terça-feira, fevereiro 26, 2013

o verdadeiro amor

A Vanda, que trabalhava na cozinha do Hospital, descobriu há dois anos que tinha um cancro. A vida parou. Mas ela decidiu não parar. Pelo contrário, decidiu acelerar. Vou aproveitar a vida ao máximo, dizia. Como se o máximo estivesse naquilo que nós queremos e não naquilo que é uma vida com o máximo sentido. Por isso decidiu deixar o emprego, deixar o marido e os filhos, deixar a vida do dia-a-dia. Sempre que o tempo o permitia, passava-o junto à piscina. Quando vinha a noite, e se esta lho permitisse, passava-a na noite. Juntou-se, e com ela o seu corpo, a outro homem, um médico lá do hospital. Afastou-se dos amigos e não quis saber nem o que eles nem o que o comum dos mortais pudessem pensar ou dizer. Mesmo os filhos. Mesmo o marido.
Há dois meses, porém, a Vanda iniciou uma fase terminal. E o João, que era o marido, sem mas nem meio mas, foi busca-la para casa, para morrer junto dos que eram verdadeiramente dela e a amavam. Ele e os filhos. A Vanda acabou por falecer nos braços do grande amor que o João lhe tinha. Um amor que não se importou com a sua queda, com o seu pecado, com o seu virar de costas, com a sua escolha. É assim o verdadeiro amor que não olha senão para a pessoa que escolheu amar, que a ama porque isso lhe sai do coração e não porque saia de qualquer interesse ou contrapartida. Foi assim a história que costumamos chamar de Filho Pródigo. É assim que infinitamente nos ama Deus. Nós escolhemos os nossos caminhos, caímos, viramos-lhe as costas, e Ele escolheu amar-nos.

quarta-feira, fevereiro 20, 2013

De onde desejarias que fosse proveniente o novo Papa?

A sondagem que hoje proponho é quase um exercício de retórica que não tem sequer qualquer efeito, quer seja em nós, quer seja na própria questão em si, pois como alguém já disse, temos de acreditar que estas decisões passam pelo Espírito Santo. Quero crer que sim! Porém, achei interessante promover, de alguma forma, uma pequena reflexão que parta da pergunta: De onde desejarias que fosse proveniente o novo Papa?
Ainda sem data definida para o próximo conclave, o grupo de 117 cardeais com direito a voto no dia 1 de março está assim distribuído geograficamente: Europa – 61; América Latina – 19 e América do Norte – 14; África -11; Ásia – 11; Oceânia - 1. Os países mais representados são a Itália (28), Estados Unidos da América (11), Alemanha (6), Brasil, Espanha e Índia (5 cada), com mais de metade do total de eleitores. Em 2005, os 115 que entraram na Capela Sistina provinham também dos cinco continentes: Europa – 58; América Latina – 20 e América do Norte – 14; África -11; Ásia – 11; Oceânia - 1. O último Papa não-europeu foi São Gregório III, da Síria, que liderou a Igreja Católica entre 731 e 742. De Portugal estarão presentes dois: D. Manuel Monteiro de Castro, penitenciário-mor da Santa Sé, e D. José Policarpo, patriarca de Lisboa.
254 dos 265 Papas, na sua maioria italianos (212), foram europeus - incluindo o português João XXII, eleito em setembro de 1276 e falecido em maio do ano seguinte. Fora da Europa, além do Médio Oriente, com 8 Papas, apenas três bispos africanos, na altura em território do Império Romano, ocuparam a sede de Roma.
Justifica as tuas opiniões nos comentários.

