domingo, março 03, 2019

A roupa suja

As casas pegam uma com a outra e são separadas apenas por um quintal. Simples, com umas couves misturadas com flores meio selvagens. O quintal é da vizinha Beatriz. Tem virado para lá uma das janelas da vizinha Eduarda. São muito amigas. Amigas sobretudo da conversa alheia. Encontram-se no muro do quintal, e dão um pé-de-meia de conversa fiada. O tempo, o sol, o frio, as batatas, e as outras vizinhas, como é óbvio. Não é por mal. É por hábito. Não é por mal. É para ter que dizer. 
O que a vizinha Beatriz não sabe é que a vizinha Eduarda a costuma vigiar da janela que dá para o quintal. Raramente a abre. Contudo, por entre o cortinado, lá vai dando uma espreitadela. Por isso, e já o comentou com uma das vizinhas do fundo da rua, descobriu que a vizinha Beatriz não é lá muito asseada. Atão não é que lava mal a roupa. Ou o detergente que usa presta pouco. Pois que, quando ela, por acaso, sempre por acaso, olha para a roupa da vizinha Beatriz estendida no quintal, as roupas estão, assim, a modos que, pouco limpas, para não dizer cheias de nódoas. Mas fica só entre nós. Repetia. Fica só entre nós. 
Há dias, porém, o marido da vizinha Eduarda, que gosta de tudo muito asseado e arrumadinho, chegou a casa mais cedo e foi fumar um cigarrito à janela que dá para o quintal. Mas quando ia para abrir a janela, reparou que esta já há uma boa temporada que não devia ver uma pano e um detergente, de tão suja que estava. Ó Eduarda, a ver se dás um jeito nesta janela, pois quase não dá para se ver através dela.
Afinal, não eram as roupas lavadas da vizinha que permaneciam sujas. A sua janela é que estava mal lavada. E assim se descobriu quem era, na verdade, a vizinha pouco asseada!
Lá dizia o outro: “Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?”

5 comentários:

Paulina Ramos disse...

Esta foi muito bem pensada!
Pois é!
Saiu-lhe o tiro pela culatra.

Anónimo disse...

ó padre, o que eu já me ri

Anónimo disse...

Delícia. Uma vez mais traz-nos uma história engraçada, com uma mora a pender para o conservadorismo puro, aquele que ainda se encontra instalado nos centros decisórios mas que a vergonha esconde e a que se vêm os pés e dá vontade de fazer cucicuci. Identifico-me com esta marcada divisão de papéis, prefiro uma cisão absoluta entre lados do que pontes, encontros ou reuniões, que mais não são do que falsidades, a resposta que não queremos dar, mas a que acedemos por que é aquela que a sociedade nos pede, para nos podermos diluir nela e gozar de alguma tranquilidade.
Por isso aprecio a coragem que teve em reunir a Eduarda, o marido e a Beatriz. O engraçado é que o marido da Eduarda não tem nome no seu post – o que é um ponto contra si. É um marido como tantos maridos, cientes que dominam por serem «maridos», por força de uma divisão de papéis secular. Aquela divisão que, como disse, aprecio: sabemos sempre o lugar das coisas e isso é uma benesse. Qualquer doméstica me dará razão. É fácil perceber como é importante não nos perdermos. Há coisas que arrepiam e até assustam e esta janela é uma delas. Vou-lhe explicar por quê: acho que merece. Noutro dia, antes de ter lido este post, estava a pensar precisamente na metáfora da «janela». Ocorreu-me que, socorrendo-me do seu exemplo, entre pessoas que partilham em permanência um mesmo espaço, como é o caso da Eduarda e de M. (o marido), a comunicação e a compreensão que ambos têm um do outro tem de ser real, o que implica que entre ambos a linguagem, a comunicação seja «transparente»: «água é água.», por exemplo. E pensei numa janela com os vidros muito limpos e transparentes. Disparate, por que em princípio, havendo proximidade, as pessoas deveriam estar simultaneamente do lado de dentro ou do lado de fora, estamos, afinal, no campo das metáforas, e neste terreno podemos estendermo-nos e semearmos o que quisermos que é assim mesmo. Só que depois, vi que isto assim, na nudez completa, era muito assustador. Não quero ninguém constantemente a adivinhar o que penso, ou a antecipa-lo. Isso seria como estar ao lado de alguém que já viveu a nossa própria vida. Não é do «destino» que falo, duma situação diferente. Como disse, como se alguém já tivesse passado por aquele lugar e soubesse o que tínhamos acabado de pensar sem falar, ou se antecipasse o nosso pensamento. Uma chatice, portanto.
Em cima, disse que gosto de divisões. Não é verdade. Melhor, gosto de divisões, mas também acho piada às pontes, e a essas coisas que aproximam. Sobretudo à capacidade que as pessoas têm ainda de surpreender, de pensar diferente, de criar a realidade, de transformar em pensamento. Agradei-me do M. Entre as três essa foi a minha personagem preferida. Minto, uma vez mais: do que gostei, mesmo, mesmo, foi janela, dos dois vidros da janela da casa da Eduarda.

