segunda-feira, abril 30, 2012

O diploma da dona Maria da Conceição

A dona Maria da Conceição inscreveu-se para a celebração comunitária da Unção dos doentes. Participou na reunião de preparação. Mas logo me disse que não podia estar. Tinha lá a família em casa. Faltou, portanto. Não fez o sacramento da Unção dos doentes, por conseguinte. Passada que foi uma semana, no final da missa da paróquia, veio ter comigo à sacristia. Queria o diploma da Unção, senhor padre. Mais do que um certificado, o diploma era uma recordação para quem fez o sacramento. A sorrir do caricato e a sorrir com ela, expliquei que o diploma era para quem tinha feito a Unção. Não fazia sentido levá-lo para casa como recordação de nada. Ou como certificação de nada. E o desplante da dona Maria da Conceição não se fez esperar. Dizia que se morresse e não fosse para o céu, a culpa era minha. Mas, independentemente dos motivos, ela é que decidiu faltar ao sacramento. Só podia estar a brincar. Ainda hoje espero que tenha sido uma brincadeira. Só pode. Como se o embrulho da prenda fizesse as vezes da própria prenda. Às vezes é mais fácil entender as coisas de Deus que as coisas dos homens.

quinta-feira, abril 26, 2012

A senhora de gancho

O gancho no cabelo salientava-se, como se quisesse apanhar alguma coisa ou alguém. Acabara de chegar para celebrar a Eucaristia quando ela veio ao meu encalço. Precisava falar comigo. Não tinha muito tempo, a não ser cinco minutos. Disse-me de chofre que era para me agradecer ter levado Jesus à casa da mãe acamada no dia de Páscoa. A ironia fez-me recordar que um dia antes da Páscoa, portanto no Sábado Santo, pelas vinte e três horas, uma outra filha ou nora da senhora acamada viera pedir-me para levar a Cruz de Jesus à mãe no dia de Páscoa. Recordo na altura ter-lhe respondido que iria com todo o gosto visitá-la, confessá-la, providenciar que recebesse a comunhão em casa, mas que no Domingo de Páscoa era-me impossível. Recordo ainda que nesse dia comecei as minhas cerimónias antes das nove horas e terminei, com uma pausa de cerca de uma hora para almoço, pelas dezanove horas. Além de estar estafadíssimo, era-me de todo humanamente impossível aceder ao pedido. Mas que iria num outro dia. Ao que me respondeu que não. Que teria de ser nesse dia. Ainda rebusquei no meio da agenda uma hipótese, por pequena que fosse, dado que a senhora estava acamada e era dia de Páscoa. Mas ela só queria que eu lhe levasse a cruz como era costume na sua terra. Afinal o que a senhora queria, porque trazia este hábito da terra de onde vinha, era a visita pascal, ou como alguns lhe chamam, as Boas Festas, o Folar, os acompanhamentos. E além de não ter a disponibilidade que a senhora particularmente queria, também não o ia nem podia fazer na paróquia. Não era hábito nem oportuno. Mas a senhora insistiu. Eu vou lá então visitá-la. Não, senhor padre. Tem de levar a Cruz. Só faltava ter de levar também quem a carregasse, quem levasse a caldeirinha de água benta, quem levasse a carteira para levantar o folar, e ainda a alva e a estola vestidas. Expliquei que não podia aceder ao pedido mas que iria, com todo o gosto, um dia visitá-la. Virou costas porque não era isso que queria. Nem queria confessar-se ou comungar. Queria a visita da Cruz porque é hábito na sua terra. Queria o hábito da sua terra. Queria da Igreja o hábito a que estava habituada todas as páscoas. A senhora do gancho, ironicamente agradecida, depois das mesmas explicações que fiz à sua irmã ou cunhada, dispondo-me a visitá-la, disse que não, perguntando se era assim que os padres queriam mais fiéis nas igrejas. Informou-me, resolutamente, para que eu soubesse, que era católica. E virou costas. Eu fui para a Igreja celebrar a Eucaristia e ela voltou para o lugar de onde veio. A rua ou a sua casa, não sei. Na igreja é que não entrou. E são assim os nossos católicos de hoje. Querem tudo menos o que deviam querer. Querem hábitos mas não querem a fé.

terça-feira, abril 17, 2012

As aulas da segunda-feira da Carmo

A senhora Carmo é professora do Ensino Básico. É uma óptima paroquiana. É uma cristã que procura sê-lo. Tem alunos do terceiro e quarto anos. Ao redor de uns vinte. Quase todos filhos de casais novos. No meio de uma colher de sopa, em sua casa, contou-me com mágoa que quase todas as segundas-feiras perguntava aos alunos se tinham ido à Missa no Domingo anterior. E um não redondo e em coro se ouvia pela sala. Um miúdo e outro, de vez em quando, contrariavam o não sonoro. A Carmo lastimava-se. Conversava com eles. Explicava-se. Procurava pelas razões. Os pais também não vão. Não querem saber de Deus a não ser nas festas e nos funerais. À porta da igreja, de preferência. Os miúdos podem não faltar à catequese, mas da mesma forma como não faltam ao ballet ou à piscina.
Vinte crianças significam cerca de quarenta pais mais alguns irmãos. Serão cerca de oitenta pessoas que querem pouco ou nada de Deus. São menos oitenta pessoas nas nossas igrejas. São menos pessoas com fé nas nossas terras. São as nossas terras a esvaziar-se de fé. São a fé que desaparece.

