terça-feira, setembro 06, 2022

O direito ao aborto

Ao contrário de algumas que o pensam mas não o conseguem dizer na minha frente, uma jovem da comunidade dizia-me abertamente que era a favor do direito ao aborto. A conversa não estava inflamada nem tinha a ver com quem ganhava ou tinha os melhores argumentos. Era uma conversa franca e aberta, como deveriam ser todas as conversas onde a Igreja se faz presente. A Joana dizia que as mulheres precisavam ser defendidas e tinham o direito de optar. Portanto, o foco da Joana eram as mulheres. As mesmas mulheres que, por exemplo e como lhe lembrei, morrem em embarcações para fugir de guerra, com a designação de refugiadas, e não se defendem com tanta veemência. Essas morrem esquecidas. Também a Joana dizia que muitos dos que defendem o não ao aborto são os mesmos que defendem o porte de armas ou a construção de muros entre países. E tem razão a Joana. Nisto concordámos. E embora o seu foco continuasse preso na mesma linha, abrira a possibilidade de falarmos da diferença entre legislações, direitos e bem comum ou bem das pessoas. A missão do legislador não é impor a moral, mas buscar o bem comum. Na verdade, descriminalizar o aborto não significa que haja direito de abortar. Assim como, por exemplo, descriminalizar a prostituição não significa que haja direito de se prostituir ou de procurar prostitutas. O que nos deveria preocupar não eram os direitos ou as leis que favorecem ou desfavorecem opções, mas as opções que fazemos. O nosso foco não deveria estar no bem particular de cada um, mas no bem comum, no bem da humanidade, no bem da criação. Pode parecer um exemplo despropositado, mas eu li-o algures. Uma coisa é a obrigação de não maltratar os animais e outra a de conceder direitos aos animais. No final da conversa nenhum dos dois mudou de opinião. Eu sou contra o aborto e ela a favor do direito de abortar. Proporcionou-se, porém, um diálogo muito interessante, que talvez tenha mudado o foco da Joana e, ao menos, me fez pensar que uma coisa é o direito ao aborto, direito que ninguém deveria ter, e outra a sua descriminalização. Uma coisa é o que a lei descriminaliza e outra um direito ético. Uma coisa são os interesses de cada um ou cada uma e o projecto da humanidade e da criação.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Devo o meu filho à minha mãe"

quinta-feira, setembro 01, 2022

Um concílio desconhecido

Já não é a primeira vez que falo do Concílio Vaticano II nas homilias. Os meus paroquianos hão-de saber, ao menos, que existiu algo tão importante que mudou substancialmente o rumo da Igreja, que passou a ser um pouco mais comunhão que elite, um pouco mais aberta ao mundo que fechada em si, entre outras tantas ‘revoluções’ que pediram uma Igreja mais humanizadora, aberta, participativa, corresponsável e missionária. 
Contudo, as senhoras da paróquia não sabiam o que isso era. Não sabemos nada dessas coisas dos concílios, diziam. Claro que não sabem, porque ainda somos fruto de uma Igreja que não ensinava senão a moral e os costumes. Somos fruto de uma Igreja de promessas, devoções, procissões e sacramentos para assinalar estados de vida. As homilias são, muitas vezes, o único momento de formação dos nossos cristãos. E são também, outras tantas muitas vezes, um espaço de palavras piedosas sem mais. Embora elas devam ser uma actualização da Palavra de Deus nas nossas vidas, não chega fazer homilias piedosas. É preciso ajudar as pessoas a entender a essência do cristianismo, pois só assim se consegue entende o que é ser cristão. Por isso perguntei a uma destas senhoras boas da paróquia, uma daquelas que a idade já marcara, se tinha memória da missa passar a ser dita em português, na língua vernácula. Ah isso, sim. E de o padre deixar de celebrar de costas para o povo. Ah isso também. Ora, essas mudanças, e muitas outras similares, foram operadas a partir deste concílio. Ah, então esse concílio deve ter sido uma coisa muito boa, senhor padre. Pois foi, pois foi.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A Igreja formatada"

