sexta-feira, fevereiro 25, 2011

A oração antes do jantar

A casa fica ao cimo, quando se vai para o monte, do lado esquerdo. É amarela. Quando lhe bate o sol, torna-se doirada. Mas é discreta. Foi comprada a um doutor que gostava da claridade do sol. A casa fica muito iluminada. Hoje ainda está mais iluminada. Fora convidado a jantar por lá, com a família. São ambos professores. Dedicam-se a ensinar. São novos, mas têm vários filhos. Os que são do seu sangue e aqueles que o coração permite. Vão adoptar pelo menos um. Estavam sete pratos na mesa, o número da perfeição. O meu prato completara o número sete. Quis pensar que era algo fantástico. Quis comentar o número. Porém, como não me achei digno para fazer alusões a um número que me é tão distante, não o fiz. A mesa tinha uma simplicidade notória, mas estava recheada dos sinais próprios de uma visita. Senti-me uma daquelas visitas que é importante porque é assinalada a sua presença, a presença da visita, mas que ao mesmo tempo é tão próxima que não precisa de grandes requintes. Senti-me bem.
Depois de sentados, convidaram-me a rezar. Costuma ser função minha quando janto fora. Desta vez não convidara e fora convidado. A estranheza maior veio de seguida. Mas, senhor padre, temos uma forma de rezar diferente. Se não quiser, passamos à oração dita normal. Foram exactamente estas as palavras. Respondi que estava ali para jantar com eles e era com eles que queria jantar do princípio ao fim. Olhe, padre, antes de rezar propriamente, fazemos um pequeno exercício. É como um exame de consciência. Todos têm de contar o que de mais negativo e o que de mais positivo lhe aconteceu ao longo do dia. Começou o pai. A mãe fez algumas perguntas. Pediu algumas explicações. Depois foi a mãe e o pai fez as perguntas. Ficaram a saber o dia um do outro. Depois os filhos que contaram, alegres, o seu dia. Era-lhes mais fácil descobrir o que gostaram mais do que o que não gostaram muito. Reservaram-me o último exame. Falei com à vontade. Foi isto e isto. Deixaram-me à vontade. Não fizeram perguntas. Mas expliquei-me na mesma. Deu-me vontade. No final agradeceram a Deus o que tinha sido aquele dia. Não sei se a comida ainda se mantinha quente. Também não foi importante, porque o melhor de um jantar em casa de paroquianos é estarmos bem.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

O Mário que errou

Tinha os olhos inchados com um encarnado leve de quem os tinha esfregado porque estavam molhados. Tinha o rosto de um ténue amarelo, como se uma doença ali se tivesse cimentado. Tinha os lábios em forma de u ao contrário, aquele desenho que pintamos quando queremos mostrar tristeza. Foi assim que vi o Mário a correr na minha direcção. Ia atirando com a Laura que vinha também na mesma direcção. Por causa da pressa não a deve ter visto. Ou por causa dos olhos inchados. Ou por todos os motivos que ele tinha e eu não sabia. Entrou na sacristia e não esperou que as pessoas saíssem ou que não o ouvissem. Padre, pequei. Pequei. Com o avançado das palavras só se percebia a terminação, a última sílaba, ei. E tornava a repetir Pequei. Encaminhei-o para uma sala interior. As coisas do interior resolvem-se no interior. No interior que é só nosso. Não é daqueles que apenas querem conhecer o nosso interior para o julgar, ou para se julgarem com um interior melhor. E repetia tanto que só depois percebi a palavra exacta. Errei. Agora que lembro a conversa, a palavra continua repetida na minha cabeça como um metrónomo. E não sei qual delas é, se Pequei ou Errei. Ambas são igualmente difíceis de encarar. Os significados delas é que são diferentes. Um pecado em princípio é um erro. No entanto, um erro não tem necessariamente de ser um pecado. Ambos são fragilidades, conscientes ou inconscientes, condicionadas e contextualizadas. Na minha opinião há quase sempre uma razão inconsciente para pecarmos ou errarmos. Mas é só uma opinião. Pois que se temos consciência do nosso erro ou do nosso pecado é porque sentimos que não o devíamos ter feito. E se temos este sentir, então o termos caído nesse erro ou nesse pecado só pode ser consequência de alguma falha que não se consegue explicar com facilidade. Algo falha e não pode ser só a nossa consciência ou vontade. Opiniões aparte, o Mário estava à minha frente sem outra palavra que não fosse Errei. Não se queria sentar. Mas sentou-se. Não queria falar, mas falou. Falou com a velocidade de quem tem muito para dizer, mas eu consegui escutar como se apenas se tratasse de uma palavra, Errei. No final, suspirou. Poderíamos culpar o cansaço das palavras ditas, mas o suspiro veio bem do fundo. E quando isso acontece, os motivos são sempre o descanso do desabafo. Pensei que já não precisava de mim ou de alguma palavra que lhe dissesse. Mas levantou o rosto que estivera quase sempre descaído, olhou-me e perguntou O que estará Deus a pensar de mim?
A resposta saiu-me tão pronta como toda a conversa do Mário e eu não sabia na altura se ia dizer algo de jeito. Agora tenho quase a certeza que a pergunta do Mário foi respondida pelo próprio Deus.
Deus não está preocupado com o que fazemos mal, mas com o bem que não fazemos.