sábado, fevereiro 16, 2013

A Igreja que não é de um Papa

Pensava eu que a resignação do Papa passara ao lado dos meus paroquianos, quando ontem alguém desabafava dizendo que se sentia um pouco órfã por causa da renúncia do Papa. Que se sentia sem terra debaixo dos pés. E agora, senhor padre, como vai ser? Como se o mundo acabasse com esta renúncia. Ou como se a Igreja acabasse com esta atitude. E já estou como aquele meu colega que se perguntava. Mas as pessoas seguem o Papa ou seguem Jesus Cristo? Que Igreja é esta que depende de um Papa, ou dos bispos ou dos padres, e não de Cristo? Vou-vos afirmar que fiquei muito contente com esta forma de se manifestar a Igreja, onde os homens passam e fica o mais importante, Deus. Vou ainda confidenciar-vos que, quando João Paulo II, que muito estimei sempre, completou os seus setenta e cinco anos, eu encontrava-me ansioso por perceber se ele iria ou não resignar, como propõe o Código de Direito Canónico, dando assim um exemplo que seria único. Mas não. E na altura fiquei, digamos, algo frustrado. Mais tarde, quando os seus ensinamentos já lhe não saiam das palavras, mas de um rosto cheio de dor, eu percebi. Percebi aquilo que toda a gente comentava na época. A força do sofrimento que não se resigna e que se manifesta ao lado de cada um que sofre. Vi nele o rosto de um Deus que não se cansa de estar com todos, sem excepção de dor, de saúde, de sofrimento. Quando surgiu o nome de Bento XVI na pessoa do cardeal da Doutrina da Fé, frustrei-me igualmente, pois desejava um Papa que renovasse a Igreja. Não passaram muitos anos e percebi. Percebi que a renovação da Igreja passava pela sua autenticidade. Nestes dias, quando ouvi a notícia da sua resignação, não quis frustrar-me de novo. Já tinha aprendido a lição com as anteriores frustrações. Antecipei-me. E percebi. Percebi que a Igreja precisa de força e de homens que sabem aceitar a sua condição de fragilidade e que, humildes, corajosos e cheios de lucidez, sabem dar estes passos. Para que a Igreja de Cristo continue. Para que outros possam fazer ainda melhor que eu, porque eu não sou o dono do saber, da vida e da Igreja. Claro que não falei desta forma com a senhora órfã. Recordei-lhe apenas o que em muitas paróquias acontece quando o padre envelhece. Quando não tem forças senão para manter a calmia e comodidade da comunidade. Quando não consegue senão celebrar umas missas com falhas aqui e acolá. Quando já não consegue ser o condutor da comunidade porque o carro engripou. Quando já não consegue ir à frente da comunidade e vai atrás, arrastando-se. Por muito bom que seja. Por muito lúcido. Por muito que tenha vontade. Nessas ocasiões facilmente as pessoas gritam por mudança, por um padre mais novo ou mais capaz. Ora, a Igreja, que é de Deus e todo o Povo de Deus, continua. Há-de sempre continuar. A Igreja não é de um Bento XVI ou de um João Paulo II. Nem é nossa. Nós é que somos dela. Nós é que somos ela. Os homens passam. Só Deus não passa.

segunda-feira, fevereiro 11, 2013

Que achas da resignação do Papa?

Hoje as notícias quase não falaram de outra coisa: O Papa Bento XVI vai resignar no próximo dia 28 de Fevereiro. A notícia apanhou quase toda a gente de surpresa. E assim, numa abordagem quase a quente, que pensaremos nós disto?
Desta pequena inquietação, surge nova sondagem com a pergunta clara e simples: "Que achas da resignação do Papa?"
Já sabem que podem e devem justificar a vossa resposta aqui nos comentários. Acho que ainda vai correr muita tinta, e já tenho outras questões que gostaria de vos propor. Mas demos tempo ao tempo!

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

O padre que decidira deixar a comunidade sem padre

Hoje acordei com um sonho. Acordei quase num salto e fiquei na dúvida se não seria antes um pesadelo. Dizem que os sonhos são coisas do nosso subconsciente, coisas do dia-a-dia que levamos apenas para a noite de forma que não pareça realidade. Ou fruto da realidade que queríamos agendar. Não lembro as personagens do sonho. Tenho a sensação que conhecia alguns rostos. Mas a história desenvolvia-se à volta da figura de um padre que decidira deixar tudo para trás. Não sei se era por causa de uma mulher. Não sei se era por causa do bispo. Não sei se era por causa da paróquia. Não sei se era por causa de Deus. Não sei se era eu o padre. Só sei que o padre decidira deixar a comunidade sem padre. A mesma comunidade que o fizera sofrer quando não o tinham compreendido na sua fragilidade, quando não o tinham aceitado na sua pouca disponibilidade, quando conversavam desconfiadamente sobre ele no café, na fábrica ou na vindima, quando diziam mal dele nas costas, quando criavam uns piropos ao padre para apimentar conversas, quando evitavam os olhares com o padre, quando diziam que o padre só via dinheiro, embora não pagassem a Côngrua, quando não queriam saber se o padre estava bem ou mal, e só queriam saber se tinham padre para o que precisavam, quando o padre não era tido nem achado, quando o padre era só mais um padre. O padre decidira abandonar a comunidade. Decidira deixar a comunidade sem padre. Acordei quando me surgiu a pergunta. E agora que vai ser da comunidade? Por isso é que acordei num salto.

