domingo, agosto 28, 2022

o tempo do meu pai

O tempo parou nos teus olhos parados. Parei-o sem querer, no esboço de um sofrimento que não sei medir, porque tu não o sabes dizer ou expressar nesta fase da doença e da vida. O teu olhar vazio. O meu olhar cheio. Cheio de tanta inquietação e pergunta. De tanta saudade. A saudade das conversas enormes sobre a vida e sobre a banalidade das coisas no sentido maior delas. A saudade de falar contigo abertamente sobre as nossas coisas, de pai e de filho. A saudade de te ver a viver, de um lado para o outro, a rezar com o terço na mão, a fazer o comer sobre a banca da cozinha, a sorrir. Sim, a sorrir por debaixo do bigode e por dentro dos óculos. O que mais dói é que quem olha para o teu olhar vazio não sabe nunca o que os teus olhos pensam, sentem ou estão a ver. É a incerteza do que sentes que mais dói. 
Hoje parei o tempo de mãos dadas com o meu pai na casa de cuidados onde é cuidado. Sem palavras. Mesmo sem palavras para os pensamentos. Sem reações. Dele ou minhas. Restou a forma de amar no silêncio das palavras e das manifestações. Restou estar ali a olhar para o pai que me ofereceu a possibilidade de viver. E a amá-lo, olhando-o e passando a minha mão na sua face enrugada e encovada. Cada vez mais encovada. Rezei. Claro que rezei. Rezei para dentro e para fora, de modo que ambos me ouvissem, o meu pai e o pai do céu. Que mais podia fazer senão oferecer tudo a Deus. Entregar-lhe quem tanto amo. Entregar quem tanto amo a quem tanto amo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai"

5 comentários:

Anónimo disse...

Como sei qual é esse sentimento, a dor da alma é inexplicável. Só DEUS pra sustentar a gente.

Ailime disse...

Boa noite Sr. Padre,
Um texto muito belo e comovente que muito me emocionou.
Por tudo. Pelo modo como descreve o amor ao seu pai e a Deus. O modo como o entrega nas Suas mãos. O modo como só um filho pode sentir e descrever a saúde debilitada de seu pai.
Neste momento só mesmo a oração poderá ser um conforto para atenuar a dor que lhe vai dentro do peito.
Coragem, sr. Padre, coragem !
Ailime

Anónimo disse...

De olhos parados e distantes… ligados pelo amor, pelos ensinamentos, vivências e valores, por tudo o que construiu pela família que gerou.
Não é preciso palavras, basta recordar os exemplos, as histórias partilhadas, os conselhos, a sabedoria que sempre demonstrou. O meu(nosso) Pai é o melhor de todos e o melhor do Mundo!

Anónimo disse...

Haja coragem. E amor.

Anónimo disse...

mais umas lágrimas