sábado, outubro 15, 2022

os padres santos XV

Conheço padres que querem ser bispos. Se calhar já se ordenaram com a vocação de ser mais que padres. Porque acham que ser bispo lhes dá um plus de qualquer coisa mais à vocação. Como se a vocação não fosse servir. Pergunto-me se quererão ser bispos para servirem melhor. Mas para servir melhor, basta estar pronto a servir. Como padres. Como leigos. Como, sobretudo, cristãos. E onde é que estes padres poderão ser santos? Serão santos na forma de querer ser mais e não se contentarem em ser menos que mais para Deus. Se acham que servem melhor como bispos, serão santos querendo ser bispos.

segunda-feira, outubro 10, 2022

os padres santos XIV

Conheço padres brincalhões. Que vivem com um sorriso na boca como se duas traves orientassem os maxilares nessa posição de alegria. Gosto destes padres quando são genuínos e não se riem para parecer que se riem ou para esconder a tristeza que os habita. Gosto de pensar que Deus é humor e que gosta de fazer rir de verdade. Por isso um padre brincalhão é sempre o início de um sorriso para fora dele. Não me refiro aos palhaços que são palhaços para se rirem a olhar para eles. Mas gente que está de bem com a vida dada por Deus e gosta de ver toda a gente bem-disposta. Por esse motivo, são santos a sorrir. Como se costuma dizer, mais vale um triste santo do que um santo triste.

quarta-feira, outubro 05, 2022

os crismas e as diferenças

A Cristina é uma jovem da paróquia que, depois de ter concluído dez anos de catequese, está a finalizar a preparação próxima para realizar o sacramento do Crisma. O João é de uma outra paróquia, que dista uns dois quilómetros desta, e deixou a catequese há muitos anos, logo que fez a Primeira Comunhão, pois não queria mais andar na seca da catequese. Entretanto, aquela paróquia deixou de organizar a catequese paroquial. A Cristina vai a crismar em breve nesta paróquia. O João crismou-se no ano passado na outra paróquia. São colegas na escola. Numa conversa de recreio, a Cristina contou ao João que ainda tinha uma série de encontros para o Crisma. Ela e mais alguns, como ela, estavam a fazer uma síntese da fé com a catequista, iam preparar algumas dinâmicas e animações para a celebração e parece que ainda teriam uma vigília de oração com o senhor padre. O João respondeu que apenas tinha tido uma reunião para se crismar. E bastara. O João gozou com a Cristina. A Cristina ficou triste. O João achou que o padre da paróquia dele é que era fixe. A Cristina não soube o que pensar. Não é que não gostasse do seu pároco, mas também gostava de ficar em casa em vez de ir aos encontros. Também não é que os encontros fossem propriamente uma seca, mas estava-se melhor sem eles. O João ficou na mesma, e a Cristina ficou a pensar. O João crismou-se para poder ser padrinho de papel. A Cristina é bem capaz de também se tornar apenas madrinha de papel. O João não teve oportunidade para o não ser. A Cristina está a ter essa oportunidade. Foi isso que lhe disse.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quer ser padrinho"

domingo, outubro 02, 2022

O dono da paróquia

Chamou-me a atenção quando, no início do ano pastoral, em meados de Setembro, se disse que o novo pároco iria tomar posse da paróquia no dia tal. Não é propriamente novidade, porque todos os anos, por essas alturas, se houve o termo “posse” para dizer da vinda ou ida de um novo pároco para uma ou várias comunidades cristãs. No entanto, o termo cristaliza, consciente ou inconscientemente, o clericalismo das nossas comunidades cristãs. Tomar posse é apropriar-se, adquirir uma propriedade sobre a qual se tem poder e se é dono. O termo sugere mais os direitos que os deveres, mais o poder que o serviço. E o novo pároco lá vai possuir a nova propriedade. É o seu novo dono.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Às vezes sinto que não escolhi o meu destino"

