quarta-feira, abril 02, 2025

O disfarce

Este padre já tem uma idade valente. Tem idade para ter muitos sobrinhos directos e sobrinhos netos. Não os vai visitar muitas vezes, que a vida e a idade não permitem. Mas há dias foi visitar uns sobrinhos directos com uns filhos pequenos, um deles de uns quatro ou cinco anos. Foi uma animação em casa, com os pequenos a querer saber coisas do tio-avô. Para se começar bem a semana, logo no primeiro dia da visita foi toda a gente à missa e o padre foi concelebrar, vestindo, por esse motivo, alva e estola. Uns dias depois, a família voltou novamente à missa, porém, desta vez, porque haviam chegado em cima da hora, o padre decidiu não concelebrar. Ficaram todos no mesmo banco da igreja e o petiz ao lado direito do padre. Ainda a missa pouco avançara quando o pequeno, em voz suficientemente audível, se voltou para o tio e perguntou: então, mas hoje não pões o disfarce? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Senhor padre, estou sempre a pensar em Deus"

sábado, março 29, 2025

Os padres impecáveis não existem

Os padres não têm de ser melhores que ninguém. Têm de, como todos os cristãos, tentar ser melhores. Claro que isso não justifica nem desculpa os erros dos padres. Não desculpa as suas más opções pastorais ou eclesiais. Não desculpa as vezes em que usam a sua vocação como um trampolim para os seus interesses pessoais ou gerem as paróquias e os sacramentos em discordância com as leis da Igreja ou o Evangelho. Não desculpa quando não se esforçam por serem melhores pastores. Mas os padres são, antes de mais, pessoas. E são pessoas com contextos, circunstâncias e vivências das quais não se conseguirão distanciar nunca, porque são também fruto disso. E se é certo que muitos padres se estão a marimbar para o que os outros pensam, também há quem sinta nos ombros um peso e uma pressão que superam as suas forças. O modelo de perfeição evangélica que é exigido aos padres, como se tivessem sempre de estar disponíveis, preparados e dedicados, acaba por afogar as suas vidas. O padre não pode deixar de viver a sua vida e de fazer a sua caminhada de fé para se tornar um funcionário das coisas de Deus ou da Igreja. O padre tem de viver em Deus como é, como tenta ser, como se esforça por ser, mas não como todo o mundo lhe exige ou espera que seja. Os padres impecáveis não existem. Existem apenas os esforçados e os que não se esforçam. Existem, quando muito, os que não ligam a nada e os que, porque ligam a tudo, vivem o ministério como um peso. Repito. Os padres impecáveis não existem.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Os padres impecáveis"

quarta-feira, março 19, 2025

Bom dia, pai. Conta-me o céu.

Bom dia, pai. Hoje acordei com vontade de saber como é o céu. Não o céu das nuvens, mas o céu de Deus. Não o céu de onde vem a chuva e o sol, mas o céu onde o mundo não acaba, onde o amor é o ar que se respira e a felicidade a única forma de viver. Diz-me, meu querido pai. Tu que já moras nesse coração de Deus, conta-me como é o céu. Diz-me de que é feito o céu. Diz-me se é feito de corações. Diz-me se tem areia que se pega nos calcanhares quando se caminha sem tocar o chão, ou se tem rios de águas cheios de flores. Diz-me se as palavras que se ouvem são músicas ou sorrisos com som. Diz-me, pai, como é o Pai. Se o vês de todo o lado ou por dentro. Diz-me se também Ele é feito de corações. Diz-me se têm portas as casas a céu aberto e se moras com a mãe bem juntinha a ti à espera dos filhos. À espera de mim. Tenho muitas saudades vossas. Estás a ver-me da janela do teu quarto do céu? Conta-me, pai. Conta-me o céu. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai"

