terça-feira, julho 19, 2022

A Igreja líquida

Leio muito sobre a Igreja. Gosto de pensar a Igreja na sua eclesialidade. Gosto de reparar atentamente no rumo dela e no que falam dela. Procuro entendê-la por dentro, se isso é possível. Não tenho certeza que seja, mas procuro olhá-la fundo, por detrás dos acontecimentos e dos milhares de palavras que vou lendo sobre ela. E nos últimos tempos, numa das minhas constatações, fiquei um pouco inquieto, isto é, com vontade de deixar um grito sufocado tornar-se um grito amplificado. 
Hoje a Igreja vai tomando decisões por pressão da sociedade e não por decisão própria. Se há umas centenas de anos ela influenciava ou fazia por influenciar a sociedade, agora é um pouco mais ao contrário. E se isso é interessante, porque significa que ela ouve a sociedade que deve ouvir, também temo que, numa sociedade de opiniões e aparências, ela se deixe moldar por opiniões ou por agrados. Numa sociedade líquida facilmente a Igreja se pode tornar uma Igreja líquida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Amanhã vou comprar mais luz para esta igreja"

11 comentários:

Ailime disse...

Boa noite Senhor Padre,
O mundo mudou muito e a Igreja talvez tenha procurado ir-se adaptando ao novos tempos.
Não podemos querer a Igreja de séculos atrás, mas corre-se esse risco de se tornar "uma Igreja líquida".
Ailime

Anónimo disse...

Interessante, padre.
Conhecia mais ou menos o conceito de sociedade liquida, mas nunca tinha pensado numa Igreja líquida.
bjs

JS disse...

Ó Confessionário, que é que se passa? Entraste finalmente na fase conservadora? Vais começar a pregar contra o Anti-Cristo e a dizer que o Vaticano II foi o demónio que apareceu à Igreja? Preocupa-te que a Semana da Liturgia em Fátima acabe este ano à estalada? Andas a seguir demasiado de perto os malucos dos alemães em sínodo? Está a dar-te vontade de comprar o último da Hervieu-Léger?

Não te esqueças de uma das leis primordiais da pastoral: "Se não os podes vencer, junta-te a eles".

Confessionário disse...

JS,

Não há fase conservadora na minha vida. Há amadurecimentos e contextos.
Para mim, a coisa mais negativa do Vaticano II é ainda não se ter conseguido, em muitos aspectos, chegar à prática.
Sigo como posso o sínodo alemão e gosto de muitas das suas posturas, mas ponho travão noutras.
Fiquei curioso em saber se vai haver estalada na Semana da Liturgia (depois manda fotos heheheh), e mais curioso fiquei em conhecer Hervieu-Léger.

Este texto em concreto fala da necessidade da Igreja ouvir o que a sociedade diz, porque tem mesmo de a ouvir. Não pode viver à margem e tem de ser uma resposta cristã à mesma. Mas também tenho as minhas reticências quando vejo que a Igreja se embala em modas, em dizer o que parece bem, em ir por ondas, em aceitar pressões... e tenho sentido que ultimamente tem sido muito assim.
Pessoalmente admiro muito pessoas verticais, que sabem escutar de verdade e sabem pensar por si mesmas e não por causa do que a pressão faz nelas. E gostava que a Igreja fosse assim. Que mesmo as mudanças na Igreja que eu almejo e desejo não ocorram porque há uma pressão sobre a mesma, mas porque são essenciais na sua essência. Consegui fazer-me entender?!

JS disse...

"Consegui fazer-me entender?!"
Sim e não.
O conceito filosófico de sociedade líquida é deveras interessante como crítica ao pós-modernismo. Sendo que líquido e light não são bem sinónimos.
Não somos ingénuos: há uma guerra ideológica em curso, já não tanto de cariz económico-político mas centrada nos valores e comportamentos. E aqui, a Igreja parece-se muito com uma bola em jogo de flipper.
Uma curiosidade: em política, o populismo surge frequentemente associado ao identitarismo.
Outra curiosidade: estarmos numa semana em que o Papa tenta, dolorosa e humilhadamente, começar a sarar terríveis feridas abertas em consequência de acções de cristianização forçada.
Ainda: as mudanças e (r)evoluções acontecem normalmente sob pressão e em estado de crise.
E, por fim, o problema: a inquietude que partilhas é demasiado abstracta e ambígua. Não faltará gente capaz de se rever nas palavras que escreveste, ao mesmo tempo que se situa num plano bem afastado, até mesmo oposto, a variadas convicções pessoais tuas. Se achares que vale a pena debater, terás de ser mais concreto. Senão, os comentários ficarão por uma ilusória consensualidade.

Confessionário disse...

JS,

agradeço a amabilidade dos teus comentários, que sempre admiro.

A sociedade líquida, tal como o nome indica e tal como Bauman a trata, tem muitos ver com a experiência do liquido que se molda a qualquer recipiente: se é uma vaso redondo, molda-se a ele; se é um quadrado, molda-se igualmente a ele.

