sábado, outubro 26, 2024

as romagens que tiram a religião às pessoas

Este colega padre tem a seu encargo dez paróquias. Antes de tomar conta delas, estavam entregues a três outros colegas padres. Prevê-se que vai ser assim num futuro imediato nestas zonas interiores do país. Com a redução de vocações ao sacerdócio ministerial, aumenta o número de paróquias por pároco, o que torna impossível manter alguns hábitos, por melhores que sejam ou tenham sido. 
Em grande parte das paróquias portuguesas, por causa de ser feriado, é costume que as romagens ao cemitério, que se deveriam fazer no dia 2, dia dos Fiéis Defuntos, se façam no dia 1, dia de Todos os Santos. Torna-se um bom aproveitamento do feriado e não perde sentido, porque num dia se recordam duas perspectivas da vida e da fé interessantes e que se podem meditar interligadas. O que acontece é que o colega padre, por mais que quisesse fazer o jeito ou alimentar os hábitos das pessoas, não consegue, humana e fisicamente, celebrar num mesmo dia dez missas seguidas de dez romagens ao cemitério. Ora, ao fazer o favor de anunciar, numa rede social, o calendário das diversas celebrações e romagens desta ocasião aos potenciais interessados, qual não é o seu espanto ao ler num comentário, ipsis verbis e com a acentuação tal e qual como escrevo: estes padres conseguem afastar toda a gente da religião sempre foi dia um este para sermos diferentes é dia 2, porquê? 
Haja paciência! Ainda por cima, na paróquia do queixoso, a celebração foi mesmo programada para o dia dos Fiéis defuntos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"

quarta-feira, outubro 23, 2024

uma Igreja poliedro

Da janela do quarto onde me encontro a aprofundar assuntos de fé, teologia, pastoral e evangelização, vejo o pátio de uma escola, ou melhor, um campo sintético onde os alunos passam os recreios atrás das bolas. De vez em quando o barulho é quase ensurdecedor. Mas acaba por favorecer um momento de pausa e descanso. Um destes dias abeirei-me da janela, que abri, e chamou-me a atenção as muitas bolas de diversos tamanhos que os miúdos perseguiam, animados. O campo tem quatro balizas, mas tudo servia de baliza para marcar golos. Parecia estar a assistir a vários jogos de futebol em simultâneo. Era um corrupio de alegria e companheirismo. Os miúdos misturavam-se e era difícil perceber de que jogo ou equipa faziam parte, pois cruzavam-se bastas vezes, eles e as bolas, sem que isso perturbasse a alegria e o entusiasmo do jogo, ou melhor, dos vários jogos em simultâneo. Aquelas crianças eram a prova de que a fraternidade pode coexistir com a diferença e a confusão, desde que o essencial seja o mais importante. Por mais diferentes e variados que sejam os jogos, programas, planos, dinâmicas ou perspectivas, o essencial, na sua pureza, pode unir. Enquanto admirava a cena, pensava na Igreja que vou imaginado como um poliedro. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pedi uma Igreja diferente"
Foto © Mauro Borghesi/Pixabay