quarta-feira, março 12, 2025

A Primeira Comunhão sem catequese

A filha anda no terceiro ano da catequese e vai fazer a primeira comunhão. É de uma terra vizinha. Mas, como não há ali catequese, a mãe não se importa de fazer três quilómetros para que a filha participe na catequese e cresça na fé. Por estas bandas a única catequese de infância e adolescência organizada é aqui. Vêm várias crianças de muitas lados em redor. Algumas fazem dezenas de quilómetros. Muitas delas não são minhas paroquianas, mas vêm à procura da catequese onde ela existe. Mal ou bem, com boa intenção ou não, os pais destas crianças sacrificam-se para elas poderem fazer a catequese. Esta mãe, em concreto, não é minha paroquiana. Nem ela nem a filha, naturalmente. Na sua paróquia que, recordo mais uma vez, dista apenas três quilómetros daqui, o pároco, pelos vistos, decidiu aceder ao pedido de duas mães para que as filhas respectivas, que têm a mesma idade que a sua, fizessem agora a Primeira Comunhão na referida paróquia. Nunca tiveram catequese. Nunca quiseram ter catequese. O pároco também não se preocupou muito com isso. E agora vão fazer uma linda festa, dizem. Eu não quero discutir se é bem se é mal, se a opção pastoral é correcta ou incorrecta. Mas então não é que uma dessas duas mães foi ter com a mãe daquela criança que anda na catequese há três anos, dizendo-lhe que era uma burra, ipsis verbis, porque se preocupava para que a sua filha andasse na catequese, quando as delas nunca tiveram e agora iam fazer na mesma a festa da Primeira Comunhão. Aquela mãe ficou triste porque fazia sacrifício para que a sua filha andasse na catequese e agora, como se não bastasse cometer-se esta injustiça, ainda gozavam com ela. Assim vai a nossa Igreja. 
 

sábado, março 08, 2025

O retiro Effetá do jovem Joaquim

Os retiros “Effetá” estão de moda, ao menos na vizinha Espanha. Trata-se de um retiro católico para jovens, cujo objetivo é experimentar um encontro pessoal com Deus. Faz-se com algum secretismo, mas isso só lhe adensa o mistério e alimenta o encanto. Para outras faixas etárias, existem retiros semelhantes: “Emaús” para maiores de 30 anos, “Bartimeu” para jovens dos 16 aos 18 anos e “Samuel” para adolescentes. 
Como desconheço o modelo deste tipo de retiros, sinto-me à vontade para contar o que se passou com o Joaquim, nome fictício de um jovem que participou num destes retiros. Saíra de lá encantado, como é costume ocorrer à maioria dos participantes, mas agora chegara à conclusão de que estava a perder a fé porque estava a perder o entusiasmo. Foi esse o motivo que o levou a procurar o padre na paróquia. Mas quando este lhe perguntou o que lhe causara impacto por parte de Jesus nesse encontro que, supostamente, tivera com Ele, o Joaquim não soube responder. Na verdade, o Joaquim, mais do que encontrar-se com Jesus, encontrara-se com a sua emoção. Agora, como a emoção se estava a ir abaixo, ele também se estava a ir abaixo. O encontro com Cristo é muito mais do que uma emoção ou uma experiência. É muito mais do que um momento de encanto. O encontro com Cristo transforma as vidas e transforma o modo de viver.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A geração digital e a fé sem interesse"

segunda-feira, março 03, 2025

Às vezes não sei quem é que anda mais doente

O Papa está doente. A aspiração que lhe fazem de vez em quando por causa do muco acumulado e que causa insuficiência respiratória transporta-me para os dias em que assistia o meu pai, os dias em que o aspiravam pelo mesmo motivo. Fico duplamente triste porque me traz à memória a dor de meu pai que se prolongava na minha e porque desejo no mais íntimo da minha fé que o Papa se aguente o tempo suficiente para alguns passos que tem dado e me parecem pendentes. Deus é que sabe tudo e também é Ele que sabe se há ou não assuntos pendentes, é certo, mas toda esta situação me faz rezar. E faz rezar o mundo ou parte dele. Faz rezar a Igreja ou parte dela. Infelizmente, nem toda a Igreja reza pelo Papa. Ainda hoje me contaram de alguns colegas que não conheço e que manifestaram publicamente que não rezavam pelo Papa porque, diziam, ele era comunista. Ele há cada uma! Só faltava rezarem para que ele vá depressa ver o Pai. Às vezes não sei quem é que anda mais doente. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O Papa que faz hoje anos"

sexta-feira, fevereiro 21, 2025

Viver o hoje de Deus

Muito se tem especulado estes dias sobre a saúde do Papa, sobre a sua proximidade com a morte, sobre uma eventual renúncia e sobre a sua sucessão. Desde a sexta-feira passada, 14 de fevereiro, data em que o Papa Francisco foi internado com dificuldades respiratórias, que a comunicação social espera e desespera por novidades do hospital Gemelli. Sabe-se que entrou no hospital com uma bronquite causada por uma infecção polimicrobiana que resultou numa pneumonia bilateral. Pouco mais se sabe e quem sabe pouco acrescenta. No entanto, toda a praça pública sabe muita coisa. Os médicos falam, os políticos falam, os padres, os bispos e os cardeais falam. Falam sobretudo os jogadores de bancada que são sempre a maioria dos jogadores. Dizem que nos bastidores não param as movimentações. Dizem tudo e não dizem nada. Certo é que o Papa vai resistindo. Afinal, sempre foi um resistente! Também já pensei no assunto. Já o rezei. E tenho rezado pelas suas melhorias porque me parece que ainda há passos pendentes que ele está a dar e não gostaria que ficassem eternamente pendentes. Mas também confio que o mais importante é viver o hoje de Deus. Seja ele qual for, o hoje de Deus é que é o verdadeiro hoje.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja que não é de um Papa"

