quinta-feira, setembro 20, 2007

A chaveira

Eu já disse que os santinhos têm de vir para aqui, refilava comigo. Era a chaveira, termo inventado por mim para quem têm as chaves das capelas para mais ou menos tomar conta delas, dar uma visitinha de vez em quando, fazer uma limpeza aqui e outra ali. Moram perto da mesma e quase sempre encontram afinidades com ela. O pior é quando a afinidade se transforma em posse. É a fronteira entre a responsabilidade e o poder, o serviço e o uso. Acontece muito. Quero aqui as imagens, já disse. Elas tinham sido retiradas por motivos óbvios. Primeiro porque havia sido indicação do especialista de arte sacra que tinha recuperado o altar e as imagens, insinuando que a morada destas era desadequada. Segundo porque o Conselho Económico decidira levá-las para um local mais adequado. Bastava esta, desde que sensata. Perguntei-lhe com que autoridade fazia aquela exigência. Ia sorrindo e tentando que as palavras não fossem ofensivas. As delas também, reconheço. A senhora esforçava-se para não fazer alarido. Perguntei-lhe se eram dela as imagens. Se sabia que antes de ali estarem haviam estado noutro local. Roubaram-mas, repetia. Olhe que eu deixo de tomar conta da capela. Depois da exigência vem a chantagem. Depois da chantagem, muitas vezes, a desistência para que os outros não pensem que somos fracos. Não entro nessa. Respondo que eu não funciono dessa forma. Apesar dos esforços, os decibéis iam subindo. Havia gente por perto. Tínhamos acabado a Eucaristia. Alguns davam-me os parabéns, pois fazia anos de sacerdócio. O ambiente estava estranho, bom e pouco bom. Num dos poucos segundos de silêncio, esbocei um desejo a Deus. Livra-me rápido desta. Estás distraído? Logo hoje. Nem hoje.
Uma pequenita, contaram-me depois, estava atenta, muito atenta, à batalha das palavras e dos gestos da senhora. Eu explicava o papel das chaveiras quando, às tantas, vi uma mão pequenita levantar-se quase acima das ancas da senhora, insinuar no rosto um gesto de força, e zás que já levaste uma palmada. Para que se calasse e deixasse o senhor padre em paz. Quem estava atento riu à brava. Rodearam-me com as gargalhadas. Até a senhora riu. Deixámo-nos a seguir. Afinal Deus não estava distraído.
Pena, ou talvez não, que duas semanas depois a senhora tenha entregue, através do marido, a chave da capela.

28 comentários:

Anónimo disse...

Pena, padre?! Eu costumo dizer que quem muda Deus ajuda!

Teodora

Anónimo disse...

Fizeste anos de sacerdócio?? Então também te dou parabéns, ó padre de um geniozinho semi-santo (sabe Deus se não santo mesmo;), e um obrigado! :P chuac!
Olha sabes k mais? o meu Messenger tem o URL do teu blog e a frase "qdo Deus escolhe um génio" eheh :D
És tão fixe...

Anónimo disse...

Caro Padre.
Infelizmente encontramos tantas pessoas que perdem o senso do servir e se apegam ao possuir.
Fez a pequenita muito bem, talvez o senhor como padre, devesse ter lhe dado a tal palmada.
abraços em Cristo.

Anónimo disse...

Parabéns, meu anjo. Abraço
Filó

Vilma disse...

As crianças são um grande instrumento de sabedoria usado por Deus. :))
Esse tipo de situação é muito frequente.. e é pena, que na realidade com o tempo, as pessoas confundam serviço com posse.

Anónimo disse...

«abraços em Cristo» e palmadas também lol (é o humor de Deus, Sr. Padre)

Anónimo disse...

«Um lugar onde todos se podem encontrar» e onde um padre faz confissões fascinantes (e são-no de vários pontos de vista)...

Sr. Padre, permite-me uma palavra a quaisquer novos co-penitentes (e eles a mim)? Alguns dos penitentes já devem conhecer, mas este link é uma boa referência rápida para várias palavras que são tão familiares ao sr. padre.

Nuno

Paulo disse...

"Afinal Deus não estava distraído.", depois veio o homem e sem ouvir a palavra d´Ele, entregou as chaves, qual criança, numa birra sem razão

Anónimo disse...

O que mais me salta à vista é a pura realidade com que este homem exprime uma coisa puramente abstracta como é a religião (designadamente a cristã, na Pessoa da Igreja Católica). Talvez porque ele, pessoa, assume essa realidade. E então resulta um humanismo gritante, que aposto capaz de fazer catequese a qualquer ateu (como as confissões de Sto. Agostinho têm vigor para catequisar um pecador). Este homem mostra o que é a igreja católica, a igreja do Deus Homem, precisamente por ser tão dignamente filho dela. Só imagino um preço para o trabalho deste homem: o Verbo (sim, aquela substância que vive, fala e escreve). Um preço que este homem vive, e um valor que ele dispensa.