domingo, agosto 28, 2022

o tempo do meu pai

O tempo parou nos teus olhos parados. Parei-o sem querer, no esboço de um sofrimento que não sei medir, porque tu não o sabes dizer ou expressar nesta fase da doença e da vida. O teu olhar vazio. O meu olhar cheio. Cheio de tanta inquietação e pergunta. De tanta saudade. A saudade das conversas enormes sobre a vida e sobre a banalidade das coisas no sentido maior delas. A saudade de falar contigo abertamente sobre as nossas coisas, de pai e de filho. A saudade de te ver a viver, de um lado para o outro, a rezar com o terço na mão, a fazer o comer sobre a banca da cozinha, a sorrir. Sim, a sorrir por debaixo do bigode e por dentro dos óculos. O que mais dói é que quem olha para o teu olhar vazio não sabe nunca o que os teus olhos pensam, sentem ou estão a ver. É a incerteza do que sentes que mais dói. 
Hoje parei o tempo de mãos dadas com o meu pai na casa de cuidados onde é cuidado. Sem palavras. Mesmo sem palavras para os pensamentos. Sem reações. Dele ou minhas. Restou a forma de amar no silêncio das palavras e das manifestações. Restou estar ali a olhar para o pai que me ofereceu a possibilidade de viver. E a amá-lo, olhando-o e passando a minha mão na sua face enrugada e encovada. Cada vez mais encovada. Rezei. Claro que rezei. Rezei para dentro e para fora, de modo que ambos me ouvissem, o meu pai e o pai do céu. Que mais podia fazer senão oferecer tudo a Deus. Entregar-lhe quem tanto amo. Entregar quem tanto amo a quem tanto amo.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Feliz dia do pai"

quinta-feira, agosto 25, 2022

pessoas que são pedras [poema 352]

na vida existem pedras que são pessoas no caminho

pedras que são pesadas ou atiradas,

pedaços de vida que crescem e são

escadas,

 

pedras que andam e nunca vão a sós,

embora partam de corações partidos

e nos muros cheguem a sangrar,

para construir as torres dos castelos

que um dia hão-de ser 

 

histórias de encantar

domingo, agosto 21, 2022

O padre de férias

O telefone tocou várias vezes. Chamadas de números diferentes, mas coincidentes no propósito. Senhor padre, eu sei que está de férias, mas precisava de um documento. Padre, eu sei que está de férias, mas precisava falar consigo. Padre, olhe, eu sei que está de férias, mas precisava marcar um baptizado. 
Claro que para Deus não há férias e o ministério do padre também não tem férias. Não há uma hora ou umas horas para ser padre. O padre é-o por inteiro, em todo o lado e em todo o momento. Igualmente nas férias. E também deve primar pela disponibilidade. Contudo, depois de saberem que o padre estava de férias, como afirmaram ao telefone, e depois deste ter informado a paróquia com antecedência que ia estar de férias entre os dias tal e tal, e que se tivessem assuntos para tratar o fizessem atempadamente, não seria oportuno também deixar o homem descansar?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre é o 'tem de'"

sexta-feira, agosto 19, 2022

dentro [poema 351]

gosto de guardar as coisas para dentro

tenho esta mania de escondê-las para as não ver

com os olhos abertos

 

gosto de viver por dentro das coisas

no movimento que entra e sai sem o ranger das portas

e entro por fora e fujo por dentro

de olhos fechados,

a ver.

