Um senhor, daqueles senhores carecas e castiços que gostam de dar um ar de graça, querendo meter-se com o senhor padre, contou-me uma pequena história sobre um bispo que fora fazer a visita pastoral a uma determinada paróquia e no meio do sermão repetira umas dez vezes que Deus fazia tudo perfeito. Ora um senhor corcunda que se encontrava no meio da assembleia, no final da missa resolveu ir dar um dedinho de conversa com o tal do senhor bispo que dizia umas coisas que na cabeça dele não faziam lá grande sentido. Era corcunda, mas não era parvo. Era corcunda, mas também era destemido. Por isso, chegado ao pé do tal senhor bispo, resolveu abordá-lo de chofre. O senhor disse umas quantas vezes que Deus fazia tudo perfeito. Interrompeu as palavras com o dedo na direcção da corcunda, e acrescentou. Acha que isto é perfeito? O senhor bispo, sem meias medidas, respondeu prontamente. Olhe que dos corcundas que eu já vi, o senhor é o mais perfeito.
O senhor careca e castiço metera-se comigo. Mas não soube que se metera também com os meus pensamentos. De facto não será uma corcunda que dita a nossa perfeição ou imperfeição. Como a perfeição é algo bastante relativo. A perfeição para a qual Deus nos cria foge muitas vezes ao homem ou ao seu conceito de perfeição. Além de que se nos permite ter algo que identifiquemos como uma deficiência, nos costuma conceder a força ou a capacidade de vivermos com ela ou de vivermos usando-a para alcançarmos a perfeição. Mais ainda, muitas das nossas chamadas imperfeições não são senão fruto das nossas opções em liberdade, a mesma liberdade que nos foi concedida por Deus. Mais ainda, aquilo que a nós nos parece imperfeição, a outro pode parecer uma forma de perfeição ou uma imperfeição que não chega aos calcanhares da sua. Mais ainda, aquilo que para muitos é um mundo imperfeito, para outros não é mais que o mundo perfeito, que foi assim feito com imperfeições para ser perfeito.
Gosto muito de pensar, e por isso o repito, que a perfeição com que Deus cria tudo vai muito para além do conceito de perfeição para o homem. Por isso é que nos faz olhar para além das nossas fragilidades. Por isso é que as Suas grandes obras foram e têm sido feitas no meio de tantas fragilidades.
Feitas as contas, o tal do senhor bispo tinha toda a razão quando disse que Deus faz tudo perfeito.
20 comentários:
Li este post e veio-me agora à ideia uns dos argumentos que já várias vezes utilizei quando em conversas com conhecidos o assunto fé surge.
Por duas ou três vezes já me fizeram a pergunta - És crente? E agora reparo que respondi sempre da mesma forma: Sou. Tudo na Natureza, na racionalidade do homem me parece demasiado perfeito para que seja obra do acaso...
É de facto, desta perfeição que vejo, que nasce a minha fé.
Bjinho
SL
Boa tarde, realmente este texto faz-nos pensar e muito, pois nos as vezes temos a "mania" de ver sempre algum defeito, mas como Deus, escreve direito por linhas tortas, acabamos por ter a felicidade, de vermos e sentirmos essa perfeicao. Obrigada.
Bjs
MM
Cuidado com os argumentos tradicionais da teodiceia, que acabem sempre por embater de frente com o mistério do mal.
Caro Amigo "JS":
Há Teólogos inteligentes - ao ponto de serem considerados "hereges" por alguma Hierarquia -, que fazem um esforço por ultrapassar "os argumentos tradicionais da teodiceia".
Um deles é Andrés Torres Queiruga.
Outro foi José Gomez Caffarena sj.
Apenas dois exemplos de Pessoas Inquietas, mas Serenas - e Afáveis.
"In dubio pro reo"...
Forte Abraço.
Moçambicano
Moçambicano:
Conhecendo Queiruga, certamente saberás que é um dos seus pontos fracos, a forma como reflecte sobre o mistério do mal. Não chega dizer que é inevitável na realidade finita ou o preço a pagar por uma liberdade imperfeita. Ou que Deus é "o anti-mal", por bonito que soe.
"In dubio pro Chile".
Caro Amigo JS:
Tem razão. O que eu quis frisar, como compreendeu, foi o esforço destes dois Homens - entre Outr@s -, para "conciliar" o Deus Bom em que os Cristãos procuram acreditar, e o Mistério do Mal.
Mas se calhar a melhor "conciliação" não é a "teórica", bem sim aquela feita através de tantos gestos bonitos, do dia-a-dia, de tantas Pessoas - "crentes" e "não-crentes". É que, cada vez mais, o Bem - ou a Bondade, como prefere dizer J. Maria Castillo -,por ser cada vez mais "contranatura", também é um Mistério...
