segunda-feira, fevereiro 07, 2022

Comunhão clericalizada

No século IV, com a passagem do cristianismo de religião perseguida a religião de estado protegida pelo Império Romano, agravou-se uma distinção e separação entre os cristãos que já se vinham designando por clérigos ou leigos. 
Não existia nenhuma separação no tempo de Jesus e o cristianismo surgia como uma comunidade fraterna. Mas estas mudanças fizeram dos clérigos uns funcionários com honras de estado, ao ponto de pouco a pouco passarem a vestir-se diferente, copiando os trajes da nobreza, sobretudo na liturgia. Pior ainda, passaram a sentir-se diferentes dos que não eram clérigos. Passaram a sentir-se superiores. 
Esta eclesiologia hierarcológica durou muitos anos e hoje há uma facção, dentro e fora da hierarquia da Igreja, que insiste em restaurar estes tempos, afirmando falaciosamente que é um voltar à doutrina, quando se trata do afastamento da Igreja das primeiras comunidades cristãs e um regresso ao clericalismo do qual ainda não se saiu. 
Neste espírito de neocristandade, é comum assistir à imposição ou obrigatoriedade da comunhão exclusivamente na boca e, de preferência de joelhos. Dizem que é deste modo que se dignifica a comunhão e que se manifesta a nossa humildade diante do Santíssimo Sacramento. Esquecem que, quando Jesus supostamente instituiu a eucaristia, o pão e o vinho passaram de mão em mão pelos seus apóstolos e nenhum deles se ajoelhou diante dessa partilha. O que os defensores deste modus operandi não referem ou não dão conta é que essa forma de entender a distribuição da comunhão não é própria de uma Igreja comunhão de irmãos, uma Igreja de povo peregrino. É antes de uma Igreja clericalizada, que não só distingue, como separa clérigos dos leigos, como se os primeiros fossem a casta de Deus, a elite de Deus que pode estar de pé e tocar com as mãos no Senhor. O que estes colegas não dizem é que as pessoas, afinal, e num simbolismo enganoso, estão a inclinar-se ao clérigo e não a Deus! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Aqui só comungam as mulheres"

14 comentários:

Cisfranco disse...

Apreciei o seu escrito, mas logo depois duma leitura rápida, suscitou-me um reparo: diz o Sr
“Esquecem que, quando Jesus supostamente instituiu a eucaristia,”... Então Jesus não insti-
tuiu mesmo a Eucaristia?!... As palavras às vezes traem-nos não é assim? Depois parece-me que os católicos não demonstram externamente o devido respeito por Jesus sacramentado. Porquê? Não são devidamente instruídos (catequisados) sobre esse assunto. Dizer como fazer melhor já será mais difícil. Quanto à comunhão na boca penso que a covid terminará definitivamente com essa prática já milenar, mas que se justifica alterar. Também é minha opinião que o fiel antes de comungar deveria fazer profunda reverência ao Senhor, de acordo com o que a sua condição de
saúde lhe permite.

Confessionário disse...

Amigo Cisfranco,

O termo "supostamente" foi usado com um propósito. Na verdade, supõe-se (volto ao termo, mas poderíamos dizer que "se tem como principio ou verdade") que a Última Ceia seja a instituição da Eucaristia ("Fazei isto em memória de mim"). Mas a Eucaristia, tal como a celebramos hoje, tem imensas diferenças em relação ao que ocorreu nessa ocasião. Muitas delas são naturalmente compreensíveis. Outras, na minha opinião, talvez não. Por isso prefiro partir de um "supostamente". Não discuto o que Jesus nos legou na Última Ceia. Só teorizo e reflicto sobre a Eucaristia que hoje celebramos.

Sobre o haver pouco respeito por Jesus Sacramentado, estamos de acordo. Também sou de opinião que não lhe temos o devido e correcto respeito. Mas esse respeito não vem de posturas exteriores. Vem de posturas interiores.

Cisfranco disse...

Caro Confessionário, a discussão é pequenina, mas continuo a pensar que o "supostamente" está deslocado, pois se é doutrina certa que Jesus instituiu a Eucaristia, não vamos dizer que a instituiu supostamente. Pronto não digo mais. Já quanto ao respeito externo ele deve ser uma consequência (derivação) do respeito interior. É um pouco como a mulher de César: não lhe basta ser séria, deve também parecer...
Francisco

JS disse...