sábado, fevereiro 08, 2025

O empurrão

Desequilibrou-se, porque a doença que tem propicia desequilíbrios. Caiu e magoou-se. Não havia ninguém em casa, mas insiste que foi empurrada. Diz ela que foi empurrada por uma familiar que já faleceu há dezenas de anos. Era uma prima com quem se dava muto bem até passarem a dar-se muito mal. Estavam zangadas quando ela morreu. E como não fizeram as pazes, agora culpabiliza-a de tudo o que lhe acontece de mal. Caiu e magoou-se porque foi empurrada por ela e ponto final. Eu até posso compreender que a nossa cabeça possa ter deste tipo de associações. Afinal, sempre buscamos explicações para o que nos acontece. Mas o que a senhora Genoveva, que visitei há dias na sua casa de doente, não sabe, é que o problema está todo na sua cabeça e no seu coração. Como não resolveu esta situação em tempo útil e como ainda tem dentro dela esta mágoa, facilmente o seu pensamento vai para ali, para a relação sofrida que deixou por resolver há muito tempo. O empurrão que ela precisava era o empurrão do perdão.

A PROPÓPSITO OU A DESPROPÓSITO: "Sabe o que é que ela me fez, padre?"

terça-feira, fevereiro 04, 2025

Vive num lar

Tem oitenta e dois anos, quatro filhos, onze netos, três bisnetos e um quarto de 3 x 3 num lar onde o deixaram. Já não tem a sua casa nem as suas coisas, mas tem alguém que lhe arruma o quarto, faz a sua comida e a sua cama, mede-lhe a tensão. Alguns dos familiares vão visitá-lo a cada quinze dias. Outros, a cada três ou quatro meses. Outros nunca. Já não sabe onde fica o fogão da casa e como se faz comida. Ainda tem o passatempo do sudoku que permanece em cima da mesa do lar. Não sabe quanto tempo lhe resta, mas sabe que se tem de habituar a essa solidão, ou melhor, a essa companhia que parece solidão. Anda na terapia ocupacional, faz exercícios aos ombros como nunca fizera. Mexe os dedos das mãos como se tocasse piano. Ajuda alguns companheiros, mas tem medo de criar laços porque desparecem com frequência. Dizem que a vida está cada vez mais longa. Aumenta também o tempo para olhar as fotos da família. Essa que o deixou ali porque não tinha onde o deixar.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Ligou-me do lar"

sábado, fevereiro 01, 2025

não se perde aquilo que já está perdido nem se afasta aquilo que já está afastado

A nossa sociedade fomenta clientelismos e compadrios ao ponto de que qualquer cidadão se habituou a conseguir atingir os seus objectivos, contornando esquemas com base em cunhas, jeitos e compras. Quando não consegue por estes meios, usa-se o sistema pressing ou o sistema comparison. O primeiro usa-se sobretudo com ameaças de que se não for assim, acontece assado, se não for deste modo, eu vou dizer. O segundo usa-se para tentar rebaixar o alvo em comparação com aqueles que são permissivos e que, como tal, são os designadamente bondosos. O senhor não faz, mas eu sei quem faz. O senhor é que não quer, porque outros fazem. O problema é que aqueles que estão habituados a estes sistemas para satisfazerem os seus desejos e necessidades são os mesmo que vão à Igreja pedir coisas com o mesmo tipo de vontade e hábitos. Cansa. Cansa mesmo. Mas a gente vai amadurecendo. E quando me dizem que vão fazer, tal como querem, a outro lado, porque o padre tal é que é bom porque faz as vontades, eu sou o primeiro a dizer-lhes que vão e que aproveitem. Ou quando me dizem que assim é que a Igreja perde as pessoas ou que assim é que as pessoas se afastam, eu recordo-lhes que não se perde aquilo que já está perdido nem se afasta aquilo que já está afastado.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A propósito de cunhas, vou meter uma cunha a Deus"