terça-feira, janeiro 29, 2013

O casarão atrás e a casa em frente

O colega que está agora nas minhas antigas paróquias há dias fez-me o convite para entrar em sua casa, aquela que outrora foi minha, aquela que foi construída com a imagem que eu fazia dela. Morei lá quatro anos, os suficientes para me apegar à cor dos sofás que tanto gostava, aos azulejos pequeninos que havia escolhido de propósito, ao cheiro das madeiras e do aquecimento aceso. Não acedi ao convite. Aquela casa não é mais a minha casa, apesar de ter espaço suficiente para mais de uma dúzia de pessoas. Era o meu casarão. Por isso, talvez por lhe lembrar o cheiro e o gosto, eu não acedi ao convite. Na altura em que as decisões de mudar de paróquias ficaram feitas, pensei várias vezes no meu habitat natural dos últimos anos. Não pensei apenas na casa que ajudei a construir com a minha imaginação. Pensei também na organização, nas estruturas que deixava, nas minhas formas de agir que já encaixavam naturalmente com as das pessoas, com os caminhos que trilhámos em comunidade. Recordo que na altura tive um pensamento que não quis reprovar: Os problemas que tinha nas paróquias já não eram os problemas que as pessoas criavam, mas os problemas que as pessoas tinham. Estava, portanto, com uma certa estabilidade pessoal, difícil de apagar. Muito difícil. O meu Sim não tinha sido um Está Bem, nem tinha sido um Não ao que vivia. Tinha sido um Sim à vida e ao chamamento de Deus. Não era um Sim conformado. Era um Sim inconformado, porque a nossa missão deve estar sempre inconformada, desformatada, desacomodada. E parti. Parti com a certeza de que naquele momento o meu sacerdócio saía reforçado. Estar desprendido da minha casa, do meu habitat, das minhas coisas, das paredes com quem tantas horas falei, das minhas organizações, dos meu ganhos de onze anos, das minhas conquistas, até dos que amava, só me fez pensar que o meu sacerdócio não é meu, mas de Deus. Que a minha vida não é minha, mas de Deus. E isso fez-me bem. Muito bem, agora que vejo tudo a uma certa distância. A Casa que tenho hoje é pequena, fria ou quente consoante é Inverno ou Verão para não dizer mais, embora ajeitadinha. Tenho muito que tratar e organizar. Tenho muito que fazer e compor. Tenho muitas amizades por fazer. Tenho muito que amar. Não é bem deixar tudo para trás. Mas é deixar a vida que tinha, em troca de uma vida por ajeitar. E isso só fez crescer em mim o meu sacerdócio. Mas já agora, ó Senhor, o que disse até aqui é verdade, mas a ver se não te lembras de passar a vida a tentar fazer crescer em mim o meu sacerdócio desta forma, que um padre não é de ferro.

quarta-feira, janeiro 23, 2013

Ser padre é um bom emprego

Conversa entre padres, numa daquelas refeições opíparas que se fazem num dia de folga. Ó pá, estou a pensar deixar de ser padre. Disse-o em tom de brincadeira, no meio do palavreado do colega que desabafava um problema da paróquia. Ai, e tal, tenho este problema, é uma chatice, estou cansado destas coisas, e vai que o tal padre, com os lábios a sorrir, num tom de galhofa, solta um Ó pá, vou deixar de ser padre. E um terceiro colega, assim de chofre e para completar o esgar galhofento do outro, acrescentou Não te aconselho, pá. Da maneira como estão as coisas, é melhor deixares tudo como está. Com a falta de emprego que por aí vai... e fez reticências a rir. Todos se riram e concordaram. Eu também. Na verdade, enquanto o comum das pessoas vai perdendo o seu emprego, nós vamos aumentando o emprego, isto é, aumentando o número de paróquias e trabalhos. E claro, não escondamos a peneira, pode não aumentar a generosidade das pessoas, mas aumentam o número das pessoas que são generosas. Ainda me lembro do outro seminarista a quem em tempos ouvi dizer que ia para padre porque tinha emprego garantido! E por mais que a gente diga que este não deve ser o motivo das nossas opções vocacionais, e por mais que se recorde que as ovelhas não são todas viçosas, a verdade é que a realidade é assim. E agora digo eu no meio de uma enorme gargalhada. Vale mais continuar como estou.

