quinta-feira, outubro 27, 2022

a religião do bem-estar

Ó senhor padre, quando venho à missa até me sinto bem. Pareço outra. Aqui encontro paz, e gosto muito das palavras do senhor padre. Claro que, ao escutá-la, o senhor padre em causa fica contente. Como se tivesse cumprido bem a sua missão de anunciar a Boa Nova da Salvação. Contudo, é bem provável que não o esteja a conseguir. É que a Justina vive, experimenta e defende uma espiritualidade de degustação. Aproxima-se da Igreja Católica tanto como se aproxima de outras experiências espirituais esotéricas ou das filosofias orientais. Também gosta de se encontrar com a natureza, sacralizando-a. É um pouco zen, dizem os amigos. Tudo lhe serve desde que se sinta bem. No fundo, ela busca a religiosidade para se sentir bem, ou seja, busca-a por si mesma e para si mesma. Não a busca para se encontrar com Deus. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O senhor que agradece tudo"

segunda-feira, outubro 24, 2022

As gravatas dos padres

Ficara com a sensação de que a sua conferência sobre o baptismo e o sacerdócio comum dos fiéis não estivera mal. É certo que lhe apertava a gravata e o casaco de fato naquele dia de calor mas, tirando isso, a coisa correra bem e a assembleia parecia interessada. Já as pessoas iam saindo quando se lhe acercou um senhor da primeira fila, que o escutara atentamente, para o felicitar e lhe dizer que estava inteiramente de acordo com ele, pois também achava que o sacerdócio comum dos fiéis realçava o papel e lugar dos leigos na Igreja. Tinha apenas uma objecção que, para este senhor, era decisiva. Não queria incomodar, mas achava que o devia dizer: “Saiba, porém, que sou contra os padres de gravata”. No meio de um sorriso, o conferencista respondeu-lhe dizendo que não tinha nada contra padres com gravata ou sem gravata, contra padres com cabeção ou sem cabeção, e que ele ficasse tranquilo, porque não estava diante de um padre. O conferencista, que era um leigo, acabara por desconstruir a teologia do laicado do seu ouvinte. Afinal, este não entendera bem a igualdade fundamental da categoria do sacerdócio comum dos fiéis. Na sua mente ainda havia resquícios de uma distância assinalável, mas sobretudo distintiva, entre clero e leigo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja de mãos dadas"

quinta-feira, outubro 20, 2022

A educação na catequese

Entre os interessados no assunto, os agentes pastorais, os catequistas, falamos que é necessário revitalizar a catequese, para se tornar menos escolar e doutrinal, e mais kerigmática e testemunhal. Falamos que os esquemas e guiões actuais não funcionam, não correspondem às necessidades e expectativas das crianças e dos jovens, e se têm de remodelar itinerários que tenham em vista o amadurecimento da fé e não as festas e os sacramentos-festas. Mas falamos pouco da educação na catequese. Falamos pouco das crianças e dos jovens que vão à catequese e, com uma grande falta de educação e respeito, não permitem que as sessões de catequese decorram num ambiente adequado e necessário. A boa vontade dos catequistas, geralmente com fraca formação pedagógica, não chega para ultrapassar esta circunstância. Mesmo os mais formados têm enormes dificuldades. Dizia-me há dias uma catequista – por sinal uma das que já provou que consegue manter alguma autoridade nas sessões de catequese – que a falta de educação era tanta que, no seu grupo actual, não se coibiam de dizer carvalhadas na sala ou tratar-se mal diante do catequista. Embora não a maltratassem, nunca na sua vida tinha estado diante de um grupo tão mal-educado.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Esta Igreja é uma treta"

sábado, outubro 15, 2022

os padres santos XV

Conheço padres que querem ser bispos. Se calhar já se ordenaram com a vocação de ser mais que padres. Porque acham que ser bispo lhes dá um plus de qualquer coisa mais à vocação. Como se a vocação não fosse servir. Pergunto-me se quererão ser bispos para servirem melhor. Mas para servir melhor, basta estar pronto a servir. Como padres. Como leigos. Como, sobretudo, cristãos. E onde é que estes padres poderão ser santos? Serão santos na forma de querer ser mais e não se contentarem em ser menos que mais para Deus. Se acham que servem melhor como bispos, serão santos querendo ser bispos.

segunda-feira, outubro 10, 2022

os padres santos XIV

Conheço padres brincalhões. Que vivem com um sorriso na boca como se duas traves orientassem os maxilares nessa posição de alegria. Gosto destes padres quando são genuínos e não se riem para parecer que se riem ou para esconder a tristeza que os habita. Gosto de pensar que Deus é humor e que gosta de fazer rir de verdade. Por isso um padre brincalhão é sempre o início de um sorriso para fora dele. Não me refiro aos palhaços que são palhaços para se rirem a olhar para eles. Mas gente que está de bem com a vida dada por Deus e gosta de ver toda a gente bem-disposta. Por esse motivo, são santos a sorrir. Como se costuma dizer, mais vale um triste santo do que um santo triste.

