terça-feira, abril 10, 2007

Preciso uns óculos novos

De facto o senhor Manuel não trazia óculos. Magro. Sempre com a piadita nos lábios. Mesmo assim. Resmas de folhas nos braços. E não trazia óculos. Conversámos durante algum tempo. Assuntos lá do Centro. Ambos entusiasmados com a conversa. Depois palavra puxa palavra e chegámos à fábrica. Há sete meses que não pagam os salários. Cinco que deixaram as máquinas. Mais de cem no desemprego. À espera. Alguns casais. Fico triste. Não baixo a cabeça porque é necessário dar coragem a esta gente. Mas quando chego a casa fico a pensar. Não tenho como ajudar. Não conheço ninguém que possa resolver. Nem as minhas cunhas servem. O problema começa a generalizar-se. O estado do país é alarmante. As contas ainda mais. Anda tudo desconfiado. Um dos casais que mais colabora com a paróquia está sem receber desde Janeiro. Trabalhavam os dois na fábrica. Têm um filho no Seminário. Dói-me a situação. Dói-me não poder fazer muito. Só confortar. Ouvir. Expressar esperança. Há dias ofereci a minha casa para uma família de cinco. O conforto de saberem que tinham onde recorrer deu-lhes ânimo. Estavam com medo de perder a casa e não ter onde abrigar os filhos. Foi saboroso uns dias depois saber que pelo menos desta estavam safos. Conversava assim com os meus pensamentos enquanto ouvia o senhor Manuel. Que não tem conseguido dormir. Só com calmantes. Nem apetite. Só à força. Pesadelos. Contas para gerir. Uma criança com dez mesitos. O pior veio depois. E só dei pela falta dos óculos nesse momento. Estraguei a haste dos meus óculos. Meti fita-cola. Mas agora foi no meio, senhor padre. Preciso uns óculos novos. Mas não vou lá porque o dinheiro pode faltar para comer.
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PS. Este post de arquivo aconteceu em 2005. A fábrica faliu. Há muita gente ainda no desemprego. As famílias apresentadas estão a tentar sobreviver. Uma delas conseguiu, embora o casal tivesse de separar-se por mais de 300 quilómetros. A outra está mais complicado. A separação é de milhares de quilómetros e ainda ñão se vê luz ao fundo do túnel. Mas o senhor Manuel teve direito a óculos novos.

12 comentários:

Maria João disse...

É nestes momentos que penso como há pessoas que têm tanto dinheiro e não ajudam quem precisa. Claro que enm todos são iguais, mas a verdade é que há muita indiferença perante estes casos. Pior ainda é quando essa indiferença parte dos cristãos...

Que Deus os ajude e traga mais trabalhadores para a messe. Há muito trabalho a fazer.

Luís disse...

De facto, não seria preciso óculos para ver as dificuldades em que tantas famílias se debatem neste Portugal que tarda em renascer. Mas se os óculos novos foi pretexto, ainda bem que viu e ouviu porque,às vezes basta ter alguém com quem partilhar para que a dor se divida, a preocupação se reparta e o sofrimento se alivie. Obrigado por também o ter partilhado.

Andreia disse...

O pior é k este não é um caso isolado... Sou jovem e quando paro para pensar um pouco no futuro, as conclusões não são as melhores... Quando isto vai para, tudo tende a piorar... Bem sei que não podemos nos levar pelo desânimo... mas por vezes...

Resta a confiança que Jesus está connosco, com esforço e a sua mão tudo há-de melhorar!!!

Thinky_girl disse...