quinta-feira, janeiro 17, 2013

Um medo meu

As coisas nas novas paróquias estão a correr bem, escrevia eu há uns meses no meu caderno de ideias ou apontamentos só meus. Relativamente bem, escrevi a seguir. E refiz a frase. O padre é novo. Sabe sorrir. Dizem que sabe falar. Dizem que é dinâmico. Que a paróquia agora não pára. A comunidade parece viva, a viver. Um novo produto vende. A imagem também e a do padre não é má. Quero pensar que sim. Mas a verdade é que a imagem que queremos passar aos outros tem muito a ver com os medos que temos. Um dos maiores medos do mundo, senão o maior, é o medo do que os outros pensam de nós. E paralisa-nos. Chega a atrofiar o que somos, a apagar o que de melhor temos, ou ainda a apagar-nos. Criam em nós um outro eu. Tiram-nos a possibilidade de sermos livres. De sermos autênticos. De sermos. E por isso tenho medo de estar a preservar mais a minha imagem que a imagem de Deus. Tenho medo de não ser imagem de Deus.

sábado, janeiro 12, 2013

Os funerais fazem-me dor de estômago

Fico sempre com o coração aos pulos quando vem um funeral. Desarranja-me a vida e às vezes os intestinos. E não há funeral em que o meu coração não pule repetidamente, em tic-tac, e em acelerando. Porque é estranho ver as pessoas de luto, de escuro. Ver as pessoas com lágrimas nos olhos. Muitas vezes aos gritos ou gemidos. Fazermos o trajecto do cemitério. Darmos conta que alguns dos presentes só fazem acompanhamento, mais nada. Antes do funeral olho para baixo, para o trajecto que faço, para ver se me concentro em fazer o que tem de ser feito, dando algum ânimo às pessoas e muita esperança que vem da fé. Tremo quando penso que vem aí um funeral. Basta ver no ecran do telemóvel o número de uma funerária e já estou assim. Só tenho algum alívio quando deixo as pessoas no cemitério e corro para não estar mais lá. Dizem que os médicos, com o tempo, lidam com a doença e as pessoas doentes como se fossem apenas mais uma ou algo que manejam como o agricultor maneja a enxada. Mas eu não sinto que as centenas de funerais que já fiz deixem de pesar e deixem de me fazer sentir aflito. Ainda por cimo acredito na Ressurreição. Às vezes até me parece que acredito mais na Ressurreição que no próprio Deus. Podia dizer a mim próprio que é uma boa ocasião para pregar a Vida Eterna. Mas quer-me parecer que andarei aqui a vida eternamente com dor de estômago cada vez que tenho de fazer um funeral.

sexta-feira, janeiro 04, 2013

A dona Olímpia e o menino Jesus da cabeleira

A dona Olímpia é tão boa, tão boa, que vê bem em tudo, porque vê com o coração dela que é bom. Já tinha reparado, mas há dias desfizeram-se-me todas as dúvidas. O que vou contar aconteceu numa destas tardes de inverno, depois de ter passado aqui pela paróquia um senhor especialista que veio investigar umas imagens de vestir que andam, ou melhor, estão aqui pelas capelas da paróquia. Uma dessas imagens era um menino Jesus que o meu sacristão deixou de cima de uma arca. Tratava-se de um menino Jesus com roupinha feita pelas senhoras da terra e uma cabeleira comprida, que ele merece. Aliás, não se põe cabelo ao menino se não for para se ver bem ao longe. Por isso que seja comprido. Era uma cabeleira que eu diria mais apropriada para um Senhor Jesus de barba rija, com carreiro ao meio e tudo. Mas pronto. Era, enfim, uma senhora cabeleira. Ora o malvado do padre, que sou eu, resolveu brincar com a cabeleira revirando ou remexendo o cabelo para o lado, isto é, deixando o carreiro ao lado, e fazendo com que a imagem parecesse mais um roqueiro dos modernos que outra coisa. E assim cada vez que alguém passava, o padre perguntava o que achava daquele Jesus moderno. As senhoras com a boca a tapar o riso, compunham de novo a cabeleira. Só que o padre teimava na brincadeira, até que apareceu a dona Olímpia. Vinha para me dar um pequeno recado, mas não se livrou da malvadez do padre e da cabeleira ao lado. Dona Olímpia, como vai a senhora, perguntou o padre sem a deixar dar o recado. E ainda sem receber a resposta foi logo indagando. O que acha deste menino Jesus com este penteado moderno, dona Olímpia. E a dona Olímpia foi logo dizendo. Ai tão lindo que ele está. Foi o senhor padre. Só podia. O senhor padre só faz coisas lindas. Disse-o de forma convicta, que eu sei e já falámos disso. Deu o recado. Saiu. E eu, envergonhado, compus a cabeleira, e pensei para comigo. Aqueles que tudo vêm com um coração sem maldade, não vêm a maldade das coisas.