quarta-feira, outubro 05, 2022

os crismas e as diferenças

A Cristina é uma jovem da paróquia que, depois de ter concluído dez anos de catequese, está a finalizar a preparação próxima para realizar o sacramento do Crisma. O João é de uma outra paróquia, que dista uns dois quilómetros desta, e deixou a catequese há muitos anos, logo que fez a Primeira Comunhão, pois não queria mais andar na seca da catequese. Entretanto, aquela paróquia deixou de organizar a catequese paroquial. A Cristina vai a crismar em breve nesta paróquia. O João crismou-se no ano passado na outra paróquia. São colegas na escola. Numa conversa de recreio, a Cristina contou ao João que ainda tinha uma série de encontros para o Crisma. Ela e mais alguns, como ela, estavam a fazer uma síntese da fé com a catequista, iam preparar algumas dinâmicas e animações para a celebração e parece que ainda teriam uma vigília de oração com o senhor padre. O João respondeu que apenas tinha tido uma reunião para se crismar. E bastara. O João gozou com a Cristina. A Cristina ficou triste. O João achou que o padre da paróquia dele é que era fixe. A Cristina não soube o que pensar. Não é que não gostasse do seu pároco, mas também gostava de ficar em casa em vez de ir aos encontros. Também não é que os encontros fossem propriamente uma seca, mas estava-se melhor sem eles. O João ficou na mesma, e a Cristina ficou a pensar. O João crismou-se para poder ser padrinho de papel. A Cristina é bem capaz de também se tornar apenas madrinha de papel. O João não teve oportunidade para o não ser. A Cristina está a ter essa oportunidade. Foi isso que lhe disse.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quer ser padrinho"

domingo, outubro 02, 2022

O dono da paróquia

Chamou-me a atenção quando, no início do ano pastoral, em meados de Setembro, se disse que o novo pároco iria tomar posse da paróquia no dia tal. Não é propriamente novidade, porque todos os anos, por essas alturas, se houve o termo “posse” para dizer da vinda ou ida de um novo pároco para uma ou várias comunidades cristãs. No entanto, o termo cristaliza, consciente ou inconscientemente, o clericalismo das nossas comunidades cristãs. Tomar posse é apropriar-se, adquirir uma propriedade sobre a qual se tem poder e se é dono. O termo sugere mais os direitos que os deveres, mais o poder que o serviço. E o novo pároco lá vai possuir a nova propriedade. É o seu novo dono.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Às vezes sinto que não escolhi o meu destino"

quinta-feira, setembro 29, 2022

buscar o senhor padre ao céu

Eram umas santas devotas, as senhoras que enfeitavam os andores. Castiças e faladeiras. Contavam como eram as festas noutros tempos. Os seus tempos de meninice, quando a vida dos povos ainda girava à volta das paróquias ou se confundia com elas. Um tempo bom, sem dúvida, mas também cheio de caprichos, veleidades, quimeras. Uma espécie de devoções pagãs. Ó senhor padre, porque é que não fazemos como fazíamos dantes? Era tão bonito. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu. A procissão passava por ali e a festa enchia-se de gente. As crianças levavam não sei o quê. Era um arraial. E mais isto e mais aquilo. Era uma alegria, senhor padre. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu.
As ideias das santas devotas não eram más, mas eram descontextualizadas. Muito descontextualizadas. Como uma casa com o telhado no chão, duas ou três paredes em pé, mas se quer habitar como se não fosse casa em ruínas. E às tantas, o padre, cansado das belas ideias que, por mais explicações que desse, não conseguia contradizer, teve de dizer, com o rosto entre o sério e o sorriso maroto. A melhor solução é irem buscar o senhor padre Manuel ao céu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Procissões cheias de gente"

segunda-feira, setembro 26, 2022

Os pecados simplesmente

A senhora Antónia, que o nome me parece bem para a circunstância, faz parte do grupo de pessoas que tem medo de Deus por causa de achar que Deus castiga quem peca. No mínimo com o inferno. Por isso anda de roda dos padres à procura de sítio para entrar no céu, presa a alguma batina. E não se cansa dessa missão. Volta e meia, volta à carga com a sua aflicção. 
O pecado, minha estimada senhora Antónia, não existe para termos medo de viver. Existe como forma de ser pedra no caminho, e tanto pode servir para asfaltar a estrada, como pode servir para tropeçar na estrada. Viver o pecado com medo é o mesmo que ter medo da criação de Deus e do projecto de Deus para a criação. Como se Deus inventasse a criação de forma errada, por engano ou lapso. Como se Deus quisesse humilhar a sua criação imperfeita e assim deixasse claro quem mandava e quem tinha de obedecer. Como se Deus tivesse criado a humanidade para ter pena de nós. Não. Os pecados não são uma muralha. São uma ponte. São a humanidade que caminha na direcção do Deus perfeito e feito de amor. Perfeito no amor. O Deus que nos criou imperfeitos para nos amar como somos, na necessidade de caminhar para ser melhor. Esse caminho a que chamamos caminho da santidade.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me uma pecadora"

quarta-feira, setembro 21, 2022

O nosso senhor padre antigo

Numa troca de palavras com uma dezena de paroquianos, uma senhora, ao falar de um colega padre que fora o pároco deles há umas dezenas de anos, usou o termo “o nosso senhor padre antigo”. Olhei para ela com admiração e manifestei-lhe a minha alegria por ouvir falar do meu colega com esta designação, como se algo dele ainda restasse e quedasse neles. Como se ainda lhes pertencesse pelo bem que lhes fez. 
As pessoas que passam nas nossas vidas e nos deixam marcas são sempre um pedaço de nós e em nós permanecem desse modo. Por isso aquele meu colega ainda era um senhor padre deles, ainda que mais antigo do que o que aquele que tinham agora à frente dos rumos da paróquia. Foi muito bom ouvir aquelas palavras.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O padre que decidira deixar a comunidade sem padre"