segunda-feira, agosto 15, 2022

Passar de uma pastoral dedutiva a uma pastoral indutiva

A nossa acção pastoral tem partido, erradamente, do pressuposto divino para chegar ao homem, quando devia partir do pressuposto humano para chegar a Deus. No meio da secularização em que vivemos e no meio de um enorme desinteresse das coisas de Deus, pelo menos as que estão personalizadas numa Igreja que se tem tornado irrelevante às novas gerações, deveríamos, na minha humilde opinião, deixar a pastoral dedutiva para passarmos a uma pastoral indutiva. Deveríamos partir da experiência humana para a iluminarmos com a experiência divina e não ao contrário. Não falar do ser humano a partir das realidades religiosas, mas falar de Deus a partir do ser humano. Não deveríamos gastar as nossas energias em apresentar Deus de uma forma dogmática, moralista e sacramental, mas sim um Deus que constantemente se aproxima do homem na sua humanidade, entendida esta humanidade como forma natural de se viver. Nos tempos que correm, já ninguém aceita passivamente uma doutrina que nos ensina a existência e soberania de Deus, por mais que se diga que Ele é amor. Porque só se chega à fé através de uma relação com Cristo experimentada na realidade quotidiana.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pastoral de gestação"

quarta-feira, agosto 10, 2022

Assim é que querem que os jovens vão à igreja?!

Já não via há bastante tempo a cara daquela mãe. Não tem aparecido na missa nem outros actos comunitários. E também não nos temos cruzado na rua. Mas, porque se o filho tivesse concluído a catequese sem faltar poderia crismar-se no final do ano, veio ter comigo à sacristia para dialogar sobre a possibilidade deste fazer o crisma juntamente com os colegas que foram assíduos à catequese, nunca disseram, como ele, que preferiam não ir à catequese e nunca responderam mal à catequista quando esta perguntara porque faltara. Agora o discurso, pelos vistos, mudara. E a mãe que, segundo me disse, não sabia de nada e, tal como era previsível, a culpa era da catequista que nunca lhe dissera nada, agora estava preocupada. Há cerca de um ano que o filho não quer saber da catequese nem a mãe saber se o filho ia à catequese. Mas agora estava preocupada porque achava injusto o filho não fazer o crisma. Claro que lhe foram sugeridas várias soluções, mas ela só queria a que tinha na cabeça: fazer já... porque para o ano ele desiste. Como se ele não tivesse já desistido. Entretanto, para conseguir os seus intentos e porque tardava em consegui-los, achou que chantagear com a típica frase “Assim é que querem que os jovens vão à igreja?!” era o último recurso. Enganou-se, porque nem ela nem o filho vão à igreja. E por isso foi fácil perguntar-lhe qual seria a diferença entre estar crismado e não estar crismado para o filho e sua mãe irem à igreja.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Esta Igreja é uma treta"

quinta-feira, agosto 04, 2022

Um Deus abaixado

Quando penso na encarnação de Deus, não me contento com a alegria do seu nascimento entre nós. Não me contento em apreciar como assumiu a nossa humanidade em todos os seus aspectos, inclusive o sofrimento, dor e morte. Estou convencido que o propósito de Deus na encarnação não era mostrar-nos o seu poder omnipotente e omnipresente. Um deus que tornara capaz assumir uma humanidade ou um deus capaz de se fazer presente até na humanidade. O seu propósito era pôr-se a caminho connosco. Quando imagino um Deus que morre de braços abertos numa cruz, ladeado por dois criminosos, só posso pensar que Deus se abaixou aos homens todos, a começar pelos mais indigentes, pelos menos apropriados, pelos menos contados, pelos que um poderoso deus não poderia igualar-se. O nosso deus é um Deus abaixado até aos abaixados dos abaixados. Nisso está o seu maior poder.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A justiça de Deus"

segunda-feira, agosto 01, 2022

na sombra [poema 350]

vivo à sombra das horas, que se prolongam ao entardecer

vivo numa imagem sem rosto e sem cor, colado, e digo 

a esquecer

 

que fazes aqui, meu amo, e te vejo dentro sem te ver?

 

vivo à sombra das coisas, 

sempre a aparecer.