Mais complicado do que parece.
As normas dizem que há à partida liberdade de escolha, para cada fiel, entre comungar de pé ou de joelhos, e entre comungar na boca ou na mão.
Afirmam também que compete às conferências episcopais definir directivas mais precisas.
Referem ainda que compete ao celebrante/pároco zelar pela uniformidade de gestos e posições durante a celebração, para que sobressaia a unidade da assembleia.
Moeda ao ar... :)

JS disse...

"Não existia nenhuma separação no tempo de Jesus e o cristianismo surgia como uma comunidade fraterna."

É preciso contextualizar esta tua afirmação, Confessionário.

Por um lado, há que reconhecer que a missão de Jesus foi claramente condicionada pela expectativa de uma parusia iminente. Quando a espera se foi prolongando, as comunidades tiveram de se ir estruturando e hierarquizando para poderem sobreviver.

Por outro lado, Jesus não advogou a eliminação das estruturas cultuais e hierárquicas do judaísmo, nem quis impôr uma visão alternativa. Muito do que os Evangelhos nos narram resulta de uma situação posterior, de ausência de Templo, de conflito com a ortodoxia farisaica de Jamnia e de rompimento com a religião judaica.

JS disse...

Este post acaba por mostrar um pouco daquilo que está realmente em causa na Traditionis Custodes (e que certamente o Papa assinou a chorar).

Confessionário disse...

JS,
A afirmação a que te referes, dirige-se à separação entre clérigos e leigos. Vem na sequência do parágrafo anterior. Naturalmente que havia serviços, carismas e funções diferentes. No entanto, até no que a isso se refere, há que dizer que essas diferenças eram muito mais comunitárias do que separadoras.

JS disse...

Como eu referi, esse tipo de separações existia no tempo em que Jesus viveu, na sua religião e sociedade. Desde os sacerdotes (únicos a poder entrar no Santo dos Santos) aos levitas (descendentes exclusivos de uma das tribos fundadoras) e ao partido dos fariseus (literalmente "separados").
Jesus não questionou directamente a existência destas estruturas nem defendeu a sua abolição. A sua mensagem centrava-se sobretudo na questão ética dos comportamentos, denunciando a separação entre ricos e pobres, integrados e marginalizados, justos e pecadores.

O processo de separação, de criação de barreiras, é natural e típico de qualquer sociedade e religião. Com momentos de agudização e agravamento, e outros de crítica e de busca de reequilíbrio. E sempre que um muro é derrubado, outro diferente será criado em seu lugar.

Confessionário disse...

JS,
tens toda a razão no que dizes. Mas, e repito, estamos a falar de coisas ligeiramente diferentes.
O desentendimento talvez ocorra por culpa minha, pois ao referir-me ao tempo de Jesus, para ser mais preciso, deveria referir-me aos inícios do cristianismo.
Eu refiro-me em concreto à separação entre clérigos e leigos que, nos primeiros séculos do cristianismo, não existia.

JS disse...

Mas o facto de essa clivagem de que somos herdeiros não existir nos primeiros séculos não deve ser atribuído a um puro virtuosismo dos primeiros cristãos.

Esta separação demorou o seu tempo (séculos!) a ser construída, e teve de esperar por circunstâncias que a favorecessem e até a exigissem. Como tu mesmo referias, Confessionário, há um momento-chave quando o cristianismo se torna a religião dominante e o número de cristãos aumenta exponencialmente. Aí, o exercício da autoridade tornar-se-á muito mais problemático, enquanto que o culto cristão, agora oficial, tenderá à especialização e ao hieratismo. Então, acontecerá a sacralização de uma classe como forma de protecção e gestão do poder, no seio das comunidades cristãs e na relação com o exterior.

Devem as coisas hoje ser diferentes? Sim, mas reconhecendo que as circunstâncias também mudaram.

Confessionário disse...

Sim, JS, cada contexto tem um contexto.
Hoje não deveria ser assim e se calhar também não devia ter sido assim nesses séculos. Mas o contexto não pode esquecer-se. Também sou de opinião que as análises da história devem fazer-se dentro do contexto de cada momento da história e não diante do nosso momento da história.

