sábado, agosto 17, 2024

As leis que não são minhas

Há muitos padres que vivem facilitando a vida àquelas pessoas que fazem pedidos fora das normas, fora do Direito Canónico, fora da doutrina e, muitas vezes, longe do Evangelho e longe da fé. São, de certo modo, padres merceeiros que fazem da Igreja um supermercado e fazem das paróquias uma agência de produtos sagrados “fast food” para atrair clientes. Evito julgá-los, porque quero crer que não o fazem com má intenção. Talvez o façam porque não têm a força e coragem necessária para responder com um Não. Talvez. Talvez. Há que dizer, no entanto, que são motivo de grandes sofrimentos a outros colegas que, tentando ser honestos com a sua missão, procuram ser correctos e coerentes o mais possível com as orientações, regras e leis que também eles devem cumprir. Quando me fazem alguns pedidos a que tenho de responder Não, é meu costume recordar, a quem me faz o pedido, que as leis não são minhas. Tanto as têm de cumprir eles como as tenho de cumprir eu.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não deitar lixo no cemitério"

13 comentários:

Anónimo disse...

Penso que maior "problema" são os pedidos para madrinha/padrinho de baptismo.

E se os batismos fossem sempre celebrados na eucaristia da comunidade, em que a comunidade é testemunha?
Assim, não são necessários os padrinhos.

Confessionário disse...

É, de facto, um desses tipos de pedidos mais comum, mas há muitos mais.
A sugestão que deixa faz muito sentido... mas há ainda muito mas para percorrer...

JS disse...

Ó Confessionário, que história é essa de as leis da Igreja não serem tuas? Já estás com os outros que dizem que a Igreja é dos bispos e do Papa? Ou desejas dar a entender que quando chegares a bispo ou Papa vais mudar o Direito Canónico todo? Acho que estás a precisar de ir uns tempos para Navarra...

JS disse...

Entre o laxismo e o rigorismo, há padres para todos os gostos. E só Deus sabe quem fará mais mal à Igreja.
Claro que se espera um mínimo de coerência e de equidade na aplicação das normas. A teoria do "aos amigos tudo, aos inimigos a lei" é para evitar. E convém lembrar que uma excepção mal justificada é como um furo na parede da barragem: mais cedo ou mais tarde, a edificação fica comprometida.
Por outro lado, faz falta haver um mínimo de sintonia e comunhão na interpretação das normas. A postura do "aqui, o bispo sou eu" é também de evitar. Mas convém ter a humildade de reconhecer que os fiéis podem ir bater a outras portas e têm o direito de recorrer a instâncias superiores, que podem pesar as circunstâncias do pedido de forma diferente.

Ailime disse...

Boa tarde Senhor Padre,
É bem verdade o que diz, embora a realidade que conheço não me pareça ser grave.
Eu gostaria de ver nas celebrações eucarísticas os batizados e outros sacramentos que talvez estejam no cerne da discórdia, mas que são feitos à parte e deveriam ser à vista de toda a comunidade para serem tidos como exemplos.
Emília Simões

Confessionário disse...

Muito boa tarde, amigo JS

Como a Igreja é também minha, tudo o que dela faz parte é também em parte meu. Mas não sou dono dela, e muito menos das leis ou normas institucionais que ela propõe. Sou parte dela e assumo essas leis como uma das suas dimensões (não das que mais me aprazem, por sinal!).

Uma coisa é assumir as leis e outra ser o seu dono ou autor. Aliás, algumas das leis ou normas que vou tentando pôr em prática também a mim me doem. Mais, nem todas as leis me fazem sentido ou, ao menos, como eu gostaria que fizessem sentido.

Claro que não mudaria o Código de Direito Canónico. Não tenho formação nem autoridade para tal. Confesso, no entanto, que, de vez em quando, rezo para que algumas dessas normas sejam alteradas ou melhoradas. O Direito não é a minha área de especialização!

Pessoalmente, tento evitar sobretudo incoerências e excepções que me criem futuros problemas. Por outro lado, sempre que posso e consigo, procuro alguma solução dentro das normas.

Fico ambiguamente triste quando as pessoas procuram soluções mais aprazíveis noutros lados, mas não sou descortês com as pessoas e evito julgá-las. Fico mais triste com os colegas facilitadores e com os bispos que também deixam arrastar as coisas e permitem tanto mal-estar.

JS disse...