sábado, fevereiro 12, 2011

Como reages à notícia que revela o aumento de 1,4% de padres?

Li ontem esta notícia que coloquei em destaque. Gostava de a propor à reflexão. O objectivo é fazer uma opção na sondagem que está no sidebar, e depois comentar neste post a referida opção.

Vaticano revela aumento de 1,4% no número de padres
Ordenações superam falecimentos e abandonos pela primeira vez desde 1999
Cidade do Vaticano, 11 Fev (Ecclesia) – A nova edição do Anuário Estatístico da Igreja Católica revela um aumento de 1,4% no número de padres em todo o mundo entre 1999 e 2009, adiantou hoje o Vaticano.
O volume, que vai ser apresentado nos próximos dias, elenca 410 mil sacerdotes, dos quais mais de 275 mil diocesanos e cerca de 135 mil de ordens e congregações religiosas.
O «Annuarium Statisticum Ecclesiae 2009» é redigido pelo departamento central de estatística da Igreja e publicado pela Livraria Editora Vaticana. Segundo os dados adiantados esta sexta-feira pela Rádio Vaticano, o número de padres ordenados em 2009 ultrapassou o dos sacerdotes que faleceram ou abandonaram este ministério, situação que não acontecia desde 1999. Na Europa, contudo, o número de mortes continua a ultrapassar o das ordenações sacerdotais.
O novo Anuário Estatístico da Igreja mostra que o número de padres e de católicos aumenta na África, Ásia e América Latina, caindo na Europa e América do Norte.

sexta-feira, fevereiro 04, 2011

O primeiro, segundo ou terceiro

Barba escanhoada. Óculos ao fundo do nariz. Ar de entendido, mas pouco aventureiro. Faz parte dos maiorais da Junta, mas não é o Presidente. O encontro era aberto. Era um encontro para nos encontrarmos. Isso. Havia paroquianos e fregueses, se assim se pode dizer. Um jantar marcado pela paróquia, mas que podia ser usado por outras entidades. O importante era mesmo a comunidade e o convívio. Mas a Junta tinha combinado dar umas palavrinhas e umas recordações aos miúdos da terra. O presidente não tinha podido comparecer. Por isso o Catarino de barba escanhoada queria pedir-me que desse eu as palavrinhas. Que ele não tinha jeito e o presidente não estava. Para justificar a necessidade, afirmou. Sabe, o presidente é o primeiro da terra e o senhor é o segundo. Por isso cabe-lhe a si. Ao que eu respondi. Ele é o primeiro da freguesia e eu o primeiro da paróquia. Claro que não se trata nem de posições, nem de lugares. Podíamos ser primeiro, segundo, terceiro ou último. Mas cada coisa no seu lugar. Não acham?