O que eu tento descrever (sem provavelmente me fazer entender, mas isso já é culpa do seu autor) refere-se a situações concretas em que vejo a Igreja a agir porque a sociedade, de tanto a pressionar, a obriga a tal. E basicamente, eu gostava de ver uma Igreja mais livre, que não perdesse a sua autonomia, a sua essência e que agisse e funcionasse mais de acordo com a sua identidade, vocação e missão, e não tanto em função de pressões.

Dou-te um exemplo claro, relacionado com o sínodo da sinodalidade: ouviu-se muito nesta fase diocesana falar do papel da mulher; pessoalmente gostava que as decisões relacionadas com esta constatação não fossem consequência de pressões, interiores ou exteriores, tanto dá, mas porque, na sua essência, a Igreja precisa de ser menos varonil e mais inclusiva.

Tenho mais exemplos debaixo da língua, mas ainda os deixo por lá...

Fiz-me entender melhor agora?! ups...

JS disse...

Mantenho que as mudanças significativas acontecem apenas sob pressão e em momentos de crise. Em épocas de tranquilidade e de sucesso, a opção é pela estabilidade e a tentação de domínio. Que acabará por transformar-se em cristalização até dar lugar ao necessário aggiornamento, em busca sempre de uma maior autenticidade e fidelidade ao Evangelho. A discussão entre ser-se reactivo ou pró-activo, de se mudar por imposição ou por iniciativa própria é em grande medida sem sentido.

Quanto à questão do papel da mulher: e se chegarmos à conclusão de que o movimento de Jesus na sua origem realmente significou uma pequena/grande revolução nesta matéria, e de que foi por pressão da instituição romana do pater-familias (bem mais do que um pretenso machismo judaico-semita) e por consciente vontade de não desagradar ao Império que a Igreja acabou por apagar quase todas as referências ao discipulado feminino e ao lugar das mulheres na hierarquia das primeiras comunidades?

Confessionário disse...

JS,

Interessante lembrares-me que "as mudanças significativas acontecem apenas sob pressão e em momentos de crise". Talvez ainda precise de amadurecer muito mais o meu entendimento da Igreja. Continuo, no entanto e no meu íntimo, com este desejo de uma Igreja que se molda segundo a sua vocação, identidade e missão, muito mais do que por pressões.

Talvez penses que a questão que quis colocar tem a ver com uma discussão sobre ser reactivo ou pró-activo, mudar por imposição ou por iniciativa própria. Eu proponho que a Igreja não seja aquilo que entendo por uma Igreja líquida, no sentido de se moldar simplesmente de acordo com o "recipiente". Para mim não se trata de ser pró ou conservador, mas de voltar ao Evangelho, sua essência, por si mesmo, ainda que a Igreja seja frágil e pecadora, ainda que tenha sempre o caminho por andar, ainda que haja sempre coisas em aberto.

O exemplo que dei (papel das mulheres) é apenas um exemplo.

JS disse...

Que seria do movimento de Jesus se a sociedade em que surgiu não estivesse sobre pressão, em ebulição social, política e religiosa?
Que seria do movimento de Jesus se ele não tivesse abalado e pressionado as autoridades daquele tempo, se não esticasse a corda da radicalidade?
Que seria do movimento de Jesus se as comunidades primitivas não fossem adaptando e enquadrando os ensinamentos do Mestre nas circunstâncias com que se deparavam e que os pressionavam e encontrar novas ou revistas soluções?

O maior problema de uma Igreja líquida não é adaptar-se a qualquer tipo de contentor; é ter a presunção de que poderia dispensar qualquer recipiente que a pressione, ou cultivar a saudade de regressar ao pretenso estado sólido perfeito de um passado a que é impossível voltar.

Confessionário disse...

JS,

Naturalmente que a Igreja se insere numa cultura e é contextualizada nela. Não há fé sem cultura, porque a fé se incultura.
Compreendo também que, de certo modo, digas que as pressões têm o seu lado positivo.

Mas continuo a perguntar-me se a Igreja deve agir de acordo com pressões ou de acordo com a sua essência, missão e vocação.

JS disse...

E eu penso que não são posturas incompatíveis ou mesmo separáveis.

Lembrei-me agora do episódio da samaritana, quando regressa à povoação e cativa/provoca os conterrâneos a virem ver Jesus. Mais tarde hão-de dizer àquela mulher: acreditamos, mas já não por tua causa; nós próprios ouvimos, agora nós próprios sabemos.

Podem pressionar-nos a revisitar as fontes (serão até emissários do alto?!); desde que nos banhemos e saciemos n'Aquele que é a fonte da Água viva, nãos nos perderemos.

Mais me preocupa a resistência casmurra às pressões, como se volta a constatar nesta nova levada de denúncias de prática e ocultação de abusos sexuais no seio da Igreja. A ponto de um padre que decide quebrar o silêncio ter de dar uma entrevista sob anonimato para tentar evitar ver a sua vida destruída nos dias subsequentes...