Caro Confessionário, penso entender a tua posição. Mas temos aqui dois problemas.
Lembra-te que tens um duplo papel: cumprir as leis que te dizem respeito, como qualquer fiel; e fazer cumprir as leis (ou melhor, ajudar os outros a cumprir as leis), dado o serviço de autoridade em que estás investido, enquanto auxiliar do bispo no seu poder de governo. É aquilo que se define com a velha expressão "cura de almas".
Claro que tens direito à liberdade de pensamento e de expressão no que diz respeito às normas eclesiásticas e a sua adequação à vida e fé concreta das pessoas. Mas, na hora de aplicar as regras, dizer às pessoas: "estas leis não são minhas", pode dar a aparência de que queres lavar as mãos, de que rejeitas responsabilidades pela tua actuação. E isso gerará apenas mais confusão e descrédito na cabeça das pessoas.
Imagina, por exemplo, um polícia a passar multas e a responder às queixas com a mesma frase: "as leis não são minhas". Que é que as pessoas vão pensar? É bem possível que respondam: "está certo que as leis não são suas, mas é você que está a autuar-me. Se não acredita no que está a fazer, porque é que está aqui? É só para ganhar o seu dinheirinho? Ou gosta de ser um pau-mandado?..."
Ou então, imagina um adolescente a contestar as regras da casa e a mãe a responder: "estas leis não são minhas". É provável que o filho fique a pensar: "a culpa é do pai, ele é um ditador. Não tem razão nenhuma, ninguém concorda com ele. Não se pode viver nesta casa."

JS disse...

O outro problema é que, na verdade, muitas das dores de cabeça resultam de leis que são mesmo "tuas", isto é, que foram estabelecidas pelos próprios padres a nível caseiro. Às vezes para responder a necessidades locais de organização pastoral; mas outra vezes, resultando de tresleituras ou interpretações abusivas do Canónico. E anunciadas como se o próprio Jesus Cristo as tivesse de cumprir!
Exemplos: baptismos só ao domingo, e na missa; nas comunhões, todos vestidos de igual; crismas, só quando o bispo fizer a visita à paróquia; nos casamentos, só o coral da paróquia pode cantar; a missa da festa do santo tem de ser no dia próprio; o andor da Senhora só pode levar flores brancas; e por aí fora. São regras necessárias, ou justificáveis? Muito bem. Estavam gravadas nas tábuas de Moisés? Tenho as minhas dúvidas.
Quanto às interpretações erróneas, ficou-me na memória aquela do padre que exigia um curso de preparação aos padrinhos de casamento. Ou aqueloutra, mais comum, de recusar o crisma a quem não é casado pela Igreja, quando o princípio canónico é exactamente o contrário: não se deve casar pela Igreja sem ter recebido o crisma, sem ter completado a iniciação cristã.

Confessionário disse...

JS,
Excelente o teu raciocínio e argumentação que me ajudam a reflectir.

Acerca do comentário das 23 M08, 2024 08:04, devo dizer que ainda não tinha pensado nisso. Reconheço o duplo papel e a ele me referia no meu texto. E quando falo que "as leis não são minhas" é mais para reforçar que me ultrapassam e que não sou eu que as imponho. Mas tens razão ao lembrar-me: "pode dar a aparência de que queres lavar as mãos, de que rejeitas responsabilidades pela tua actuação".

Estava aqui a reflectir e, porque não concordo com algumas delas, talvez seja um modo de manifestar mais a minha vontade que a minha responsabilidade. Lembro-me, por exemplo, a propósito dos padrinhos de baptismo, quando escolhem e pedem mais que dois, ou dois do mesmo sexo ou gente que não tem os requisitos que o Código indica. Há muito que venho desejando que esta "figura" fosse configurada de outro modo.

Sobre o comentário das 23 M08, 2024 08:44, devo dizer que me revejo pouco nele. Não significa isso que também não tenha porventura estabelecido algumas leis por motivos pastorais locais (por acaso, nenhum dos exemplos que sugeres!) e que não procure em conjunto com as pessoas as soluções mais coerentes, mais oportunas e mais adequadas. Dou um exemplo: promovo, tanto quanto possível, o baptismo como um sacramento comunitário e a realizar com a comunidade, faço essa abordagem nos primeiros contactos e na preparação, mas aceito com carácter de excepção que sejam com carácter mais privado e fora das celebrações comunitárias.

Grato pela partilha e pelo tempo que despendes em responder.

JS disse...

