quinta-feira, março 20, 2014

Feliz dia do pai

Estava aqui sentado, com a janela fechada e uma temperatura primaveril, quando senti entrar-me pelas costas, ou pela espinha dentro, um arrepio de frio. Olhei na direcção da janela para verificar se estava mal fechada. Não estava. Eu é que deixara o peso dos pensamentos crescer na cadeira onde estava sentado, e arrefecera entretanto.
Hoje levei o meu pai a jantar. Depois dos meus serviços fiz uma série de quilómetros para o levar a jantar, que hoje é dia do pai. Está entradote o meu pai. Está muito capaz. Mas está entradote na idade e na vida. Hoje estava doente com uma grande constipação que se notava na voz. Queria dizer-lhe tudo o que um filho deve dizer a um pai, e disse algumas coisas. Despedimo-nos com um Eu Amo-te muito, pai, e ele respondeu que também me amava muito. Mas as minhas palavras pareceram-me poucas face ao que lhe devo. Deve-se tanto a um pai! E quando se vê a vida a passar, perguntamo-nos que será da nossa vida quando a vida nos levar os nossos pais? Já sei o que é perder uma mãe. Mas ainda não sei o que é ficar completamente sozinho no mundo sem aqueles que nos deram a vida, a oportunidade de ser, e nos criaram para sermos. Ficar assim, a olhar para palavras que gostaríamos de dizer e confidências que gostaríamos de fazer. Ficar assim, a olhar o mundo de forma despernada. Ficar assim, cortados todos os cordões umbilicais, a pensar que a vida fica sem ter a quem se agarrar da forma mais gratuita que possa existir. Ficar assim a pensar que a vida passa depressa e a nossa não pára para descansar. Ficar assim, com uma sensação de que já não temos mais ninguém que nos ame como nos amam os pais.
Fiz os quilómetros de volta a casa, onde moro na paróquia, num passo desacelerado, esquecido no rosto cansado do meu pai. Não me imagino sem as comidas que me faz, a custo, quando vou lá a casa. Não me imagino sem as preocupações que ele me dá, garantindo que a minha vida de filho faz sentido. Não me imagino sem as suas orações. Não me imagino sem os seus ensinamentos preocupados. Não me imagino não ter a quem ligar todos os dias. Não me imagino chegar a casa para a minha folga e entrar nela sozinho, para ficar nela ainda mais sozinho.
Um pai não tem definição, porque um pai não se explica. Ama-se. Um pai é aquele ser que nos faz ser o que somos. E depois é aquele que, na velhice, nos ajuda a ser como devemos ser.
Dá-me vontade de abrir a janela para entrar todo o frio do mundo a fim de sentir que estamos vivos, eu e o meu pai. Mas não abro. Antes me ocorre outro pensamento que me enterra e arrefece ainda mais na cadeira. E quem um dia cuidará de mim, quem se preocupará com a minha vida envelhecida, quem falará de mim assim com palavras como estas, e me dirá Eu amo-te muito, pai?

19 comentários:

Anónimo disse...

Bom dia,
Mais um relato tocante.
A minha experiência não é tão tocante nem feliz mas ainda assim aqui vai

Saudade... saudade de ti
Saudade de TI
Saudade de tudo o que não vivi
Saudade do amor que eu não senti
Saudade do colo que não tive, do abraço que não vivi, do beijo.
De tudo o que ficou no meu desejo
Saudade das tuas histórias por contar
Da tua canção de embalar
Da minha educação a dobrar

Saudade de ti
Saudade de TI

Das tuas palavras de carinho
De todos os gestos e atitudes
Que se perderam no caminho
Saudade do teu verbo amar
Do teu sorriso, do teu olhar
Da tua mão para me apoiar
De momentos para partilhar

Tanta saudade de ti e de TI

Infinita, constante, dolorosa
Desde sempre e para sempre
Saudade de ti e de TI também
Ó PAI !!!

O texto não é todo da minha autoria adaptei-o para a minha situação particular.

Anónimo disse...

Bom,foi cá um murro no meu estômago(coisa pessoal claro)... vou ver se me levanto e se escrevo também uma carta sobre pai e sobre mim ai não sei se conseguirei.

Anónimo disse...

Este estará certamente entre os melhores...

Anónimo disse...

Ontem, aliás como nestes últimos tempos veio-me ao coração quando ele vagueava pela oração também o meu Pai! Reservado, carregando alguma timidez, nunca foi de muitas palavras, mas marcou muito o meu caminho! Sinto umas saudades terríveis dele! Muitas!

Anónimo disse...

Bom dia,
ás vezes o sr, Padre deixa-nos sem palavras..., e esta é uma delas. O meu pai já está junto do Pai, há uns anos, mas a lembrança está sempre por perto, ás vezes perto demais.
Neste momento não consigo dizer mais nada, talvez mais tarde.
Obrigada.

Anónimo disse...

Dizemos tão poucas vezes aos nossos pais que os amamos!
duas lágrimas

SIRF disse...

