domingo, outubro 04, 2020

O retiro e a percepção de Deus

O que vai fazer ao retiro, senhor padre? Encontrar-me com Deus, respondi. Mas Deus não está em toda a parte? Está, respondi, intrigando-me aos poucos com as perguntas que surgiam, umas atrás das outras. Se está em toda a parte, não podia encontrar-se com Deus no meio das outras pessoas? Claro que podemos e devemos encontrar-nos com Deus no outro. Sendo sua imagem, o outro será sempre a melhor forma de criar Deus numa imagem que é a nossa tradução de Deus. Mas… e sem que eu tivesse tempo para o Mas, ele insistiu. Então porque se tem de afastar das pessoas quando faz um retiro? Ele esquecia que a gente não se afasta das pessoas quando se afasta fisicamente delas para um deserto a sós com Deus. Elas vão connosco, porque a nossa afectividade vai connosco para todo o lado e as pessoas que amamos transportamo-las no coração. Nunca saem desse local tão especial dentro de nós. 
O António não parava a sua inquietação, e a rua onde nos encontrámos naquela tarde, depois da missa onde informara as pessoas que ia estar uns dias em retiro, parecia um ringue de uma luta entre os dois e connosco próprios. Ou comigo. Porque na realidade, há pensamentos que só são reais em nós quando temos oportunidade de os dizer em palavras. 
Ó senhor padre, quando, de manhã, me levanto e vou para o meu emprego, Deus não fica na cama, pois não? Desta vez ria-se, porque queria dar um ar de graçola. Ó senhor António, hoje deu-lhe para se meter comigo. Se Deus está em toda a parte, olhe que esteve na cama consigo e sua esposa. Assim como está no carro onde se desloca e no seu local de trabalho. E acrescentei Mesmo que O não queira lá ou não dê conta da Sua presença. Não desarmou, porém. E o ruído, senhor padre? Não há Deus no ruído? Apanhou-me desprevenido, raios partam o António. E obrigou-me a desfazer a frase feita do Deus que se encontra no silêncio. Claro que Deus também está no ruído. 
Então porque vai para um retiro de silêncio, afastado das pessoas e das suas rotinas para se encontrar com Deus? A diferença, senhor António, não estão no lugar onde encontramos Deus, porque o encontramos em todo o lugar, mas na percepção que fazemos dessa presença. E quando paramos as nossas coisas do dia a dia, com as quais nos ocupamos ou sobreocupamos, há uma outra percepção ou pré-sentido de Deus. 
Num retiro, os sentidos apuram mais a Sua presença, porque nos gastamos só em procura-lo. É como se O olhássemos olhos nos olhos, o ouvíssemos na ausência de palavras, inalássemos o seu perfume, saboreássemos o seu gosto e o tocássemos com coração. No deserto do retiro aprofundam-se os sentidos de Deus e, portanto, a Sua presença. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O meu retiro"

4 comentários:

Ailime disse...

Boa noite Senhor Padre,
O António fez-me lembrar as crianças na idade dos porquês rssss.
Claro que Deus está em toda a parte, mas passar uns tempos em retiro, no nosso silêncio interior, longe dos ruídos do mundo, nos apura mais os sentidos para melhor ouvir a Voz de Deus, que fala ao nosso coração.
Boa semana.
Ailime

JS disse...

Deus está no ruído; mas só se faz ouvir no silêncio.

A paragem, o corte das rotinas, das ocupações e distracções, é fundamental. Mas se a experiência se pode revelar prazenteira, há também uma dor e incómodo a suportar. Algo que muitos descobriram e reconheceram durante o tempo de confinamento.

Para muitos, com efeito, o silêncio e a solidão são algo de tremendamente estranho, de tão viciados que vivemos com televisões, computadores e telemóveis. Mais saídas e viagens para trabalho, para compras, para encontros, para crossing, para café, para pão. Sempre em movimento, em tensão, buscando fora o que nos encha e complete.

OLhar para dentro, aperceber-se do abismo, sentir a vertigem, é um susto do caraças.

Anónimo disse...



JS avise, p.f., da data e hora do seu próximo retiro, gostaria muito de acompanhá-lo, caso não pense efectuar a execução do mesmo em solitária (caso tenha um pouco mais de 2x2m, caibo, e presumo que o JS também).
As suas palavras são sempre tão inspiradoras, que gostaria de observá-lo, filmá-lo, escriturá-lo, registá-lo e comentá-lo, também em todos os seus movimentos e imobilizações, para que tão excelso exemplo possa trazer mais virgulas ao mundo, prefigurando-o e tornando-o mais nosso e quiça brilhante.

Para mim é exemplo,

Eu

Anónimo disse...

🤣🤣🤣