Algumas sugestões que me atreveria a deixar aqui aos senhores padres (e não só):

- sobretudo no que diz respeito a regras caseiras, procurar discuti-las e decidi-las de forma colectiva (agora diz-se: sinodalmente). Nem sempre nascerá a luz, nem sempre se chegará a um consenso; mas será sempre um progresso e um consolo ouvir as pessoas dizer: "estas regras não são do padre; são nossas, são da paróquia."

- anunciar, explicar, justificar. Nas mais variadas ocasiões, das mais variadas maneiras. Quanto mais pessoas souberem das regras e estiverem a par das razões, tanto mais conflitos se conseguem evitar. O padre precisa de repetir para si mesmo mil e uma vezes que as pessoas não nascem ensinadas. Responder às pessoas: "não pode ser, vá-se embora", "porque não, já disse" e "eu é que sou o padre, eu é que sei", já não é tolerado.

- não invocar o nome de Deus em vão. Sabemos que o estratagema de sacralizar as regras dos homens vem de longe e funciona como dizia o antigo slogan do código postal: é meio caminho andado (para as fazer cumprir); mas, a prazo, dá mau resultado. "Cristo viveu solteiro, logo os padres não podem casar-se." "Deus não quis nascer mulher, logo as mulheres não podem ser ordenadas."
Claro que o contrário não pode servir de desculpa para descartar as normas. "Onde é que está escrito na Bíblia que os padrinhos têm de apresentar um atestado?" "Quando é que Jesus disse que eram precisos 10 anos de catequese para fazer o Crisma?"

JS disse...

Continuando:

- Senhores padres, estudem, releiam, informem-se. Não inventem, não exijam o que não está escrito nem mandado. Não continuem, por exemplo, a dizer que ambos os noivos têm de ser baptizados para casarem pela Igreja; não chantageiem o noivo para se fazer baptizar. Não é verdade, não é correcto.
Não dogmatizem. Olhem para a História e reparem como as normas foram nascendo e evoluindo. Olhem para outras dioceses e vejam como as normas são aí aplicadas e com que fundamentação. Não se esqueçam do binómio graça divina / responsabilidade humana. Não digam disparates, estilo: "o Crisma é o sacramento da maturidade na fé, e por isso é que deve ser recebido em idade adulta ou perto"; ou então: "chama-se Confirmação porque as pessoas confirmam as suas promessas baptismais, e por isso é que faz falta tanto tempo de preparação". Ai, ai... (suspiro)

- Tenham em conta o princípio "don't ask, don't tell". Pode parecer desonesto, hipócrita, oportunista (e talvez seja!); mas pode ser também uma ferramenta útil para lidar com assuntos fluidos e em evolução, como, por exemplo, a questão de se estar ou não casado pela Igreja, ou de se ser divorciado. (Já agora, porque é que há tantos padres que ainda não leram a Amoris Laetitia?)

- Não encostem as pessoas à parede, não as façam desesperar. Se decidirem fechar a porta, tentem apontar uma janela. Experimentem dizer, para dentro e para fora: "estou convicto da decisão que estou a tomar; mas não sou o dono da verdade. Alguns colegas meus, ou os meus superiores, poderão ter uma visão diferente da situação, ou terão outra solução para oferecer. Se quiserem falar com eles, estejam à vontade."
À conta de ter de zelar pelo bem comum, um padre pode sentir dificuldade em reconhecer que muitos interesses privados são realmente legítimos, mesmo que não possam ser atendidos ou devam ser sacrificados. O que importa ter sempre em mente: o primado não pertence à lei, é da caridade.

Confessionário disse...

JS,
pareces falar com autoridade.

Às vezes pergunto-me a que grupo eclesial pertences.
Seria estranho se fosses um bispo, pois os bispos andam por outras "navegações", embora muitas vezes faças alusões típicas de alguém com autoridade na Igreja; se fosses um colega sacerdote, faria muito sentido, e creio que deverias ser ou estar a caminho de ser um bom pastor; se fosses um fiel leigo, terias muito para auxiliar os principais agentes pastorais das comunidades... "às vezes fico a pensar e, sem perceber, me vejo a rezar", lá diz a canção.

Bem haja pelas tuas partilhas. Embora nem sempre concorde com tudo o que dizes, fico quase sempre grato pelos horizontes que se me abrem ao ler-te.

Anónimo disse...

Se os próprios padres não estão convencidos do sentido da lei (natural, eclesiástica, divina, positiva...), como poderiam saber explicá-las aos fiéis? Só resta, de facto, a escapatória: "A lei não é minha, eu também a tenho de cumprir".