quarta-feira, novembro 30, 2011

O andar que não sabe para onde anda

O carro anda de um lado para o outro. Eu faço o mesmo. Dentro e fora do carro. Ando de um lado para o outro. Dentro e fora de mim. E as pessoas. As pessoas andam de um lado para o outro. Todos andam, como se caminhar fosse a essência de quem não quer ficar parado. Na vida, no tempo, na história. Nas nossas histórias. Nas vidas que a nossa história tece. A vida começa de manhã e descansa pela noite. E deambula todo o dia numa busca de fazer o que tem de ser feito. Os trabalhos, as refeições, as relações, as horas de estar em pé. As pausas para o aroma do café e para uma ida à casa das intimidades. E tudo anda. E se te sentares num banco do jardim a olhar um ponto fixo do horizonte, provarás que o ponto está lá, mas tudo mexe à sua volta. Porque a vida não pára e nada pára. Olha depois em redor e conta cada passo de cada transeunte. Não param os passos nem as pessoas que olhas discretamente. Toda a vida rola. E chega o final do dia da vida e perguntamos. Porque é que não pensámos antes que a vida é muito mais que este andar de um lado para o outro? E porque é que não definimos que o caminhar é sempre um caminhar nalgum sentido maior? E hoje, que ainda é só de noite, pois ainda não veio o fim do dia da minha vida, deixai que pergunte ao Senhor que é o meu Deus. Porquê? E repito. Porquê, meu Deus? Porque é que o mundo anda tanto e não sabe para onde anda?

sexta-feira, novembro 25, 2011

Um dia os baptismos ainda hão-de ser baptismos

Era-me desconhecida e cuido agora, a uma distancia de dez quilómetros, que me pôs a suar pelo calor que ainda sinto atravessar-me o peito e a nuca. Queria baptizar o filho por tudo o que é mais sagrado, dizia. Já baptizara, faz dez anos, uma filha, e agora era a vez do petiz que tem, senhor padre, dois meses. Eu sei que já o devia ter baptizado, senhor padre, mas não tive tempo. É que o tempo, penso, só existe em nós para aquilo que é a nossa vida. A filha baptizada era do marido, de quem estava divorciada. O filho era do companheiro, que é uma palavra que entrou no vocabulário do amor dos dias de hoje. Expliquei, incomodado, que não era a melhor posição para pedir o baptizado e provei-o com números de leis da Igreja. Mas acrescentei que a criança não tinha culpa, desculpando-me, e que podíamos procurar requisitos para ela se baptizar. Concordou, claro. Depois falei de uma reunião de preparação e começou o habitual negócio de quem não tem as ideias claras da fé. Eu não tenho tempo para isso, senhor padre. E apesar de só ainda estarmos no início da conversa e do negócio, foi perguntando para que era tanta coisa, e afirmando que eram muitas burocracias. Insisti na verdade das coisas, e concordou, claro, porque ela queria um baptizado com verdade. Era difícil por causa do horário de trabalho do pai que este pudesse estar presente. Perguntei-lhe se também não ia arranjar tempo para ir ao baptizado. Compreendeu e falou que ia resolver. Falámos dos padrinhos e do que se lhes exigia. E continuou o linguajar das burocracias. Informei que podia procurar outra paróquia e disse que não queria. Falámos das datas, dos horários e de ser realizado perante a comunidade, na missa, motivos para disparar que ninguém tinha nada a ver com a vida dela. Escolheu um sábado e eu falei da missa vespertina. Concordou até perceber que missa vespertina era à tarde e não de manhã. Falei que eram as normas da Igreja, que não eram minhas e que já toda a comunidade as conhecia. Há três anos que estou aqui. Não sabe. Não conhece, como eu não a conheço. Não vai à missa, sorriu para disfarçar. Perguntei-lhe, com um sorriso marcado por dentes, mais cerrados que abertos, se ela pretendia que a criança fizesse uma caminhada de fé quando ela não a estava a fazer. Calou-se ou achei que a tinha calado. Dei-lhe uns formulários a preencher de um lado e para entender as razões do baptismo do outro. Descaradamente voltou ao dicionário das burocracias. Se as paredes da sacristia estivessem preparadas e não tivessem o branco de uma pintura recente, garanto que as tinha trepado. Por dentro já eu estava a trepar. Voltei-me de novo para ela, cara a cara, olhos nos olhos, e perguntei: Mas afinal eu pedi-lhe para baptizar o seu filho?

quinta-feira, novembro 17, 2011

Qual é o nível de confiança que depositas no teu pároco?