quarta-feira, abril 11, 2012

O padre Tiago diz que anda cansado

Quero chamar-lhe Tiago. Porque em Grego é uma dádiva de Deus. O padre Tiago diz que anda cansado. Chega a casa e só lhe apetece ver televisão. Ou ouvir televisão. Diz que gosta de ouvir diálogos. E se for para a cama cedo ainda tem muita conversa a por em dia com os seus pensamentos. Não gosta destas conversas. O Padre Joaquim e o padre José e o padre Mário estão doentes. Escolhi os nomes ao acaso. Fala-se de uma depressão. Ou quase depressão. São novos. Bastante novos. Têm menos que dez anos de padre. O padre Tiago tem doze. Como ele, outros se manifestam cansados de andar de um lado para o outro. Cinco, seis, sete e mais paróquias. Embora pequenas, multiplicam-se os esforços. Vale mais um esforço grande do que muitos pequenos. Não aparecem às reuniões diocesanas ou outras. Estão cansados deste formato funcional de ser padre. Desta forma ocidental de viver em Igreja à volta de várias paróquias que têm fé à custa de sacramentos desvirtuados da sua essência e colados à sociedade laica. Estava a conversar com o padre Tiago e falávamos de padres novos que não estão a ser felizes. Nisso da felicidade, os padres mais velhos dão passos mais largos. E não se sabe, ou até sabe, porquê. O que precisavam estes padres que andam cansados, doentes, saturados? Perguntou o Tiago. Exigimos tantas coisas aos padres, e deveríamos apenas dizer aquilo que dizemos aos cristãos. Que sejam felizes. O que interessava é que os padres fossem felizes.

terça-feira, abril 03, 2012

Acreditas na tua e na Ressurreição de Jesus?

A Páscoa está à porta. Podemos dizer que a Ressurreição é a base da nossa fé. Porém há quem tenha muitas dificuldades em acreditar na Ressurreição. Mesmo aqueles que dizem ter fé. E ainda existem diferenças de pensar e reagir entre o acreditar na Ressurreição de Jesus e o acreditar na nossa Ressurreição. Por isso hoje surgem estas duas novas sondagens que estão no sidebar:
  1. Acreditas na Ressurreição de Jesus?
  2. Acreditas na tua Ressurreição?
Pedia o favor de responderem obrigatoriamente às duas sondagens, para que se possam tirar conclusões fiáveis. Podem igualmente deixar aqui os seus comentários ou opiniões.
E o que vos desejo, nesta Páscoa, é que Jesus esteja vivo no vosso coração!

sexta-feira, março 30, 2012

As confissões já não são o que eram

Tenho um colega que tem pena porque as confissões já não são o que eram. As pessoas já não se confessam. Dizia que já não têm noção de pecado. Antigamente toda a gente se confessava nesta altura do ano. Na Quaresma. O desabafo fazia algum sentido e tinha alguma razão de ser. Mas perguntei-lhe directamente porque é que as pessoas se confessavam pelo menos uma vez por ano. Como é um colega de normas e hábitos, respondeu com eles. Para comungar pelo menos uma vez por ano. Aquela resposta deixou-me quase congelado. Frio. A confissão não pode servir apenas para comungar. As pessoas não se devem confessar apenas para comungar. Devemo-nos confessar para ficarmos em graça. Claro que só quem está em graça deve comungar. Uma coisa leva à outra. Mas uma coisa não é a outra. Por isso temos cristãos que depois de comungar uma ou duas vezes, deixam de o fazer sem razão ou pecado grave aparente. Por isso temos cristãos que só se confessam com o exterior ou o descarregar dos pecados e continuam num pedaço falso de estado de graça. E por isso pecam com mais facilidade, pois o objectivo imediato da sua confissão é a comunhão. Não é nem o arrependimento nem a paz. Muito menos a graça.
Há dias, para as confissões quaresmais de uma paróquia nova, juntei as pessoas, celebrei a missa, fizemos um exame de consciência, coisa que nunca tinham feito, segundo afirmaram, e depois começaram as confissões. Expliquei o sentido daquela forma de agir. Para que percebessem que estão a preparar a Páscoa e não apenas a comunhão. Mas no final, duas ou três pessoas perguntaram-me se ainda ia dar a comunhão. Lá está. Está tudo dito.