quinta-feira, janeiro 27, 2011

A barriga cheia fala mais que a barriga vazia

O padre António, que é meu vizinho, está doente. Pega a sul com as minhas paróquias, para os lados da montanha. Teve uma espécie ou um início de AVC. Ficou limitado à cama e ao descanso. E os seus paroquianos ficaram também limitados ao número de missas. Não há muitos padres disponíveis para fazer substituições.
O padre José, que está a oeste das minhas paróquias e que dista delas cerca de vinte quilómetros, foi operado. Os seus paroquianos há dias que não têm missa. Ele não pode. Os médicos e a recuperação não deixam.
Por isso, no Domingo passado, o senhor Alecrim, que é seu paroquiano, entrou pela sacristia de uma das minhas paróquias, uns minutos antes da eucaristia. Estávamos em amena reinação ou cavaqueira. Sorrisos e gargalhadas. Temos esta maneira de sustentar a boa disposição para nos dispormos com alegria a celebrar. O Alecrim já me conhece e cumprimentou-me. Contou do seu pároco. Recordámos o padre António. Veio a propósito falar da idade média avançada dos nossos padres. A maioria está acima dos setenta. Observámos que as paróquias do José e do António estão sem missa. O António ainda é novo. E às tantas deixei cair o desabafo para o saco. E ainda há por aí quem se queixe. Referia-me aos meus. Porque o horário da missa não é o que mais agrada. É cedo. É tarde. O padre foge, no final, para correr de uma missa para outra. E vem outra vez a missa vespertina. E uma Celebração da Palavra com o presbítero ausente.
Queixas com as razões do comodismo. Pensei-o, mas não o disse. Apenas deixei cair o desabafo no saco. Em saco roto. Foi este o meu pensamento. No entanto o Alecrim chegou para mim e para todos. Sabe, padre, queixam-se de barriga cheia. E repetiu. Queixam-se de barriga cheia. Cuide-se para não ir à cama também. Não corra muito. Faça só o que pode. E não dê importância a quem se queixa de barriga cheia. Quem nos dera que o nosso padre pudesse correr fosse a que hora fosse. Quando não tiverem, darão valor ao que tiveram. A barriga cheia fala mais que a barriga vazia.

sábado, janeiro 22, 2011

Esta Igreja é uma treta

A barafunda instalou-se. Os sete miúdos do nono ano da catequese faziam barulho como se fossem vinte e um. Três vezes mais. Alguns dos rapazes, ainda com pífias na voz, altercavam palavras, dizeres e frases que não se percebia se eram ou não donos e autores delas. Não me admirava que fossem apenas seus amplificadores. Hoje há uma crise de identidade enorme nos jovens. Por um lado querem afirmar-se com o seu Eu bem definido. Por outro, deixam-se arrastar pelo Nós que se tem de aparentar. As falhas na voz garantem que ainda são adolescentes. Mas perante a catequista eles sabem o que estão a dizer. E a barafunda estava instalada. Não é que se estivessem a portar mal. Elevavam apenas a voz para dizer de sua sentença. A catequese é uma seca. A catequista, que não gosta de encolher os ombros, lembrou-se de trocar os papéis e de lhes perguntar se acaso eles estivessem na sua posição como se sentiriam. E repetiram que isto é uma seca. Ou uma treta. Ou bazófias. Então, mas porque vindes à catequese? perguntou ela. Porque a minha mãe obriga, diz um. Porque quero ser padrinho, diz outro. Um deles, sorrindo descaradamente, insinuava que vinha fazer companhia aos outros, aos amigos. É por isso que não ides à missa? tornou a catequista. A missa é uma treta, diz o segundo. Mas então não acreditas em Deus? insistiu. Deus é uma treta. E ponto final. A catequista que não gosta de encolher os ombros, encolheu-os e decidiu apenas escutar. Quando me contou, para eu escutar também, não sabia bem o que sentir. Se desespero. Se pena. Se remorso. Se vontade de continuar esta missão. Padre, parece que andamos a gastar-nos desnecessariamente. No Sábado vou estar aqui às quinze horas com eles. E gostava que Deus também estivesse. Sabe, o que mais me custou foi ouvir que Deus é uma treta.
A mim também. Não entendo como estes miúdos vão à catequese onde, supostamente, se fala de Deus, se fala com Deus, se aprende a amar e a viver Deus, e depois afirmam que Ele é uma treta. Não o disse à catequista, mas apeteceu-me. Esta catequese é uma treta. E se pensarmos que muitos dos ditos cristãos, que enchem ou parece que enchem as quatro paredes das nossas igrejas, querem Deus para justificar as suas idas à missa ou às festas ou a determinados sacramentos, mas depois agem como se Ele fosse uma treta, deixem-me dizer bem alto, com a janela aberta. Esta igreja é uma treta.

