terça-feira, fevereiro 11, 2020

Então já não há extrema-unção?

Esta tarde ligaram-me de um número que não conhecia, com este pedido urgente. Senhor padre, o meu pai quer receber a extrema-unção. Está com alzheimer associado a demência natural. Insiste em falarmos consigo, porque está a morrer e quer receber a extrema-unção. Cada vez que o filho utilizava esta palavra para designar o sacramento da Unção dos Doentes, eu interrompia e dizia: Unção dos doentes. Unção dos doentes ou Santa Unção. Mas podemos ir ter consigo, senhor padre? O meu pai não se cala. Como se fosse apenas para o calar. 
Tinham de fazer uma pequena viagem de carro. Por isso tardaram um pouco. O tempo suficiente para, ao cruzar-me com uma amiga destes amigos, parar para cumprimentar e ouvir. Olhe, senhor padre, já deu a extrema-unção ao senhor tal? O filho anda aflito! Não sabe o que fazer! Unção dos doentes. Insisti. Olhou para mim com olhos de quem pergunta Mas já não há extrema-unção? 
Na verdade, por mais que falemos destas coisas na comunidade cristã, nem sempre estão atentos, ou nem sempre estão. Digamos, portanto, que foi uma oportunidade para explicar o que é este sacramento. O seu porquê. O seu sentido. Que não se pode pensar como um sacramento de mortos. Todos os sacramentos são dos vivos e para os vivos e este é, especificamente, um sacramento para dar força, ânimo e vida. Por isso não se deve esperar, in extremis, pela hora, como se fosse um sacramento dos mortos ou dos que estão quase a morrer, e apenas para que se possam salvar.
Ainda o meu latinório ia a meio, quando ela, com pressa, perguntou: Então já não há extrema-unção?

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Vivemos para morrer."

18 comentários:

Anónimo disse...

A ouvi-lo falar assim desse jeito fiquei a pensar que poderia ser conferida aos senhores padres uma nova aplicação.Dispensadores de eutanásia.Santa Tomásia, queria eu dizer.

Anónimo disse...

http://eupadre.blogspot.com/2020/01/vivemos-para-morrer.html
Também poderia recomendar a leitura deste post pró-morte com valor sacramental.
Mas o que é a morte?

Anónimo disse...

Não sei o porquê, mas as pessoas veem este sacramento para a beira da morte. Como se fosse uma bênção para morrer.

Anónimo disse...

mas ainda há quem peça esse sacramento?!

JS disse...

O problema é conseguirmos um justo equilíbrio nas catequeses que somos chamados a fazer. Para assinalar mudanças de visão/apresentação, facilmente passamos do 8 ao 80, quando, no fundo, não houve nenhuma alteração radical.
De facto, somos hoje chamados a compreender melhor que este sacramento não se destina apenas nem sobretudo às pessoas em risco iminente de vida, diferentemente do que sugeria uma prática de séculos que foi adiando progressivamente a sua celebração para os momentos próximos da morte.

Todavia, tal não significa que a Igreja tenha aberto mão da solicitude devida aos que sentem o aproximar-se da morte. Para conforto e consolação desses irmãos, são propostos os sacramentos da Penitência (com a concessão de indulgência plenária) e da Eucaristia (sagrada comunhão sob a forma de Viático); podendo ser também administrada a Unção dos Enfermos (e até mesmo o sacramento da Confirmação). Na realidade das circunstâncias, porém, é frequente o paciente encontrar-se em estado inconsciente, o que faz com que o único sacramento passível de ser celebrado na ocasião seja a Santa Unção; e assim se acabe perpetuando na mente dos cristãos a ideia da "extrema unção".

Há também uma série de belas orações e litanias para acompanhar os irmãos moribundos na sua passagem deste mundo para o Pai. Infelizmente, são bem poucos os que conhecem ou conseguem ter acesso a este tesouro espiritual. Vai daqui uma palavra de muito apreço para as pessoas que se dedicam a este sector da pastoral, tão sensível e delicado, mas que pode ser um primeiro bálsamo para os que estão a entrar em luto. O mesmo digo daqueles que, nos velórios e funerais, marcam presença como obra de misericórdia, e com um apostolado simples e discreto ajudam a quebrar o anonimato e a indiferença com que tantas vezes a sociedade actual pretende rodear esse acontecimento da morte de um ser humano.

JS disse...

Para o anónimo do 11 fevereiro, 2020 21:52

Sou testemunha de que o sacramento da Unção dos Enfermos, quando desejado e acolhido de coração aberto, gera transformações tremendas no íntimo de uma pessoa doente. Paz e serenidade, energia e vontade de lutar, o pôr de parte a resignação e o experimentar uma renovada esperança, o recuperar da oração e da união a Deus como terapia interior e fonte de sentido.

JS disse...

E já agora, a pretexto do que diz o anónimo de 11 fevereiro, 2020 17:53,

Como acompanhar pastoralmente uma pessoa que peça a eutanásia? Como conciliar o princípio da misericórdia com a necessidade de afirmação da doutrina? Pergunto isto porque conheço no estrangeiro casos de pessoas que pediram a eutanásia e quiseram receber a Santa Unção. Como procederias numa situação destas, Confessionário?