Anónimo disse...

“Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?”
Bom mote, sim senhor, devemos estar atentos. Mas alguém deveria ter respondido ao Senhor quando Este colocou esta questão. Se calhar até respondeu, só que ninguém anotou e não foi parar à Bíblia. Já S. João dizia que houve muita coisa que não foi escrita e ainda bem, porque já assim é um calhamaço, imagine como seria… nem cabia lá tudo, nem havia uma vida para tanta leitura. Mas porquê???? Em primeiro lugar, a questão convoca um terceiro elemento, que à primeira vista, parece estar dela arredado. Não é fácil reparar numa trave que tenhamos na vista. Uma trave na vista, ou pela vista, é cegueira certa, o que nos remete para outros capítulos e versículos. Também: não me peçam o impossível: se tenho uma trave na vista, em que não reparo (pudera!), também não repararei no argueiro que o meu irmão tem na vista. Oftalmologicamente é impossível. Para reparar em algo que tenha na vista, das duas uma: ou tenho que ter perante mim um objecto que me reflicta, vulgo espelho (no tempo de Cristo não devia haver muitos e os que havia eram para o baço, quer-me parecer, assim sem muito rigor wikipédio); ou tenho que ter alguém que me informe dessa limitação, algúem que deverá estar á minha frente, ou à distância de um clique, nos tempos que correm.
Estas passagens bíblicas nunca são assim tão simples como parecem, está visto. Pode-se aplicar a um cego, a dois? Pode um cego guiar outro cego? Tudo está relacionado, o sentido da visão é um daqueles mais desenvolvidos. Luz e visão e visão e luz. Então, por que é que não reparas? A resposta mais simplistas, levar-nos ia a dizer, que nos julgamos melhor que os outros, que temos uma tendência inata para apontar o dedo, para nos julgarmos melhores que os outros e etc. Tudo verdade, mas não é só isso. Jesus fala aqui em «irmão»: não pai, nem mãe, amigo, vizinho. Nós reparamos no nosso «irmão», estamos mais «próximos» dele. «Irmão» abrangerá todos aqueles que consideramos, que nos dizem algo (só mais tarde é que percebemos que somos todos irmão). Reparamos por que é mais fácil, por que a distância que existe entre nós e ele, o nosso irmão, tempera a proximidade, e permite-nos vê-lo, no bem e no mal. Quanto a nós, embora a «trave» seja bem maior (um objecto mínimo, num olho parece ter uma dimensão descomunal perante o incómodo que nos causa), e nos consigamos aperceber que nos tira a visão, nos magoa, não nos é possível vê-lo. A mediação do outro, de um «irmão» é determinante. Na prática, o que Cristo nos queria dizer era para evitarmos julgamentos, rupturas: o outro é nosso irmão, o nosso espelho. Precisamos do outro, porque sem ele não é possível enxergarmo-nos tal como somos. Por muito bem que nos conheçamos, os olhos dos outros são um complemento dos nossos. Precisamos do outro, de um «irmão» e de ser «irmão», de nos olharmos como «irmãos». Vivamos como irmãos, o melhor que consigamos.

Beli disse...

ahahahahah muita boa