segunda-feira, janeiro 17, 2011

A cama

Ontem levei para a cama a Arminda, uma empregada lá do Centro que tem problemas graves de saúde e dependência. Anteontem levei o João e a Alexandra que se zangaram e querem deixar de namorar sem isso acontecer. No dia anterior levara a Diana que continua com aquela doença e teve uma recaída. No outro dia foi aquela catequista que não quer mais dar catequese pois não se entende com a outra catequista. E no outro foi a zeladora que se insinuou para aqueloutra. Nesse mesmo dia também levei os mordomos da festa de Santa Eufémia que querem de uma maneira e eu preciso de outra. Já houve um ou dois dias que levei o Bispo comigo. Agora que penso, já o levei mais vezes. Porque não me ouviu. Porque me calou. Porque não me lembro agora. Não quero. Reconheço que também já levei Jesus. Porém levei-o não para me sossegar, mas para lhe perguntar coisas, desânimos, situações. Durmo só. Mas é raro o dia que não leve mais alguém comigo para a cama. Alguém que não me deixa dormir logo. Alguém que prolonga a minha vida de olhos fechados. Alguém que faz meu coração palpitar porque não sabe como resolver aquilo que precisava ser resolvido, mas não é fácil. Queria entregar tanta coisa a Deus. Leva-os Tu contigo. Leva-os para a Tua cama. E mesmo que leve, não dou conta, porque as pessoas continuam a ir comigo e a fazer com que me sinta um instrumento de Deus que não sabe como usar as suas forças. São quase duas horas. Vou-me deitar. Ainda não descobri quem levarei hoje. Mas pressinto que é outra vez a Arminda.

quinta-feira, janeiro 13, 2011

Até que ponto confias em Deus?

No início de um ano que se nos apresenta com dificuldades prováveis, causadas em grande parte por questões económicas e materiais, não podemos perder a esperança. Esta pode ser uma óptima ocasião para descobrir onde depositamos a nossa confiança, em quê ou em quem confiamos deveras, onde vamos buscar forças para alimentar a nossa esperança. Por isso, surge hoje nova sondagem com a pergunta "Até que ponto confias em Deus?". Não é bem o mesmo que perguntar se tens fé ou se acreditas em Deus. Podes, por exemplo, ter alguma fé, mas depositares mais confiança em ti próprio do que em Deus. Ou até nas tuas capacidades. Ou nos teus bens. Ou nos teus amigos. Ou sei lá. Há tanta forma de confiar muito ou pouco, ou quase nada. Pensa. Reflecte. Não respondas de ânimo leve. Responde depois de pensar e de falar com Ele. Boa sondagem!
Claro que podes (eu diria que até deves) explicar a razão da tua opção nos comentários!