Para ajuda a uma "discussão", até numa perspectiva arreligiosa, sugiro o filme "Me before you".

JS disse...

Uma boa forma de "desmistificar" este sacramento é promover uma celebração comunitária anual.
Muito me ri quando um padre amigo me contou há anos que a festa de Natal dos idosos lá na sua paróquia incluía sempre uma missa com a Santa Unção para todos eles. Hoje, acho essa ideia comovente.

Confessionário disse...

Caro JS, eu também vou fazendo de quando em vez algumas celebrações comunitárias, e até por esse motivo, o assunto vai sendo falado nas minhas comunidades, pelo que tinha imenso gosto em ouvir sempre falar da Unção dos Doentes e não da extrema-unção.
Também saliento que o sacramento, de facto, não mudou, é o mesmo, e apenas foi direccionado para uma perspectiva para além do quase-morte.

Quanto às perguntas que fazes e me fazes, fazendo-me pensar, assim numa abordagem muito superficial, acho que ouviria a pessoa, tentaria perceber o real significado dos seus pedidos, e posteriormente tentar desmistificar ou descontruir os argumentos.
Estou convencido que as pessoas não estão verdadeiramente esclarecidas. Ninguém gosta de sofrer. Mas o que está em causa, com a eutanásia, não é propriamente como eu posso deixar de sofrer (isso responde-se com cuidados paliativos), mas como posso acabar com a vida.

Ailime disse...

Boa noite Sr. Padre,
Na minha modesta opinião como o Sacramento da Santa Unção foi durante muitos anos ministrado como Extrema-Unção, já na fase final da existência entranhou-se de tal maneira no pensamento da maioria das pessoas, principalmente com idade avançada, que hoje por mais explicações que lhes sejam dadas, não entendem.
Cumpts.
Ailime

Anónimo disse...

Não cabe exactamente dentro do tema encabeçado, mas, de qualquer forma, é uma dúvida que me atingiu e que eu gostaria muito de ver resolvida sob a forma de resposta. A situação é concreta. Fui interveniente, quase protagonista não houvesse um senhor padre igualmente envolvido. O sujeito, chamemo-lo assim, tem uma certa idade - como se designa 'idade avançada. Ora bem, tive mais de dois anos a ganhar coragem para me confessar, até que algo me impeliu e dirigi-me à igreja mais afastada da vigaria para esse efeito. O senhor padre, está? Não está?, Vou chamar. Chamou e ele lá veio. Sem muita vontade, notório. Com a sua bengala, aparelho auditivo, vergado pelos anos e dever de ofício. (Isto é só para contextualizar, como calcula). Sentamo-nos, Filha e tal, Sr. Padre... e pronto, começou oficialmente a confissão. Como eu estive em remissão de confissão e agora queria estar em remissão de pecado, fui detalhada. 0 sr. Padre nunca interrompeu, mas impacientou-se. Transparecia. Fazia aquele gesto com a mão do »anda lá», despacha lá isso, que tenho pressa. Só que eu estava ali, disposta para me confessar, e queria confessar tudo, ter essa oportunidade de vida. Bem, vias tanto, disse-me o Sr. Padre - É que eu tenho que dar missa, percebe isso, não percebe? A minha cara de espanto na equação. Então vá lá dar a missa, disse eu. O Sr. Padre levantou-se, dirigiu-se à sacristia, donde chegava um belo cheiro a pão com torresmos - oferta de paroquianos, presumo.
Pouco depois, o Sr. Padre subiu, desacompanhado para aquele estrado onde está o altar. Assisti à missa entre confissão e fiquei a aguardar pela segunda parte. Até que veio uma senhora que simpaticamente se dirigiu a mim advertindo: dentro de cinco minutos terei de fechar a igreja, minha filha. Hã? Pois é. Dentro de cinco minutos teria que fechar a igreja. E o Sr. Padre? inquiri. O que deu a missa.Ah, esse! Já saiu, disse ela. Como? Não viu. Quando leva ofertas, sai sempre pela porta dos fundos. Fica mais perto do carro. Quando volta? Para a semana. Prá semana?!! Falta pouco, não acha, que falta pouco?
Foi assim que o Sr. Padre foi. Com uma confissão a meio e uma cesta de torresmos, pelo que percebi. O Sr. Padre estava confessou que apreciava pão e torresmos e que largava confissões a meio. Padre virtuosos, certamente haverá poucos. Penitentes pacientes, certamente menos. Sai de lá com os olhos mais abertos, isso é um facto, embora não tenha visto o Sr. Padre escapulir-se. Há coisas que me passam. Fica-lhes o rasto, um cheiro!

Confessionário disse...

13 fevereiro, 2020 07:58
Em primeiro lugar, manifesto que, na minha humilde opinião, escreve muito bem e dá gosto ler.