Entretanto, a minha reflexão neste post vai na direcção da fraternidade que deve ser preponderante no cristianismo, coisa que era muito mais visível nos inícios do cristianismo, embora houvessem problemas e conflitos nas comunidades. A estrutura da Igreja que naturalmente viria a ser necessária por uma questão de organização, não era preponderante, porque o importante era Cristo que dava sentido à vida das pessoas e as impulsava a serem fraternos...

Anónimo disse...

Muito interessante a discussão acerca dos primórdios do cristianismo. Surgiu-me uma dúvida entretanto. Se não existia clivagem, como podemos falar em clérigos e leigos? Se os termos espelham realidade existe aqui uma contradição notória, ou, por outras palavras, uma incoerência. Nesta linha de raciocínio questiono-me se os primórdios do cristianismo, durante a vida de Cristo ou imediatamente após (porque Cristo morreu) terão sido tempos de coerência ou de incoerência. E já agora, mais uma questão. Quando Cristo expirou morreu, finou, antes de ressuscitar, como foi? Será que o Cristo morto estava vivo (eu aqui franzo o nariz), como é, antes de ressuscitar, este compasso de espera? Bem sei que estes preciosismos não se compaginam com o Cristianismo… Bem, agora imaginem se o ressuscitador, resolvesse que este seu filho ressuscitaria no fim dos tempos…? Costuma-se dizer que não há dois sem três, mas terá ficado o mundo em inferioridade numérica durante este período? Estas coisas preocupam-me.

Confessionário disse...

12 fevereiro, 2022 01:16

Interessantes questões!

1º. Sobre a eventual clivagem: nos inícios do cristianismo havia naturalmente algumas diferenças, tal como numa família há diferenças entre os seus membros; mas isso não os separa ou separava. As palavras "clérigo" e "leigo" surgem uns séculos mais tarde e, no início, também não eram propriamente "separadoras". No entanto, aos poucos (longos séculos), essa separação foi-se tornando cada vez mais visível e radical, ao ponto de o s primeiros serem considerados os "docendi" (os que ensinavam e mandavam) e os segundos os "dicendi" (subalternos que apenas poderiam aprender). A Igreja precisou de se organizar, como seria natural... a pena foi o facto de se ter desviado um pouco de uma certa "comunhão" inicial, embora os conflitos sempre tenham existido!

2º. Os tempos iniciais do cristianismo, na minha opinião com algumas leituras à mistura, foram tempos de busca... e, ao mesmo tempo, de vivência!

3º. Nunca me tinha feito essa pergunta do que teriam sido os supostos três dias entre a morte e a ressurreição. Nunca me foi assunto de reflexão ou meditação. Parece-me, porém (e talvez já tenha lido algo nalgum teólogo, mas não sei precisar) que, embora a morte física de Jesus tenha sido verdadeira morte, Ele nunca deixou de ser um "vivente". Manifestou-se foi no tempo necessário para a Páscoa! Nota que o Cristo vivo (o tal que apareceu a "alguns") não era um reencarnado, mas um vivo diferente!

Bem haja pela pequena ajuda na reflexão... Creio que alguns amigos comentadores poderão acrescentar muito mais e melhor!

JS disse...

A melhor maneira de captar o mistério da ressurreição de Jesus será na linha joanina, da hora da glorificação, vendo a Sua morte, ressurreição e ascenção (retorno ao Pai) como um acontecimento uno e único.
A referência ao terceiro dia vem de Paulo e, como ele próprio diz, nasce das pistas encontradas no Antigo Testamento ("conforme as Escrituras") para tentar explicar o misterioso evento. Aí, diversos elementos sugerem que Deus faz grandes coisas "ao terceiro dia", que acontecem prodígios, actos de redenção.
A expressão consolidar-se-á como doutrina porque consegue ajustar-se, ainda que forçadamente, ao relato cronológico dos acontecimentos (da morte de Jesus à constatação do túmulo vazio), reforçando o significado do primeiro dia da semana para os cristãos; permite a defesa da morte real de Jesus (ao invés de aparente ou instantânea), coincidindo com a crença popular de que alguém só está comprovadamente morto ao terceiro dia de falecimento; abre espaço para a crença, importante nos primeiros séculos, da descida de Jesus aos infernos, ao sheol, para libertar os justos do A.T. das cadeias da morte, retroactivando e universalizando de facto a acção salvífica da Sua morte.