quinta-feira, setembro 29, 2022

buscar o senhor padre ao céu

Eram umas santas devotas, as senhoras que enfeitavam os andores. Castiças e faladeiras. Contavam como eram as festas noutros tempos. Os seus tempos de meninice, quando a vida dos povos ainda girava à volta das paróquias ou se confundia com elas. Um tempo bom, sem dúvida, mas também cheio de caprichos, veleidades, quimeras. Uma espécie de devoções pagãs. Ó senhor padre, porque é que não fazemos como fazíamos dantes? Era tão bonito. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu. A procissão passava por ali e a festa enchia-se de gente. As crianças levavam não sei o quê. Era um arraial. E mais isto e mais aquilo. Era uma alegria, senhor padre. Estávamos assim habituados desde o tempo do senhor padre Manuel, Deus o tenha no céu.
As ideias das santas devotas não eram más, mas eram descontextualizadas. Muito descontextualizadas. Como uma casa com o telhado no chão, duas ou três paredes em pé, mas se quer habitar como se não fosse casa em ruínas. E às tantas, o padre, cansado das belas ideias que, por mais explicações que desse, não conseguia contradizer, teve de dizer, com o rosto entre o sério e o sorriso maroto. A melhor solução é irem buscar o senhor padre Manuel ao céu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Procissões cheias de gente"

segunda-feira, setembro 26, 2022

Os pecados simplesmente

A senhora Antónia, que o nome me parece bem para a circunstância, faz parte do grupo de pessoas que tem medo de Deus por causa de achar que Deus castiga quem peca. No mínimo com o inferno. Por isso anda de roda dos padres à procura de sítio para entrar no céu, presa a alguma batina. E não se cansa dessa missão. Volta e meia, volta à carga com a sua aflicção. 
O pecado, minha estimada senhora Antónia, não existe para termos medo de viver. Existe como forma de ser pedra no caminho, e tanto pode servir para asfaltar a estrada, como pode servir para tropeçar na estrada. Viver o pecado com medo é o mesmo que ter medo da criação de Deus e do projecto de Deus para a criação. Como se Deus inventasse a criação de forma errada, por engano ou lapso. Como se Deus quisesse humilhar a sua criação imperfeita e assim deixasse claro quem mandava e quem tinha de obedecer. Como se Deus tivesse criado a humanidade para ter pena de nós. Não. Os pecados não são uma muralha. São uma ponte. São a humanidade que caminha na direcção do Deus perfeito e feito de amor. Perfeito no amor. O Deus que nos criou imperfeitos para nos amar como somos, na necessidade de caminhar para ser melhor. Esse caminho a que chamamos caminho da santidade.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sinto-me uma pecadora"

quarta-feira, setembro 21, 2022

O nosso senhor padre antigo

Numa troca de palavras com uma dezena de paroquianos, uma senhora, ao falar de um colega padre que fora o pároco deles há umas dezenas de anos, usou o termo “o nosso senhor padre antigo”. Olhei para ela com admiração e manifestei-lhe a minha alegria por ouvir falar do meu colega com esta designação, como se algo dele ainda restasse e quedasse neles. Como se ainda lhes pertencesse pelo bem que lhes fez. 
As pessoas que passam nas nossas vidas e nos deixam marcas são sempre um pedaço de nós e em nós permanecem desse modo. Por isso aquele meu colega ainda era um senhor padre deles, ainda que mais antigo do que o que aquele que tinham agora à frente dos rumos da paróquia. Foi muito bom ouvir aquelas palavras.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O padre que decidira deixar a comunidade sem padre"

sábado, setembro 17, 2022

Agarrado pelas mãos

Nos últimos dias vive entre picos de febre e rastos de febre. Come menos, segundo as cuidadoras me contam. Mas o rosto não engana. Come muito menos. Já fez alguns exames, mas apontam a nada que signifique algo concreto. Eu sei que a idade tem estas coisas e que a doença dele as destapa. Pouco olhou para mim desta vez. Nem os olhos ficaram parados. Ou se estavam parados, eu não via porque estavam igualmente fechados. Desta vez só as mãos falaram. O meu coração sente que a hora se torna mais visível e mais dolorosa. A enfermeira não o esconde. Eu gostava que ela o escondesse para eu pensar que eram apenas ideias minhas vindas da saudade e de um coração que deve tanto a quem nos dá a oportunidade de viver. Ao percebê-la, a lágrima cai pela máscara. Ninguém dá conta. Ele está no mundo dele e a enfermeira virou costas. Dou-lhe muitos beijos através da máscara. Encosto a minha face aos seus lábios e peço um beijo. Ele deu. Um beijo muito apagado, mas que guardei como se fosse o beijo mais expressivo do mundo e arredores. Foi o sinal mais positivo do meu paizinho nesta tarde. Enorme sinal. A ajudá-lo, as mãos agarradas quase o tempo todo da visita. Muito agarradas. Só me lembrava que eram o pedido para as não largar. No final decidi que em breve irei de novo, mas com os óleos dos enfermos na minha mala.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O tempo do meu pai"

