Iniciámos há poucos dias o caminho de quarenta dias para o coração da fé que é a Páscoa. Todo o cristão sabe que, neste período litúrgico, deve intensificar a oração, a esmola e o jejum. E alguns tentam fazer ou viver alguma diferença. Talvez rezem um pouco mais, façam alguma renúncia, sobretudo de carne à sexta-feira, e deitem um pouco mais no peditório para o que designamos como “renúncia quaresmal”. O que eu me pergunto é se esses hábitos não são apenas pequenas exterioridades, quando a oportunidade da Quaresma é o trabalho interior do nosso coração no deserto das nossas vidas.
Nós sabemos que o deserto é um espaço geográfico árido, coberto de areia, quase sem vegetação e com pouca vida. Mas na Sagrada Escritura, ele designa também um tempo de provação, de silêncio e de auto-conhecimento. É considerado um tempo de tentação, no qual as pessoas põem à prova as suas certezas e seguranças. Pode parecer um paradoxo, mas é nesse mesmo sentido que o deserto é um lugar privilegiado de encontro com Deus. É que no deserto, desprovidos de tudo ou quase tudo, longe da balbúrdia que nos rodeia, sem as nossas seguranças e rotinas, apenas com o essencial que somos nós, mais facilmente nos encontramos connosco mesmos e com a intimidade de Deus.
No meio de tantas palavras vazias, é-nos cada vez mais difícil distinguir a voz do Senhor que nos fala. O deserto é o tempo para renunciar a palavras inúteis. É ausência de muitas palavras para dar espaço a uma outra Palavra, a Palavra com maiúscula, a Palavra de Deus. É o tempo do silêncio para falarmos a sós com o Senhor Deus que está dentro de nós e nos ama como somos.
O deserto é, como disse um dia o Papa Francisco, “o lugar do essencial”. Rodeados de tantas coisas inúteis que nos prendem a atenção, tantas correrias, tantas pressas, tantas preocupações, tanto stress, iria fazer-nos bem libertarmo-nos de tantas realidades supérfluas, para redescobrir aquilo que conta.
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Ai, senhor padre, comi carne na sexta-feira"
3 comentários:
Boa tarde Senhor Padre,
Muito belo o seu texto sobre o sentido e vivência da Quaresma.
Mergulhemos no mais íntimo do nosso ser e nesse silêncio interior procuremos escutar o que o Senhor tem para nos dizer.
Santa Quaresma.
Ailime
Olá, Confessionário.
Pois eu continuo a puxar pelo outro lado da corda, valorizando as exterioridades, torcendo o nariz a uma espiritualidade que se fica pelo subjectivo e pelo privado, reduzida a boas intenções e piedosos sentimentos, encerrada em íntimos e interiores pessoais, invisível e até mesmo indefinível - talvez inexistente.
Este ano não é verdadeiramente necessário explicar o que é o deserto quaresmal. Em maior ou menor grau, já todos lá estamos ou por lá temos passado. Solidão, isolamento, perda de seguranças e de referências, questionamento e angústia, aborrecimento e exaustão. Paragem, de viagens e visitas, de festas e encontros, de trabalhos e distracções, de amizades e de lutos. A realidade exterior impôs-se-nos, obrigando cada um a enfrentar os seus demónios, e sem que o desfecho do combate se aviste claramente.
É, este ano a Quaresma já vai muito avançada...
JS, gosto bastante desta perspectiva de que falas. Ajudou-me a reflectir e a ver o outro lado da questão.
DE facto, não sou favorável a uma espiritualidade privada, uma espiritualidade fechada à vivência e ao outro. Mas também não sou favorável a uma espiritualidade oca, ainda que cheia de expressões e manifestações exteriores. Convenhamos que é capaz de abundar mais a segunda.
Este ano a Quaresma já vai avançada... talvez mais para nos confrontarmos connosco mesmos e com a vida, do que nos encontrarmos com Deus. Ou de tudo um pouco. Não sei. Não sei mesmo.
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