segunda-feira, março 26, 2012

A rixa

As senhoras domingueiras estavam vestidas a rigor. Umas com mais preto. Outras com menos. Mas todas com muita vontade de se confessarem. Tanta vontade que armaram uma rixa para irem na frente umas das outras. As vozes confundiam-se, mas percebiam-se algumas palavras. Invejosas. Falta de educação. Têm a mania que são melhores que as outras. Os bancos eram arrastados com e como as palavras. Restava-me sorrir do caricato. O colega pároco abria os braços. Mas a vontade delas abafava os braços do padre e o meu sorriso. A hora do arrependimento e do exame de consciência deu lugar à hora das confissões e ponto final. O que interessa é confessarmo-nos, que é assim todos os anos. Eu sei que a paciência é um dom difícil de possuir ou alcançar. Sei o que custa esperar. Porém, é-me difícil entender que o perdão possa ser alcançado mais rápido à custa de uma certa forma de pecar.

quinta-feira, março 22, 2012

O Carlos que é meu sacristão

O Carlos é meu sacristão e tem uma pequena quinta. Tem algum vivo. Nos animais e na terra está grande parte da sua vida. Mas como não tem chovido, a sua vida está a secar. É um homem de fé. Olho para o seu rosto, e imagino que os santos são assim. Quanto mais o conheço, mais o admiro do fundo do meu coração e da minha fé. Mesmo que cometa algum erro, não consigo zangar-me com ele. Basta olhar o seu rosto para que a minha chamada de atenção passe a ser apenas um ensinamento acompanhado de um sorriso. O Carlos tem rezado para que chova. Disse-me que pedia a Deus que chovesse, mas também não se zangava com Ele por não chover. E no outro dia, contou-me, estava já na cama quando sentiu o cheiro de ar sem pó de quando acaba de chover. Levantou-se, ajoelhou-se ao lado da cama, e agradeceu a Deus. Foi um gesto muito pequeno e simples. Aliás, muito natural no Carlos. Mas eu logo pensei que não seria capaz de me levantar para me ajoelhar e para agradecer a Deus com esta simplicidade e ternura. Olhei novamente o seu rosto, e mais uma vez tive a certeza que os santos não estão todos nos altares.

quinta-feira, março 15, 2012

A gente não reza porque Deus existe, mas porque O ama

Foi quase uma discussão de café sem xícara. Sem açúcar e sem o amargo do café. Não estávamos diante de um balcão cheio de garrafas, mas numa sala normal onde as pessoas se ouvem. A senhora mais baixa falava de fé. Disse que acreditava em Deus. Que Ele existe e é todo-poderoso, todo-omnipotente, todo-omnipresente. Por isso tinha fé. As outras senhoras concordaram. A senhora mais alta, porém, achou que acreditar apenas que Deus existe não é ter fé. A gente não reza porque Deus existe, mas porque O ama. As outras ficaram caladas a ouvir. Ela não disse muito mais, e pediu para eu explicar melhor. Eu disse Pois é. Que é a forma que utilizamos quando não sabemos que dizer, ou como começar, ou temos muito para dizer. Era a terceira opção. Tentei resumir. Sabem, aqui há muitos crentes, mas poucos cristãos. Aqui mesmo, na nossa paróquia. Se calhar nesta sala. Não levem a mal. Acho que elas ficaram meio assustadas. Mas continuei. Ter fé é ver a vida com o mesmo olhar de Cristo. Fazer com as mesmas mãos de Cristo. Falar com a mesma boca de Cristo, até dizer como dizia São Paulo Já não sou eu que vivo. É Cristo que vive em mim. Não disse mais nada, para não estragar o que tinha dito.

quarta-feira, março 07, 2012

homens de Deus ou dos homens, ou então de Deus ou bons homens

Enquanto a bomba enchia o depósito do meu carro, a senhora da gasolineira, sem motivo aparente, falou do padre tal que era muito boa pessoa. Que era um bom homem. Há dias no café, outra pessoa tinha feito observação idêntica de um colega. E no Centro. E até na sacristia. A minha reação foi sempre igual. Sorrio e digo que fico contente por ouvir o que ouvi. E fico mesmo. Os padres gostamos que estas palavras existam na boca das pessoas para percebermos que afinal somos instrumentos de Deus necessários. Porém, hoje, depois do sorriso e de dizer que ficara contente, entrei no carro, liguei a ignição e comecei a magicar sobre o que gostaria que falassem de mim. Se por acaso falassem e quando um dia falassem, ou imaginando que até falassem. Ficaria feliz que dissessem que era um bom padre. Que era um homem de Deus. E depois veio-me à memória uma história verídica de padres para os lados de África que um dia ouvi. Falava de um grupo de padres que tinham feito muitas obras sociais e investimentos de progresso na missão. As pessoas gostavam muito deles e das suas obras. Deviam imenso àqueles padres. Aconteceu que no dia de uma inauguração importante de uma dessas obras em que estava presente o bispo, um senhor dos mais velhos, um ancião, dirigiu-se ao bispo e agradeceu do fundo do coração a obra dos padres. Que eram muito bons. Entretanto, conta a história que no final do agradecimento, o ancião acrescentou ao bispo mais ou menos isto. Agora que já estão concluídas estas obras, já nos podem falar de Deus, não é?