Em segundo lugar, percebo que existe uma dúvida, mas ela acaba não sendo verdadeiramente formulada. A dúvida é o valor, a missão e vocação do sacerdote em causa? Ou, nele, de todos os outros sacerdotes? O procedimento recorrente de sacerdotes que não estão disponíveis para a confissão ou a direcção espiritual? O sacramento da confissão em si como ocasião perdida no vasto leque de actividades eclesiais da Igreja? Ou a dúvida pessoal de quem se sente perdida, inclusive na sua fé, porque ficou a meio de algo que, para a mesma fé, lhe era muito importante?

Creio que fez um desabafo e como desabafo apenas posso dizer como a compreendo, como tenho pena e lamento, e como me revejo em ocasiões similares em que deixo que sobre a necessidade de alguém que se dirige a mim se sobreponham os muitos outros afazeres que gastam a minha vida. Vale-nos que é Deus o nosso verdadeiro guia! Força.

Cisfranco disse...

Alguém referiu atrás indulgência(s) comentando o assunto que está em discussão: a UNÇÃO DOS DOENTES. Dado que indulgências é assunto que não entendo bem, nem relacionado com o que está em discussão, nem relacionado com outro, peço ao autor o favor, se estiver com paciência para me aturar... que diga alguma coisa sobre esse assunto tão controverso das indulgências. Não é provocação ... Aprecio muito os seus escritos e sou seu leitor habitual.
Obrigado

Anónimo disse...

13/02 07h58, para Padre Confesionário.

É um mix de tudo o que refere. Acertou em cheio.
Podia-me esclarecer, por favor?

JS disse...

Para responder ao Cisfranco, e adiantando-me ao Confessionário:

De uma forma simples (quase simplista), a indulgência equivale a uma redução de pena, ou uma amnistia. Enfim, uma espécie de desconto numa dívida contraída.

O crente, reconhecendo-se pecador, buscando a misericórdia divina e alcançando de Deus o perdão das suas faltas, assume como seu dever cumprir penitência e fazer ascese. Não como castigo ou condenação (ele foi realmente perdoado), mas para eliminar em si as inclinações/tendências que estiveram na raiz do mal cometido e que poderão continuar a gerar novas situações de pecado. Assim, a pessoa poderá aspirar a a apresentar-se verdadeiramente purificada diante do Deus que a perdoou.

Infelizmente, reconhecemos também que este exercício de penitência fica muitas vezes aquém do desejado e necessário, mesmo apesar dos nossos melhores esforços. Aí, a Igreja, como mãe solícita, recorre ao tesouro de graças de que é depositária e administradora e oferece aos seus filhos em dificuldade a possibilidade de uma remissão da pena devida.

É, portanto, uma doutrina/prática que pressupõe algumas verdades de fé muito profundas e muito belas. Infelizmente, na história da Igreja, ficou marcada por grandes abusos, tendo-se tornado pretexto para uma dolorosa divisão entre cristãos que ainda hoje persiste; razão pela qual actualmente se ouve falar muito pouco dela.

Confessionário disse...

Obrigado, JS, pela explicação ao Cisfranco. Eu não tenho andado com muito tempo.
Mas tb posso acrescentar que nunca tive facilidade em entender as indulgências e o seu porquê. Na prática, entendo o poder da graça de Deus como uma graça gratuita que Ele tem enorme vontade em nos conceder. Mas depois pesam as "compras" dessa graça e aí já fico mais descalço. Por isso nunca fui muito de valorizar as indulgências. Mas é apenas um problema pessoal

Confessionário disse...

13/02 07h58
Não tenho muito como esclarecer. O meu último parágrafo à sua inquietação já era uma resposta. Entendo a sua dificuldade e a sua mágoa. Tb quero entender o meu colega na sua fragilidade, no seu erro e pecado, na sua idade e no muito que ele, nas circusntâncias que me descreveu, foi capaz de dar. Porém, igualmente não acho que tivesse sido uma boa atitude. Mas é o risco de muitos sacerdotes, mesmo os mais bem intencionados, quando até desejam escutar alguém na sua dor e fragilidade mas, ao mesmo tempo, têm uma missa para celebrar, uma reunião para ter, um não sei o quê para tratar. As desculpas não são aceitáveis. A nossa missão deveria passar mais pela escuta do que pelo sacramental e administrativo. Mas a coisa não é fácil. Por isso o que te desejo é que encontres alguém que te escute. Deus escuta de certeza. Mas alguém que seja seu mediador. E não deixes esmorecer a vontade de Deus. Tb Ele nunca deixou esmorecer a vontade de cada um de nós, apesar das nossas muitas fragilidades, erros e pecados.

Cisfranco disse...

Obrigado a SJ pela resposta/esclarecimento que é praticamente institucional e que contudo não consegue um pouco mais de luz para este entendimento. Mas isso pode ser problema da minha grande ignorância dessas profundas verdades de fé que refere.

Muitíssimo obrigado ao Confessionário pela sinceridade que para mim é uma resposta convincente que apreciei muito. Também a mim tal assunto me parece coisa de negócio… Ao pensar nisto veio-me à ideia a cena do Senhor com a mulher que Lhe apresentaram como adúltera: "... vai em paz e não peques mais". E é tudo. Estás perdoado e faz penitência: compreendo e aceito. Não entendo essa de me dizerem vai por aqui por este atalho (ganhas a indulgência tal e tal...). Batota…
Obrigado