segunda-feira, novembro 16, 2020

Doer sem tempo para doer

Morre-se mal nestes tempos. Muito mal. Nos funerais em tempo de pandemia morre-se por fora e por dentro. Um pedaço enorme de nós seca. Seca curiosamente diante das despedidas reduzidas a lágrimas. Sim, na maior parte dos funerais, a despedida é feita quase exclusivamente de lágrimas. Que nos secam por dentro. 
E hoje sei na primeira pessoa que assim é. Quando não foi possível despedir-me como queria do meu cunhado mais velho. Ou seja, do meu irmão mais velho. Sem o ver. Quase sem tempo de velório. Na ansiedade de autopsias e testes covid, porque assim tem de ser para quem morre na via pública. Cinco dias disto. Cinco dias a segurar lágrimas às escondidas da minha irmã. Pois que as suas eram mais abundantes e mais constantes. Na verdade, serviu para amadurecer a dor. Para escolher bem as leituras e a homilia. Graças a Deus que foi possível celebrar a missa com a família, porque em muitos casos e zonas nem é possível. Nem a missa nem o velório. Tudo se reduz a uns quinze minutos no cemitério com poucas presenças. Vem-me constantemente à ideia as centenas de amigos que ficaram sem se despedir, porque não cabiam na despedida. 
A nossa despedida foi muito digna. Foi uma festa linda. Entregámos tudo a Deus e respondemos à dor com a fé. É o que resta. É o que vale. Senti, porém, que estes funerais são como uma ferida que tem de sarar por si mesma, numa imunidade forçada sem remédios. Uma dor sem tratamento. As perdas deixam cicatrizes. Sem tempo para a despedida, para o luto da despedida, a ferida fica escondida. E dói mais. É quase como doer sem tempo para doer. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Levar com alegria o sofrimento?"

8 comentários:

Ailime disse...

Boa noite Senhor Padre,
Os meus sentimentos extensivos a toda a Família.
Que o seu cunhado descanse em paz!
Ailime

Confessionário disse...

Bem haja, Ailime.

Anónimo disse...

Meus sentimentos a todos familiares, muito triste. Mas temos que continuar assim mesmo. As vezes penso que o tempo está a voar muito rápido. Nem pra sentirmos seguros na dor ou melhor nem ter tempo pra sentir a dor. Por um esbarro tudo boa por diante dos nossos olhos. Penso que as vezes será nossa idade ou melhor será a situação em que vivemos.?🤔

maria disse...

Senhor Padre nem sei que dizer, é tudo tão triste! Os meus pêsames! E as minhas orações.

maria disse...

Senhor Padre, nem sei que dizer, é tudo tão triste. Os meus pêsames e as minhas orações. O abraço de Jesus nos vossos corações.

Anónimo disse...

Somos instantes, e em um instante somos nada.

JS disse...

Uma nota a pretexto da mencionada escolha de leituras:

É certo que o cânone bíblico foi constituído em base de escolhas; e o mesmo se diga dos leccionários que temos.
É certo que, dentro das rubricas litúrgicas, a escolha é legítima, como forma de adequação ao concreto das circunstâncias pastorais.
É certo que algumas passagens são de difícil interpretação, podendo gerar no mínimo perplexidade ou perturbação interior na assembleia celebrante.

Mas teremos nós consciência que a escolha dos trechos bíblicos pode encerrar o perigo de decidir o que gostamos de ouvir de Deus?
Reconheceremos nós a tentação escondida de determinar o que Deus nos tem a dizer?
Ou, no caso dos padres, controlar o que Deus tem a comunicar ao seu povo?

Talvez às vezes faça falta fazermos esse exercício, mais desconfortável e até trabalhoso, de escolher não escolher, de optar por uma selecção aleatória (ou então sistemática), para que Deus seja mais livre de nos questionar e surpreender com a sua Palavra.

E condolências aos doridos.

Confessionário disse...

Até podes ter alguma razão, JS.
Mas Jesus também escolhia as parábolas de acordo com a necessidade, a ocasião e a capacidade dos seus ouvintes.
Num funeral, há uma série de leituras à escolha. Não há uma liturgia designada para cada dia. Tem mesmo de se escolher. E faz sentido escolher de acordo com a ocasião, a pastoral, o momento, a época, os ouvintes, entre outras circunstâncias...
Podes até ter razão, mas alguém também teve de escolher as leituras que constam no leccionário!

Ou seja, a presença de Deus faz-se por si mesma e não por causa de ou consoante as nossas escolhas. Ou não acreditamos nós que o Espírito Santo também nos guia nas nossas escolhas?!

Podes até ter alguma razão, mas também podes não a ter!