quinta-feira, outubro 17, 2024

o pai do padre

Quando aos dezassete anos informou os pais que ia entrar no Seminário, ao pai só lhe apetecia bater-lhe, e a mãe continuou a esfregar a roupa no tanque, sem retirar os olhos dela. Rapidamente as lágrimas começaram a cair-lhe do rosto, mas quase não se notava porque as lágrimas se juntavam na água do tanque. Ele também não deu conta. Fechou os olhos para não ver. Foi desta maneira que o António disse aos pais, que eram mais ateus que outra coisa, que decidira ser padre. Não era gente má. Mas isso não fazia deles cristãos. Não iam à missa. Não queriam saber dos padres. O irmão mais velho é que se metera na Acção Católica e o mais novo, pelos vistos, sem que se adivinhasse, fora-lhe no encalço. Tão grande era o desplante, que no dia em que o filho fechou as malas e se despediu, o pai lhe disse, em tom de pai, que se cruzasse aquela porta, deixaria de ser seu filho. E o tempo passou. Pouco se falavam e, nas férias, as palavras pouco mais serviam do que para mostrar o desagrado. O filho ainda não era padre e ainda havia tempo de o demover de ideias tão ridículas. Onde já se viu um filho de gente que não é de Igreja se tornar um padre. Antes se tornasse um malandro das ruas. Não o pensava assim, mas verbalizava-o para que o filho pensasse bem no que fazia. E o tempo continuou a passar, como tudo na vida passa. Os anos foram calejando aquela família. Mas nem a ideia do filho nem a do pai desapareciam. Casmurros ambos. Ambos do mesmo sangue. Um mês antes da ordenação sacerdotal, o pai, sem que nem sequer a sua estimada esposa, que o acompanhava nas ideias e nas desideias, soubesse, foi visitar o padre da freguesia. Aquele a quem, pouco depois da primeira conversa do filho sobre a estranha decisão, acabaria por culpar e visitar com um pau na mão, pronto a ser usado se a ocasião fizesse o ladrão. Graças a Deus que o padre não estava só e a companhia o demovera. Agora a visita era por outro motivo. Talvez por ser um coração duro, tardou em abrir-se e a conversa demorou umas boas duas horas. Terminou com a absolvição. Nunca ninguém soube o teor da confissão nem o motivo da conversão. O pai mudou. O pai voltou a ser pai. O pai abraçou o filho na sua ordenação como se fosse a maior alegria que um pai pudesse ter. Perceber que a felicidade é um dom de Deus não é para todos. E o tempo passou. Mas, desta vez, foi apenas um mês. E o pai partiu para o outro pai. Foi de repente e os médicos não puderam fazer nada. O filho ainda hoje gostava de perceber, mas não percebe. Só sabe que os desígnios de Deus não se sabem de verdade. Só se acreditam… e se confiam. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A chorar durante a missa"

terça-feira, outubro 15, 2024

quando ela entrou [poema 395]

a sala ainda tinha o cheiro dos sapatos e da lama. 
a porta da frente estava aberta e a da rua escancarada 
chovia lá fora e, como sempre, cá dentro, a casa 
sempre fora uma rua de gente sem sapatos e pés molhados. 
 
quando ela entrou, vestida de linho e um ramo de flores 
a sala perdeu-se e o soalho despareceu, não havia 
nada onde a gente se pudesse acoitar, era como se fosse 
eternamente de dia e profundamente terra sem chão. 
 
ainda hoje recordo aquele dia, como se fosse além 
do olhar e das horas e dos sonhos e do que mais houvesse 
que não fosse somente a realidade de uma sala com cheiro 
de sapatos e da lama onde os sapatos viviam e não viviam.

sábado, outubro 12, 2024

todos são tão Igreja como aqueles que são a hierarquia da Igreja

A segunda fase da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre a sinodalidade, está a decorrer em Roma, com a participação de 368 membros, dos quais 96 não-bispos também têm voz e voto. Mais de metade destes são mulheres. A primeira fase foi como que uma libertação para expressar muitas preocupações que existem na Igreja. Em resultado das muitas auscultações pelo mundo, surgiram questões importantes, muitas delas fracturantes: a possível ordenação diaconal e sacerdotal das mulheres, o celibato dos padres, o cuidado pastoral com pessoas de diferentes orientações sexuais, a maior participação do Povo de Deus na escolha dos novos bispos, a revisão da forma como os futuros sacerdotes são preparados nos seminários, entre outras. Curiosamente, o Papa decidiu enviar este tipo de assuntos para dez grupos de estudo, com o objectivo de analisar estas questões em profundidade e lançar propostas. Para a assembleia que está a decorrer, parece-me que sobrou o essencial: como mudar mentalidades e levar a sinodalidade à prática diária na vida eclesial. Como já o disse, a mim bastava-me que a maioria daqueles que formam a hierarquia da Igreja fossem reconhecendo que não se é Igreja senão em caminho de mãos dadas com todos, e que todos são tão Igreja como aqueles que são a hierarquia da Igreja.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Igreja clericalizada"

