Tinha o rádio do carro ligado nas notícias quando falaram do avião que tinha desparecido nos mares não sei de onde. Embora não tenha desligado o rádio, desliguei dele e vi-me, sem querer, no avião, sentado num banco que dava para três pessoas, encurralado na desventura da notícia. Não recordo o rosto dos que iam comigo no avião, mas garanto que alguém próximo ia comigo no banco. Não consigo descrever a tranquilidade que vivia no meio de tamanha confusão de gente a tentar abrir uma brecha no meio de corpos e bancos, gente a segurar-se, com a força da vida, aos braços dos bancos ou aos ombros do vizinho. Não quero pensar em sangue, porque a água seria sempre mais abundante que o sangue. Estou ali. Numa rápida milésima de segundo, que ali o tempo é sempre menor que os segundos, penso na família, nos amigos, nos meus paroquianos. Vejo-os a correr como num fotograma onde todos cabem. São eles apenas que me trazem a dúvida da partida. Uma sensação de que não queria aquilo. Mas permaneço tranquilo, na certeza de saber o que vai suceder a seguir. Aproveito para dizer Amo-te em voz alta, confundida com os berros e gritos sem sentido, alguns noutra língua que não a minha. Apetece-me dizer a Deus que O amo e que espero a sua misericórdia quando lhe der o abraço que há tanto almejo. A curva da vida chegara. E de repente veio uma curva na estrada, que não ia fazendo porque estava dentro de um avião que desapareceu algures no mar. Veio-me uma sensação de tanta tranquilidade, que não consigo agora descrever. Senti-me nos braços do Pai. Receava apenas pelos que amo aqui na terra. Mas o amor daquele que me ama do céu era mais forte. Uma força que também não consigo dizer.
Espero um dia, se e quando tiver de me confrontar com a morte, ter a mesma tranquilidade que senti hoje quando, do carro, me vi no banco de um avião despenhado.
14 comentários:
Morte rápida e acidental? Com essa, nem o próprio Cristo se chateava.
Bom dia,
Um relato intenso, uma experiência profunda.
Gostei muito mais do que alguma palavra o possa expressar.
Há uns anos atrás uma derrocada soterrou o laboratório da empresa onde trabalho, morreram duas pessoas que estavam a reparar o telhado do referido laboratório.
Eu junto com os restantes colegas estávamos a trabalhar nas instalações ao lado, 3 ou 4 metros de distância. os carros ficaram debaixo das rochas, a maior parte delas maiores do que um camião.
Os gritos misturavam-se com o pó e eu não me apercebi de imediato do que se passava pois estava ao telefone. Em questão de segundos desaparece o Laboratório literalmente e o nosso edifício fica meio soterrado.
Vimos a vida passar-nos à frente empurrada por aqueles monstros que rolavam sem parar.
Fui a última a sair do edifício em silêncio e sem gritar saí pelo meu próprio pé.
Cheguei à porta não via nada a não ser rochas e pó.
Sentei-me e perdi os sentidos.
Ainda hoje fico literalmente "espantada" admirada surpreendida, bastava um milímetro e em vez de dois seríamos uma centena e mais alguns.
Sei que enquanto percorria a distância entre a sala onde me encontrava e a porta de saída havia paz muita paz dentro de mim.
Esse dia foi um marco na minha vida e na dos meus colegas. Deixei de me preocupar com o lado de lá... e fiquei apaixonada pelo aqui e agora.
Poderão levantar-se mil e uma voz contra, que não arrancarão a certeza de que é aqui que eu tenho de ser boa, humilde generosa, é aqui que eu tenho que fixar o meu coração, pois só encontrarei paz no lado de lá se me tiver preenchido com ela aqui e agora.
Nada reconheceremos do lado de lá se não o tivermos experimentado deste.
Se me perguntasse agora qual o seu melhor post, afirmaria "eu, a morte e o avião"
Bom dia,
antes de começar o dia de trabalho, entrar no blog e ler este texto, fico com um pouco de "inveja" dessa tranquilidade que nos transmite esta leitura..., mas acho que é um bom começo, tirar uns minutos e tentar sentir um pouco dessa tranquilidade, para que o dia custe um pouco menos a passar, pois não sabemos o que pode acontecer, mas como o Pai está sempre por perto, estou tranquila. Obrigada por mais este belo texto.
Bjs
MM
Confessionário, somos sempre aquilo que não imaginamos ser e que se revela inexoravelmente nestes episódios limites que nos surpreendem a caminhada da vida! Olha por exemplo o episódio de Pedro na traição sempre antes desmentida com todas as certezas e outros exemplos até aos nossos dias! Eles deveriam ser para nós um despertar para as nossas fragilidades e limitações, que são parte integral de nós e bem conhecidas do Criador que nos moldou as formas que nos desenham a existência do ser que nos carrega o sopro de vida! Confessionário, a única certeza que tenho é que sejam quais forem as minhas respostas às situações limite, Ele sempre estará por perto para as acolher sem perguntas!
JS, a morte não se qualifica pela duração do sofrimento!
Anónima de 11 Março, 2014 09:28
O teu testemunho é extraordinário! Obrigada. Muito obrigada
E o teu antepenúltimo páragrafo é uma verdade. Mas nunca deixes de ter os olhos tb no Lá, nem deixes a certeza de que aqui é o caminho para Lá.
Anónimo de 11 Março, 2014 10:55
eu tb não tenho muitas certezas! Queria ter mais. Mas acho que tenho algumas das necessárias.