E depois faz coisas destas: neste texto o homem começa por indicar 'Uma instância (ou pessoa) concreta de um determinado tipo' ("A chaveira"), um tipo que ele próprio confessa ter criado na mente dele (o tipo ou classe Chaveira), diz que "explicava o papel das chaveiras" i.e. deu por si a asssumir, expondo-se na dignidade de sacerdote, as características desse tipo no qual ele abstraiu um conjunto de pessoas que através do qual a mente dele sentiu necessidade de definir (e veja-se o quanto essa definição se prestou à ocasião concreta deste texto, uma definição que de certeza há muito tomava forma na mente deste homem, conscientemente ou não), e batalhou (além de com alguns sentimentos conturbados de si próprio, infeliz mas piamente) com uma personificação concreta dessa abstracção, uma instância desse tipo que não conhecia a dignidade ou justeza com que esse tipo foi caracterizado por aquele que apostolicamente o assumiu (e que deste ponto de vista, talvez nunca tenha podido portanto assumir verdadeiramente um tipo humano mas apenas uma sua própria representação artificial de si própria). É como tentar redimir um semelhante batalhando consigo próprio (de facto, como este texto prova, este homem fez como um Cristão: tentou definir o direito ou uma verdade, consumiu ele próprio a prova desse objecto e assumiu ele próprio o padrão do mesmo, e tendo sobrevivido a si próprio nesse processo ficou capaz de doar o bem que procurou e herdou). Desculpem, mas este homem roça mesmo a poética apostólica (e não é este texto que mostra isto, são inúmeros, e a fonte deles é a mesma). Ele deve ter a capacidade de evangelizar pelas suas próprias atitudes e comportamentos.

Sabes tão bem que Deus não Se distrai. É que enquanto tu te debatias, Ele não parava de pensar. E tu depois escreves, e te escreves, e quantas vezes não escreves o padre que Deus viu e pensou (reconhecendo-te a ti próprio no chamamento que ouviste).

Vai lá fazer o teu trabalho, homem. Deves ter ainda tanto para fazer, de certeza mais do que já fizeste (aposto que tu próprio acreditas nisto, porque sabes o que procuras e para onde vais sem muitas vezes saberes que vais).

Quanto a mim, já me resignei à ideia de que hei-de levar uma palmada por causa do comprimento deste comentário...

Anónimo disse...

Muitos Parabéns Padre. Que Deus lhe continue a força de que precisa para, em cada momento, continuar a fazer caminho.
A história mostra que afinal sempre há palmadas abençoadas!!! Se dadas no momento certo e sem magoar muito...
Um abraço

Anónimo disse...

Pensar "quem será este padre" é como pensar na Cinderela.

Confessionário disse...

Anónimo das 20.54, não levas palmada, não.
Gostei do que li... e fiquei a pensar!

Alma peregrina disse...

Caro anónimo 21 de Setembro, 20:54:

Apreciei bastante o seu comentário... realmente nunca teria alcançado essa profundidade de raciocínio ao ler simplesmente o post...

Com as asas que o seu comentário libertou no meu pensamento, pude atingir uma conclusão engraçada: a instância "chaveira" criada pelo Confessionário mais não é que a antítese da instância "rosária" (post abaixo) no que toca ao desprendimento, espírito de serviço e binómio material/espiritual.

Ambas resumem muito bem as duas posturas que existem no seio da Igreja Católica: aquela que deseja dar-se (nomeadamente por orações) e aquela que está na Igreja para receber (as imagens).

A "chaveira" entrega a chave quando é contrariada nos seus desejos. A "rosária" mantém-se fiel e pura na sua Fé.

Isto tem potencial para uma parábola...

Cumprimentos

Anónimo disse...

São essas pessoas que por vezes fazem afastar outras da igreja, pois tomam tudo como delas conduzindo a que outras se sintam deslocadas.

Secalhar a bofetada fez com que ela em casa reflectisse sobre tudo originando a entrega das chaves.

Pode ter sido de raiva ou então com consciência que não tinha agido bem...não sei. Mas quem sabe? Provavelmente só a senhora e o que a levou a fazer isso.

Continue, pois realmente mostra o verdadeiro significado que a igreja e tudo o que está envolvido tem que ter.

Beijinho

Elsa Sequeira disse...

É bom ter uma criança sempre por perto! As crianças fazem coisitas que os adultos não podem fazer!

Quanto á senhora, pois...deixa-a ir se calhar não era por aí o caminho dela...

bjts

anamaria disse...

Parabéns pela data especial!
E a "chaveira"...ai, conheço tantas como essa! E o pior é que se convencem de que estão certas, mesmo quando Deus lhes tenta fazer ver a Luz à estalada!