País regido por interesseiros ipocritas, invejosos, egoistas, sei la mais... É triste ver gente quase que não consegue viver, pois não tem dinheiro, gente que se vê com imensas dificuldades em mantar a casa, a familia junta, etc enquanto que há pessoas que se for necessário passam um mês inteiro sem fazer nada, só precisam de estar sentados de frente para um computador umas horitas e no fim do mês o salário esta la... Quem trabalha, trabalha cada vez mais, que nem um burra, acarreta com tudo, com todos e sem nada, e quem não trabalha, trabalha ainda menos, não aguenta nada nem ninguém e tem tudo!!! =(

É muito triste esta sociedade actual! Essa gente que vive dentro do "sistema" se for preciso nem 5centimos dá aos que mais necessitam... É triste e revoltante! Mas é a sociedade em que vivemos!!! E nós?? Podemos fazer alguma coisa?? Grande parte das pessoas vêm, dizem que é mau, que é triste, no entanto a injustiça é só naquele momento! Depois passa e já não interessa!

Fico muito feliz por essa familia conseguir sobreviver, feliz também pelo Sr. Manuel que conseguiu os oculos, mas triste por estarem separados! Espero que Deus os continue a ajudar!

Beijinhos*****

Anónimo disse...

já passei por situações semlhantes...ou piores, levaram-me tudo...mas a verdade é que nunca me faltou nada...estranho?
Ele colocou no meu caminho as pessoas certas...e uma coisa não levaram...o Amor!

1 bj para ti

Luisa Oliveira

Ver para crer disse...

Dá raiva. Uns comem tudo, outros passam privações. Basta ver as aposentações tão díspares.
Mas a nós resta-nos denunciar.

Anónimo disse...

Graças a Deus que o Sr. Manuel conseguiu ter direito a uns óculos novos!

Anónimo disse...

Se há algo que invejo nos sacerdotes católicos é a forma como, em geral, dominam o Português. E lembro-me que nos meus tempos do liceu tive um excelente professor dessa disciplina, de seu nome Abrantes da Cunha e que era ex-seminarista.
E temos aqui um bom exemplo. Parabéns.
Sobre o conteúdo desta belíssima crónica, só posso dizer que algo deverá ser mudado. E não me parece que tal venha a acontecer nos tempos que correm. Com a socratização, as diferenças entre as classes sociais estão a agravar-se para níveis perigosos.
Estou a escrever este comentário de um hotel de Salvador, no Brasil, onde estou a passar férias. O que não quer dizer obrigatoriamente que pertenço à classe dos poderosos e beneficiados... Mas tenho agora o suficiente para pagar estes devaneios, já que no passado tive que passar sem eles.
Em todo o caso, é bom que haja quem levante a sua voz contra os exageros. Porque tenho a certeza de que a riqueza existente em Portual, mesmo admitindo a existência de ricos e pobres, chega para que todos vivam com um mínimo de dignidade.

Ana Loura disse...

E não se vislumbram melhorias, antes pelo contrário, a tão prometida retoma é por um óculo e cada vez o poder de compra, mesmo da classe média, diminui a cada dia que passa. E quem nem poder de compra tem? Os óculos são uma ferramenta de trabalho considerada pela Segurança social um artigo de luxo. Eu não entendo esta "filosofia".

Claro que nós Cristãos temos que ser solidários, ou então não nos poderemos afirmar Cristãos e minimizar-mos, dentro das nossas possibilidades, as carências de quem tem menos

Abraço fraterno

Anónimo disse...

Quantos de nós não estará a precisar de óculos, Padre? Pelo menos daqueles que ajudam a ver ao perto... Passamos indiferentes a tanta injustiça; pactuamos com tanta hipocrisia. Acomodamo-nos. É mais fácil. E depois somos cristãos convictos... Por mim falo.
Achei curioso o número de comentários que este post recebeu até agora: nove! Desvia-se da média... Porque será?
Um abraço

Mafalda disse...

Caro Padre

Ainda bem que existe e está desse lado!É tão bom ter quem nos dê coragem.As situações doem, e muito.É um facto.Mas as suas palavras ajudam.E muito!

Um abraço
Mafalda

Anónimo disse...

Por falar em óculos. Como é possível que a segurança social não comparticipe os óculos graduados para deficiências visuais e a ADSE comparticipe os óculos de sol. Só por existirem cidadãos de 1ª e 2ª categoria.