Olá! Lindas palavras estas. Eu conheço a realidade de perder o pai e felizmente ter a mãe. Esse medo, sim porque é medo, de perder os dois vem me muito à cabeça. Espero que não seja para já. E por muita fé que se tenha! Por muito que se acredite que vão para um lugar melhor! Vão estar longe de nós.
Se bem que ás vezes sinto que o meu pai está comigo. Quero acreditar que sim. Espero que sim.
Quanto ao senhor padre...bem...espero que tenha pessoas próximas, verdadeiros amigos, para o acompanhar nesse período da vida mais difícil. Mas não será para já:-)
Obrigada por mais este momento de reflexão.

Anónimo disse...

Levaste-me às lágrimas, padre! E ainda nem consegui raciocinar o último parágrafo!

Anónimo disse...

Deixou-me sem palavras!

Anónimo disse...

Ó padre, diz lá com sinceridade: tu gostavas de ter filhos, não gostavas?

Confessionário disse...

Anónimo/a de 21 Março, 2014 16:36

O que é que achas?

L disse...

Dei por mim a pensar se é verdade. Se essa certeza é certeza em mim como é nele. Fiquei a pensar nas noites intermináveis, na escuridão, nos fantasmas e nos vultos que se afiguram à mente, não sei se mais certos ou incertos, se prisões se aprisionados, porque com o tempo podemos ser um deles. Fiquei a pensar em ligar, em aparecer. Talvez um dia não chegue a tempo que o tempo escassa, e todos os anos penso o mesmo. Por vezes é melhor chegar tarde… Aprendi com a minha mãe a chegar tarde ou de manhã. Dizem que era por conveniência, mas não. A rapariga ligou. Disse-me tantas coisas, chorou tanto tempo, duas horas ou mais. E eu ouvi. Ajudei. Compreendi. Era o pai. Foi ele que lhe ensinou. Foi com ele que aprendeu. E até aprendeu a gostar e chorava, chorava. Que não entendemos, que não sabemos, o que é essa dor. Que compreendia fiz-lhe ver. A conversa era pesada. Muito pesada. Cresceu ligada ao agressor e sente-se impossibilitada emocionalmente de se desligar. Ela não via esperança, apenas a morte e a vergonha. Perguntei-me porque é que há homens, que roubam os pais e os substituem por figuras indefinidas amadas e odiadas. O que importa é a sua dor. É ainda possível ver um novo céu, ter uma nova esperança. Despenaliza-o ao mesmo tempo que o incrimina. É ambígua. Continua a chorar convulsivamente. A televisão falava da casa Pia e as chamadas afluíam. Os fantasmas escondidos nos lençóis, soltavam o seu grito outrora silencioso. Porque é que há pais, que não permitem aos seus filhos abraça-los no dia do pai? Porque é que há pais que retiram a possibilidade aos seus filhos de terem um pai? Mas a vida deve continuar. Ainda hoje lembro o choro dessa e de outras mulheres. Depois de desligar o telefone, pensei que há tanta gente neste mundo a não poder dizer pai.

Anónimo disse...

21 Março, 2014 17:11

Olha também há tantos que os têm e os perdem. E conheço padres que perderam a mulher e filhos e se tornaram padres... os filhos são uma extensão temporária na terra, mas Deus é a extensão definitiva no Céu. Se a tiveres, não tenhas essa pena, tudo é breve, mais um pouco nem os pais vêm os filhos e nem os filhos os pais na terra, mas no céu o que nos une não são os laços de sangue e nisso consiste a tua felicidade.

L disse...

Conf, publiquei o comentário de 22 Março, 2014 09:32, mas não fui eu que fiz a pergunta, não faria essa pergunta.

Confessionário disse...

L, mesmo que tivesses sido, não haveria problema.
A minha resposta foi uma outra pergunta, porque foi o que se me ofereceu responder. E isso já diz muito. Não diz tudo, mas diz muito.
Era um dos assuntos que mais implicava com o meu interior na hora derradeira das decisões. Hoje evito pensá-lo. ...

L disse...

Não és o único já ouvi isso de outras pessoas. Pior é quando os têm sem querer. Eu também na tenho filhos e foi por causa da igreja.

Confessionário disse...

???

Anónimo disse...

??? Estava a dizer que já ouvi outros sacerdotes dizerem que teriam gostado de ter filhos.
Pior é quando por circunstâncias da vida alguns têm filhos e não queriam tê-los e se vêm pressionados por esse facto, não desejando deixar o sacerdócio etc Houve um caso relatado há tempos que ele entrou numa depressão enorme e acabou por morrer decorrente do facto de não desejar assumir...
Estive numa instituição religiosa.

Anónimo disse...

O senhor é fascinante, escreve muito, muito bem...

Eu sei o que é perder um pai, perde-se a estrutura da casa... enfim...

Aparte disso, ADOREI o Comment "O que é que acha?"
Deve ser uma candidata a mãe..!