quarta-feira, setembro 14, 2022

os pecados e as pessoas

No mundo há, a meu ver, quatro tipos de pessoas que se relacionam com o pecado de modo diferente. Existem pessoas constantemente aflitas por causa dele. Fazem parte de um modo de ser Igreja que aprendeu a viver a fé presa ao antigo e com o pecado repetidamente a entrar pelos ouvidos e pela cabeça. Não conseguem deixar de ter medo de Deus que castiga os pecadores. Existe, no sentido oposto, um grupo de pessoas, substancialmente maior, que vive sem pecado, porque o que uns chamam de pecado outros lhe desconhecem o nome e o sentido. Ou não querem saber destes pormenores da vida da Igreja ou minimizam-nos. São o segundo e terceiro grupo de pessoas a que me refiro. Os que minimizam o papel e significado do pecado fazem parte dos que, de certo modo, podemos denominar de progressistas. Com base no amor infinito de Deus, desculpam com isso todas as suas falhas. Ultrapassam o pecado fazendo de conta que ele não tem peso ou pesa como um pequeno grão de pó numa balança. Também neste lado estão as pessoas para quem a vida não precisa destas coisas de Deus e se riem do que os católicos chamam de pecados. Vivem sem a consciência de pecar. O pecado é um termo que não faz parte das suas vidas e do seu mundo. E mesmo que a consciência os acuse de algo, nunca lhe dão o nome de pecado. Existem ainda aquelas pessoas que encaram com naturalidade o seu pecado e tentam incorporá-lo, para poderem lidar com ele e o superar. Não vivem com medo de Deus, e usam os pecados como ocasiões para fortalecer o caminho para Deus. É que essa fragilidade os faz reconhecer a necessidade do amor de Deus na forma de perdão.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Senhor, toma o meu pecado"

sábado, setembro 10, 2022

Testemunho sem nome e sem medida

A filha mais nova morrera com meningite. Tinha pouco mais de três anos quando o fatídico sucedeu. Os pais ficaram destroçados, como é de imaginar, e esqueceram que tinham outro filho, um pouco mais velho, com a idade suficiente para pensar estes acontecimentos e achar que os pais estavam perdidos e focados na morte da filha, esquecendo que eles próprios tinham uma vida e outro filho a precisar deles. 
Um dia, já lá iam vários meses da morte da irmã, o filho decidiu confrontar os pais com estes pensamentos, pedindo-lhes que não se esquecessem que ele existia, estava vivo e precisava deles. No seguimento da conversa, rogou-lhes que fossem ao jogo de futebol que ele tinha no dia seguinte, para o aplaudir e para o acompanharem num momento que lhe era muito importante. Os pais, caindo em si, decidiram acompanhar o filho. E lá estavam, naquele dia, na bancada do campo de futebol para se fazerem presentes na vida do seu filho, quando uma trovoada irrompeu pelo meio do jogo e um raio atingiu o filho que lhes restava, acabando por lhe tirar a vida. Ficaram sem chão, sem tecto, sem paredes, sem nada. 
A mãe contava tudo com os olhos lacrimejantes. Mas vivos. Haviam passado muitos anos. E ela não tinha deixado morrer a sua vida. A conversa que estava a ter com outras mães versava sobre a fé, sobre a sua necessidade, sobre os seus frutos e sobre a importância de Deus nas nossas vidas mesmo, e sobretudo, no meio das adversidades e afrontas. Quem a escutava perguntava como é que ela e o marido haviam conseguido ultrapassar e lidar com isto. E aquela mãe explicava que só a fé a ajudara a viver com esta dor. Ela que, antes da morte dos filhos, não tinha fé, passara a tê-la. Mais, dizia que não tínhamos nada e sabia que os filhos que trouxera ao mundo eram mais de Deus que dela. No entanto, sempre que rezava, os filhos voltavam a ela. Voltavam com Deus. E assim, em Deus, continuava a ter muito dos filhos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A Olímpia e o milagre da vida"