Al Cardoso disse...

..."ou talvez nao"... disse bem!

Um abraco beirao.

Anónimo disse...

Olá! Sou o anónimo das 20.54 de 21 de Setembro... sei que pode parecer pretensioso não mostrar sequer um pseudónimo, mas não antecipei a honra de ter respostas ao meu comentário.

É uma honra para mim a referência que o caro kephas me fez, e reconheço que ele fez uma boa observação! Mas a maior honra para mim é simplesmente ter descoberto este padre. Quaisquer que fossem os objectivos (se os tinha) deste blog, este padre conseguiu-os todos e ainda mais (aqui até a nós próprios nos podemos encontrar).

Um abraço deste rapaz que vos admira

Maria João disse...

Não é fácil, não senhor!

Para os padres e para os leigos... ÀS vezes há com cada uma ... Como se isto fosse o mais importante na Palavra de Deus...

beijos em Cristo

Anónimo disse...

Estou a gostar da elevação com que outros (que não eu) aqui comentam. Continuem s.f.f.

A minha vivência pelas igrejas e salões paroquiais é nula. No entanto, atrevo-me a dizer que comportamentos de posse também os há no local de trabalho. Há sempre um ou alguns colegas que acham que uma sala ou cadeira ou mesa ou qualquer outra parte do espaço lhes pertence. Coitados regra geral acho tratarem-se de pessoas cuja vida familiar e afectiva não está muito bem. Pelo menos nos casos que conheço é sempre assim. Costumo dizer em voz bem alta para que se saiba e façam contas de cabeça: "no dia em que me ouvirem falar com demasiada propriedade acerca daquilo que é de todos, é porque realmente a minha vida está um caco! Meu é o meu apartamento e o meu carro!"

Também há os mal-criaditos, mas esses são muito poucos. Arrogantezitos, levam-se muito a sério, sempre cinzentos.

Desculpem o desabafo: ontem encontrei o meu padre no hiper, secção dos pré-cozinhados. Entre uma pasta al dente... e um risoto de brie... ai ai lá fomos conversando. Suspeito que aquelas arcas frigorificas estão pouco frescas....?! hummmmmm

Teodora

Anónimo disse...

Olá, caro amigo

Na minha terra, Lamego, "chaveiro" é om porco contaminado por cisticercos (transmissores da bicha solitária, melhor dizendo, da ténia).
Sem ofensa para a piedosa senhora...

Um abração

joaquim disse...

Ele nunca está distraido, nós é que estamos muitas vezes.
E eu também estava distraido porque já aqui não passava há muito tempo...

Por isso aqui te deixo, Padre amigo no "confessionário", um abraço forte em Cristo

Anónimo disse...

Este blog é um sacrário.

Frequência Jovem disse...

Confessionáro, é por histórias como esta que o Frequencia Jovem te elegeu como "Blog 5 estrelas".
Obrigada, pelas histórias, pelas experiencias, e tantas vezes pela força...

Carla Santos Alves disse...

Ola amigo

Há tanto tempo que nao falamos.
Como estás?

Foi uma palmadinha de amor...a ver se a senhora se calava...pena a entrega das chaves...sinal que nao houve entrega de coração apenas para cuidar!

Bjs
Carla

Confessionário disse...

Obrigado, amigos da Frequência Jovem.

Olá, amiguita Carla. Vamos andando. heheh... e tu?

Anónimo disse...

Sr Padre,
Ao ler os textos do seu blog, vejo k Deus n se destraí, pois Ele pô-lo a si no nosso camminho por algum motivo...

Deixo-o com um texto k um dia li:

"Só Deus pode criar, mas tu podes valorizar o que ele criou.
Só Deus pode dar a vida, mas a ti cabe transmiti-la e respeitá-la.
Só Deus pode dar a fé, mas tu podes dar o Seu testemunho.
Só Deus pode dar a paz, mas a ti compete semear a união.
Só Deus pode dar a força, mas tu podes apoiar quem desanimou.
Só Deus pode infundir a esperança, mas tu deves indicá-las aos outros.
Só Deus é a vida, mas tu podes dar aos outros a alegria de viver.
Só Deus pode fazer o impossível, mas a ti cabe fazer o possível.
Só Deus pode germinar a semente, mas a ti cabe plantá-la no coração do mundo.
Só Deus basta a si mesmo, mas Ele preferiu contar contigo."

Em todo este texto o vejo retratado, Sr Padre.
Obrigada!

PDivulg disse...

Aí está o sentimento de posse que muitos na Igreja tem... Esta história fez-me recordar o filme do senhor dos aneis... Quando em posse do anel transformavam-se dominado pela força do anel... Aqui no caso é a chave, mas também acontece com o dinheiro, por exemplo...