao colo 
aquela que tanto almejava, para 
crescer 
 
a menina soluçava enquanto pulava 
de monte em monte, desnorte 
entre os primeiros tempos das chuvas e as noites 
de inverno, à procura, sem sorte, 
daquela que dá à luz 
a vida 
 
ai menina, menina, que à força cresces, para ser 
essa mãe que tanto, mas tanto
procuras

domingo, novembro 05, 2023

As mulheres no sínodo

A XVI Assembleia do Sínodo dos Bispos, ocorrida entre 4 e 29 de outubro deste ano de 2023, teve substanciais novidades em relação às anteriores assembleias. A inclusão de mulheres, ainda por cima com direito a voto, foi uma das mais notáveis. Dos 365 participantes, 54 eram mulheres, todas elas com direito a voto. No entanto, quando, durante a assembleia, se falou do papel das mulheres na Igreja, a discussão foi renhida e, na hora das votações, foi a temática que obteve mais votos negativos, embora com os votos positivos necessários para ser aprovada. Dos 344 participantes presentes na congregação geral conclusiva, 69 foram desfavoráveis. Foi sobretudo o potencial acesso das mulheres ao ministério diaconal que causou dificuldades. Uns foram contrários, porque consideram estar em descontinuidade com a Tradição, e outros favoráveis, porque consideram ser um regresso a uma prática da Igreja das origens. 
Já manifestei publicamente que não me parece essencial a ordenação de mulheres, seja diaconal ou sacerdotal, assim como também não sou contra que se dê esse passo, pois uma das coisas que mais valorizo na Igreja que defendo é a comunhão de diferentes em pé de igualdade. O que me parece é que, às vezes, se reduz o assunto a uma questão de emancipação da mulher e isso, a meu ver, seria reduzir o assunto a questões secundárias. Assim como desejo que esta aspiração das mulheres ao sacerdócio ministerial não seja mais uma forma dissimulada de clericalismo, isto é, uma forma de as mulheres também terem acesso ao poder eclesiástico. Seria atacar o clericalismo com outro clericalismo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja das mulheres"

quinta-feira, novembro 02, 2023

Poderia ter sido mais moderado, padre

Diante do enigma e mistério da morte, estes dias de romagens ao cemitério, optei por ler aquela passagem em que Jesus diz ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’, e fazer alusão à diferença entre dia de ‘finados’, porque a palavra vem do latim ‘fine’ e aponta para o fim, e o dia de ‘fiéis defuntos’, porque a palavra defunto vem de ‘fungor’ e significa ‘cumprir’. Escolho a segunda para dizer que a vida dos que partiram ‘cumpriu-se’, chegou ao seu cumprimento aqui na terra peregrina e alcançou a eternidade. Por isso convido a fazer memória agradecida pelo dom da vida dos que amamos e já partiram. Agradecer por terem cumprido a sua missão. Agradecer mais ainda o dom das suas vidas nas nossas vidas. 
Mas ela não quer ouvir falar positivamente da morte. Não quer achar que as vidas se cumprem quando nós achamos que ainda nos fazem falta. E, por isso, no final, porque lhe custou a intensidade das palavras, veio dizer-me com amizade: o senhor padre poderia ter sido mais moderado. Viu o pai falecer há uns largos meses, mas o tempo insuficiente para fazer de conta que não lhe doi ou para atravessar a dor. Doi e fica-se na dor demasiado tempo. Ou fica demasiado tempo a fugir da dor. Vai serenando, mas não gosta de pensar que o pai realmente partiu. É como se, cada vez que pensa na realidade da partida, não quisesse pensar que é realidade. Disse ainda que me entendia, mas que achava que não devia ter falado como falei. Gostei da sua sinceridade. Contudo, ou a mensagem não passou tal como a idealizei, ou esta jovem é o claro fruto desta sociedade que tudo faz para esconder a dor ou evitar confrontar-se com ela.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"