"nunca deixes de ter os olhos tb no Lá"
Desculpe a frontalidade, porque é tão importante "ter os olhos" no Lá?
A maior parte dos dias nem sequer penso nesse Lá.
No entanto acho que vivo o agora de uma forma intensa e da melhor forma que consigo com atitudes e gestos vistos como sem sentido pela maior parte das pessoas.
Vou dar um exemplo.
A manhã não começou da melhor forma. Vesti-me como se nada se tivesse passado, um vestido elegante mas discreto, deu um toque de azul nos olhos e saí para mais um dia.
Hoje tinha de fazer alguém sorrir, já que eu tinha chorado alguém ia sorrir no meu lugar.
Passei no supermercado continente, comprei um antúrio comprei um vaso pequenino da cor do antúrio e meti a planta lá dentro.
Deixei em cima da mesa da colega, ninguém viu nem ninguém saberá quem foi especialmente ela.
De certeza que ela vai sorrir ainda que eu não veja pois estamos em edifícios separados, com certeza que ela vai pensar em todas as pessoas que eventualmente poderiam ter um gesto semelhante, mas não pensará em mim.
Pensar que alguém que precisava de um carinho pois está a passar por um momento menos, terá uma surpresa agradável vai dar-me força para enfrentar o dia de hoje com coragem determinação e especialmente não chorar.
Em todo este processo nunca pensei nem por um momento nesse lado de lá... e depois de ler o que escreveu senti-me frustrada pela falta de visão ou de fé no lado de Lá e daí a que coloquei no inicio.
Desculpe o conteúdo deste comentário mas hoje precisava de um abraço, apenas um abraço sem uma palavra sequer. Saberia melhor.
Ó anónima:
O "Lá" não tem nada de complicado.
O "Lá" é quem te deu a manhã, quem te amparou as lágrimas mesmo sem dares conta, quem fez o antúrio que compraste.
O "Lá" é a emoção por detrás do sorriso da tua colega, é a força que se faz coragem e determinação em ti.
O "Lá" é onde as flores nâo murcham, os sorrisos não se apagam, as lágrimas são só de felicidade.
Ó JS
"O "Lá" não tem nada de complicado."
Nunca disse em tempo algum que o lá tem algo de complicado.
Deu-me a mim e a ti também.
Acho que não percebeste onde está o cerne da questão para mim, pois pelos visto para ti tudo é muito claro!!!
Olá, mais uma vez, anónima de 11 Março, 2014 09:28
Primeiro, embora atrasado, envio um enorme Abraço;
Depois digo-te que gostei das frases do JS. Explico como acho que não deves esquecer o Lá. Eu percebi-te perfeitamente, pois já estás no fundo a ver o La aqui, só que não lhe colocas esse nome. Na verdade estás a caminho, um caminho que escolheste e que tentas viver a cem por cento. E fazes bem. O Lá será apenas aquela Luz que não deves esquecer e que te deve guiar no tal caminho... e mesmo quando esse caminho estiver mais escuro ou cinzento (tipo quase como se calhar acordaste esta manhã) tens lá essa luz para saber que o caminho é mesmo por ali, como escolheste.
outro abraço... afinal foram dois
Confessionário, fiquei surpreendida com a tua observação, enquanto que a do JS quase que me irritava.
Nem me detive a pensar na beleza do que ele escreveu, centrei-me na forma como se expressou.
Bem sei que ele tem razão.
"só que não lhe colocas esse nome." Sim é mesmo isso não lhe coloco esse nome porque não encontro um termo digno de o definir, e nada faço por obrigação mas porque me está enraizado de tal forma que "secarei" se o deixar de fazer. E não penso que faço isto ou aquilo para ganhar a aprovação de um Deus que não sinto. Tudo o que faço sai-me de uma forma espontanea e não é sacrificio algum... é comose de uma obrigação sem lei se tratasse.
Daquí vem também parte da minha frustração, se nada me custa a fazer, pouca importância terá.
Às vezes penso que o maior sacrificio é mesmo lidar comigo própria. Sinto-me um "servo" inutil a quem nada lhe custa multiplicar os talentos mas que cai no ridiculo de pensar que multiplicar não é dificil.
Forte abraço
Boa tarde,
O teu texto padre, me inquietou o espírito e a alma! Sinto-me mais pequena do que um grão de areia. sinto-me esmagada por um nada que sou!... A morte está sempre á minha frente. O lado de lá, é uma amiga que
me acompanha dia e noite. Sinto-me como que perseguida por essa voz interior que me chama para o lá, mas que ainda me quer no aqui e agora, deste lado. Fico a pensar, a meditar. Qual o lema deste meu dia? "EU, A MORTE E O AVIÂO"
Boa noite,
Não sei rezar não te sei consolar e estas palavras simbolizam um grito muito forte de revolta, e tal como te disse à pouco abraçada a ti a vida parece injusta... Queria ter-te dito também que o teu amigo agora nosso, o jovem de 18 anos por quem juntas chorámos vive e viverá sempre intensamente no teu coração, o tempo suavizará a dor mas a saudade há-de permanecer viva enquanto tu viveres.
NUNCA SE ESQUECE ALGUÉM QUE SE AMA...
Queria ter-te dito tanta coisa mas não encontrei palavras para te consolar...
Não consigo dormir também não consigo parar de chorar, tal como ontem na via sacra...
Enviar um comentário