terça-feira, janeiro 11, 2011

A Maria do Céu

A Maria do Céu é uma rapariga que tem mais de cinquenta anos. Suponho que não tem consciência da maior parte deles. Celebra-os porque alguém lhe diz que esses dias são muito importantes. A Maria do Céu é uma rapariga que, apesar da idade, tem a ingenuidade e simplicidade de uma criança. Aparte isso, é apenas mais vivida. Tem alguns dos calos da vida. Se soubesse contar, teria muitas vidas para contar.
E há dias, ao entrar, por acaso, numa das minhas igrejas, ela estava lá sentada. Observei-a durante alguns minutos. Ela não deu conta da minha presença. Pensei que ela estivesse dormitando. Mas não. Parecia bem atenta ao que estava a fazer. Não estava a rezar, pensei. Pois habitualmente murmura muitas palavras na sua oração. Até durante a missa. E ouve-se. Hoje não a ouço. Mas a curvatura da cabeça indiciava-me que estava a olhar para a cruz. Fixamente. Não se mexia. Eu já não conseguia deter nem os pensamentos nem a posição das costas e das pernas. Estava nestes preparos quando me recordei daquele aldeão, em Ars, a paróquia do João Maria Vianney, que passava horas em frente ao sacrário. Um dia o santo perguntou-lhe que fazia tantas horas naqueles preparos e o aldeão respondeu-lhe. Eu olho-O e Ele olha-me. A Maria do Céu olha-O e Ele deve estar a olhá-la. Um e outro não se devem ter distraído comigo. Vou embora. Um dia ainda hei-de saber rezar assim, na simplicidade dos que se amam.

sexta-feira, dezembro 31, 2010

O instante que passa num instante

Cada ano é mais um ano. Disso ninguém duvida. Até aos dezoito somam-se numa lentidão que até custa. A partir dos dezoito, a velocidade é aquela que as multas permitem ou impedem. A partir de uma certa idade, que nem vale a pena explicar ou definir, os anos somam-se a correr. Já não olhamos o presente. Temos apenas olhos para o passado que já foi e o futuro que está tão perto. E depois ainda existem alguns dias do ano em que tudo passa com a velocidade do sol. São os dias que acabam e começam os anos. São aqueles dias em que agora é um ano e num instante, que é um segundo, já é outro ano. É aquele instante que teimamos em contar com doze segundos e doze passas. É aquele instante em que as doze passas têm de ser engolidas a correr e a saltar de alegria. Uma alegria que contrasta com a sensação de envelhecer. É aquele instante que passa num instante.
E é nesse instante que a vida passa na nossa frente cheia de desejos, de intenções, de vontades, de promessas, de esperanças. Não temos tempo suficiente para pensar na vida, mas cuido que ninguém ousa passar este instante sem pensar na sua vida. Recordo que no ano em que a minha mãe faleceu, passei vinte minutos em silêncio numa varanda aberta para as luzes da noite. O silêncio natural das lágrimas. Era com a minha mãe que costumava passar aquele instante famoso do agora é um ano e agora já é outro. Já lá vão umas décadas. A pele ainda era macia. Ainda não tinha sido endurecida pela vida. A penugem começava a parecer-se com uma barba. Devia ter uns dez, onze, doze anos. Já andava no Seminário. Já sabia muitas coisas e faltavam-me saber milhares. Mas levava tudo a sério. E recordo que na passagem de ano toda a gente lá de casa saía para a noite. Conhecia o significado da noite, pois também saíra algumas. Mas na passagem de ano não. Ficávamos apenas eu, meu pai e minha mãe. Uns minutos antes da hora marcada para mudar de ano, já a minha mãe estava na cama, sentada, passando as contas do terço. Nalgumas dessas ocasiões o meu pai também estava com ela. Eu vestia o meu pijama verde-claro, entrava dentro dos seus lençóis, e sentava-me a seu lado. Pegava no meu terço, igualmente verde-claro, aquele que no escuro ficava iluminado, e contava ave-marias com minha mãe. Passávamos aquele instante com a oração do terço. Não imaginam o que eu sentia. A alegria que era poder partilhar aquele instante com Deus e com a minha mãe. Parecia que o ano seguinte se enchia deles os dois. E com eles, os desejos, as intenções, as vontades, as promessas, as esperanças tornavam-se certezas.
Com os anos, aquela forma de passar aquele instante passou ao esquecimento, porque as passas dos amigos caíram-me nas mãos e deixei-me levar pela corrente do engole passas, berras naquele segundo, bates nos tachos, beijas toda a gente, ligas aos mais chegados, e ponto final.
Por isso hoje não vou pegar nas passas. Vou pegar nos amigos que estiverem ao meu lado. E vou levá-los comigo a rezar uma pequena oração. Talvez o Pai Nosso porque gosto muito dele. Preciso de um ano cheio de certezas.