Um Abraço Amigo.
Moçambicano
"...a perfeição com que Deus cria tudo vai muito para além do conceito de perfeição para o homem."
Esforço-me por acreditar que assim é.
Actualmente encontro-me dividida entre o acreditar num Deus que me fez perfeita(apesar das minhas imperfeições humanas) e acreditar que o homem existe e que as suas características são fruto do decorrer normal do tempo, que a nível geral e particular temos o fruto das nossas decisões, que o hoje é consequência do ontem... e que assim continuará.
Estes dias com uma intensidade maior tenho-me questionado acerca do seguinte, afinal quem é que criou quem. Foi Deus que criou o homem, ou foi o homem que na sua ânsia de acalmar o desejo de infinito cria um Deus no qual se refugia, e no qual consegue acalmar a sua "consciência"?
Peço desculpa, não quero chocar ninguém, é apenas um desabafo muito meu, provavelmente desprovido de sentido ou fruto de uma mente inquieta.
Ficou famoso o Livro sobre as Crises de Fé da Madre Teresa de Calcutá.
Cada vez mais estou convencido de que praticamente Todas as Pessoas "da Igreja" (incluindo Leig@s), com enfoque para alguns "faróis" da América Latina, que tiveram influência na minha formação, tiveram/têm essas "noites escuras".
O importante é aquilo que se faz com essas "noites"...
E uma das grandes lições que essas Pessoas procuraram transmitir foi "Ser Alegre e Positivo, pel@s Outr@s, sobretudo por Aqueles/as que não têm / a quem foi roubado o direito a um Vida digna desse nome".
E são também essas Memórias Gratas que, Graças a Deus, até agora têm "visitado" as minhas "noites"... e me têm dado forças para "teimar" - por mim e pelas Pessoas de quem gosto e que Gostam de mim.
Abraço a Tod@s.
Moçambicano
PR, às vezes tb me ocorrem os mesmos pensamentos. Mas depois aparecem-me tantas evidências!
Eu acho que não é mal a gente ter essas dúvidas. É como no amor... onde de vez em quando aparecem dúvidas. Mas depois vem com maior força.
Conf.
"Eu acho que não é mal a gente ter essas dúvidas.", também eu não me sinto em pecado por ter essas dúvidas.
"É como no amor... onde de vez em quando aparecem dúvidas. Mas depois vem com maior força." Esta é a parte que mais me assusta sem no entanto me afastar. Essa intensidade maior...
Bem sei que assim é... e nesse saber,
Apetece-me fugir
Para não correr o risco deste desejo constante.
Apetece-me fechar os olhos
Para não cair na tentação querer tocar-te a partir da minha pequenez.
E nesse meu secreto desejar
Vejo claramente essa nudez que me fascina.
Olhar doce sereno e inquieto
Prenúncio de um Amor que não se sabe, não se diz nem se adivinha.
Às vezes para não dizer sempre temo essa entrega maior e sem reservas... então sinto-me em pecado porque me sinto em medo... o medo mata, afasta de nós o que tememos...
Este "meu" medo afastou de mim esse Deus a quem eu tanto temo me entregar.
PR
Confessionário:
Sendo legítimo usares a palavra "evidências", certo é que o vocábulo se presta a equívocos.
Talvez seja preferível falar-se de "indícios", "pistas", "sinais"...
PR, não há que ter grandes dúvidas: em 99% dos casos, o que dizemos de Deus, as imagens que d'Ele temos são fabricações humanas. (O que não é necessariamente negativo.)
Na parte do 1% é que o rabo torce a porca...
Moçambicano:
Quanto à "conciliação", prefiro ficar uns passos atrás e continuar a remoer na ironia de Hannah Arendt.
Cumps.
Depois de ler o comentário do JS fiquei com a ideia que as "evidências" de Deus são só para despistar.
Posto isto, fico sem saber se Deus está em fuga e não quer ser encontrado ou se apenas se faz difícil para intensificar a nossa busca.
Ah! JS... e com esses "indícios", "pistas", "sinais, tens conseguido seguir-lhe o rasto?
Para o Anónimo das 13:47
Vais ter de ler as confissões do santo Agostinho.
Para o Anónimo das 13:54
Conheces aquela história das pegadas na areia?...
As Confissões de Santo Agostinho?! Ai Jaaasus...!!!! Quantas páginas????? Uma penitência mais pequena, pelo amor da santa!
Conheço a história das pegadas na areia.
E quando se caminha sobre pedras?
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