segunda-feira, outubro 07, 2024

Um vaso de flores

Vinte e três anos passam num instante. A gente envelhece e tudo envelhece à nossa volta. Era um jovem padre quando a minha mãe concluiu a sua missão aqui na terra e foi habitar em Deus. Agora caminho para velho. Mais experimentado também. Mas a sentir a mesma saudade de jovem que tinha na sua mãe a confidente e o colo materno e terreno de Deus. Ó mãe, como ainda hoje fazias aqui falta para me escutar e para guardar os meus desabafos! Faz hoje vinte e três anos. Fui visitar a pedra do teu túmulo. Estava bonita como sempre. Mas no lugar das flores, estava um buraco de terra sem flores. Alguém me disse que foram roubadas. Já não é a primeira vez, disseram-me. Ao primeiro impacto, senti-me incomodado. Como poderias estar sem um ramo de flores que adornasse a tua pedra?! Depois de rezar (é assim que falo com a minha mãe), o incómodo passou. É muito triste que haja quem não respeite a morte e a dor alheia. É muito triste que haja quem desça tão baixo por causa de umas simples flores de campa. Mas não são as flores que fazem de ti um vaso de flores. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"

sexta-feira, outubro 04, 2024

O canto a meio

Há muito que, naquela paróquia, é raro escutar-se o canto durante as missas. Desde que a cantora-mor adoeceu e foi para o lar é raro alguém ter a coragem de iniciar algum cântico. Ao início, tentei a todo o custo chamá-los ao entusiasmo. Mas é algo que não abunda em medida suficiente. De vez em quando começo algum que outro cântico conhecido a ver se pega. É que nem nas festas ou datas litúrgicas solenes alguém se chega à frente. E há dias, mais uma vez, comecei um cântico a ver se lhe pegavam. Como estava a preparar o altar para a liturgia eucarística, com as orações necessárias, e ninguém lhe pegou, acabei por o deixar a meio. E a meio ficou como se não tivesse começado, isto é, como se nada fosse. Não sei que dizer de uma paróquia sem canto! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A música liturgica"

segunda-feira, setembro 30, 2024

A senhora que não quis crismar-se, de modo algum

Foi convidada para ser madrinha de um baptismo, mas não está crismada. Foi-lhe proposto que pensasse no assunto e que fizesse o necessário para se crismar e poder ser uma madrinha no verdadeiro sentido da palavra. Não. A resposta foi um rotundo Não, de modo algum. Não está interessada. Isto é, não tem qualquer interesse neste sacramento. Não lhe diz nada e também não está interessada que lhe falem da fé ou de Deus. Não quer, com um rotundo Não. Mas gostava de ser madrinha de baptismo da sobrinha. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Tem de ser ele o padrinho"

sexta-feira, setembro 20, 2024

A catequese que nunca lhe valera de nada

Num diálogo com jovens sobre opções e sobre a fé, fazia-se um balanço da caminhada espiritual que cada um estava fazendo. Todos iam falando, uns mais à vontade, outros mais a medo. A Maria, que terminara a catequese de infância e adolescência há três anos, falava sem rodeios. Não era rapariga de faltar às sessões da catequese. E não fazia parte do grupo dos mal comportados. Mas o seu interesse era diminuto, contou. A catequese nunca lhe valera de nada. Ia por ir. Fazia a vontade aos pais e não se importava de acompanhar algumas amigas. Ninguém a interrompeu enquanto falava estas coisas. O resto dos jovens presentes não esboçava sinais de admiração ou de condena. Muito menos eu. Apenas me intrigava que, apesar desse entendimento da catequese, ela estivesse agora ali, presente, por vontade própria, no seio de um grupo de jovens para dialogar e pensar a fé. Até que a Maria concluiu a sua intervenção dizendo: só mais tarde as coisas começaram a fazer sentido. Só algum tempo depois de ter deixado a catequese fui começando a entender como a catequese me fora importante.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A catequista e o menino"

quarta-feira, setembro 11, 2024

nós [poema 394]

não digo que te amo para não gastar a palavra 
ela tem vida própria e faz-se tua quando a digo 
quero, porém, que seja dos dois e fique no pensamento 
onde não me sai e continua a ser minha, mesmo 
sendo tua 
 
amo-te por dentro, que é o lugar onde acontece 
a verdade das coisas 
e guardo-te na palavra que significas tu 
ou melhor, nós 
 
amo-te por dentro porque é o lugar
onde tu aconteces
e somos nós