Com estas coisas de mudança de paróquias, revelou-se-me interessante avaliarmos o nível de confiança que temos nos pastores das nossas comunidades cristãs, isto é, os nossos párocos. A nova sondagem pretende perceber se é costume confiarmos nos nossos párocos e até que ponto existe essa confiança. A sondagem, mais do que avaliar os padres-confidentes, pretende perceber de que forma conseguimos entregar a nossa vida, a nossa fé, o nosso coração, ao pároco da nossa comunidade. Coloco a questão da seguinte forma: Qual é o nível de confiança que depositas no teu pároco?

Podem e devem justificar aqui as vossas opções e razões!
Para quem não saiba, o pároco é aquele sacerdote que está à frente de uma comunidade paroquial.

sexta-feira, novembro 11, 2011

Queria uma missa no dia tal

Entrou despachada com uma amiga. Na sala de atendimento da nova paróquia estava uma funcionária que perguntou o que desejava. Eu entrei entretanto. Ela queria uma missa no dia tal. E a amiga três dias depois. A funcionária informou que ainda não sabia que missas havia por essas datas, porque o senhor padre entrara há pouco na paróquia e ainda estava a organizar as coisas e as datas. Ela insistiu que queria uma missa no dia tal e que a amiga queria três dias depois, dado que fazia anos que alguém importante para elas tinha falecido. Interrompi para explicar que já não era possível celebrar em todas as datas que as pessoas quisessem porque os padres eram cada vez menos e as vidas paroquiais tinham de se organizar. Mais ainda, que teria de marcar em data aproximada na qual houvesse missa na paróquia. A funcionária apresentou-me dizendo que era o novo pároco. Não conhecia ainda. Não sabia. Não imaginava. Olhou para mim com espanto e com ar desconfiado. Não discutiu muito, embora torcesse o nariz. De qualquer maneira perguntou como é que poderia ela saber a data da celebração da missa. Expliquei, com alguma matreirice, que essas informações eram dadas na Missa da paróquia. E tão pronto como expliquei, ela explicou também. Eu não vou à missa e reticências, que não quis dizer mais nada que isso. Sorriu engasgada com a minha matreirice, mas não ficou incomodada. Pronto, está bem, disse. E saiu, tão despachada como entrou.

segunda-feira, novembro 07, 2011

cinco Instante: o Víctor

Veio dar-me um abraço. O último abraço. O senhor Víctor é um reformado que já experimentou a vida. É um homem que, quando fala, diz o que a vida lhe ensinou. É estudado. Tem património. Tem uma vida preenchida. E aprendeu a ser cristão, disse-me, com a minha presença. A face encheu-se de um rubor que parecia timidez. Mas não. Era a face de quem gostaria de vociferar ao mundo. O senhor libertou a nossa paróquia de pecados que não cometemos. Olhei para ele com ar espantado, e perguntei que queria dizer. Quero dizer o que disse. O senhor libertou-nos. O senhor mostrou-nos quem era verdadeiramente Deus. Mostrou que Deus nos ama como somos. Que não nos oprime. O senhor mostrou-nos que a fé não se vive com proibições, mas com caminhos. Que a fé não se vive com medos ou com coisas negativas, mas com a alegria de pertencer a Deus. Até hoje os padres ensinavam-nos um Deus que julga e que manda, um Deus que está à espreita para nos levar para o inferno. E o senhor ensinou-nos que Deus, que é pai, tudo faz para nos levar para o céu. Obrigado, senhor padre. Dê cá um outro último abraço.

quinta-feira, novembro 03, 2011

quatro Instante: a Helena

Ligou-me a medo. Não quero incomodar, senhor padre. A Helena nunca faltava à missa, mesmo da semana, porque entrava na missa com olhos tristes e saía com os olhos a sorrir. Ao longo destes anos não teve para comigo grandes manifestações do que quer que fosse. Apenas sorria quando a olhava por entre os bancos da Igreja. Recordo-me de um dia me dizer que me devia a força de vontade de continuar a vida com a sua doença e os seus problemas. Mas era discreta. Tão discreta que no dia da despedida, não se despediu. Andava já há dias para ligar-lhe, senhor padre, mas não queria incomodar. E se agora estou a incomodar, diga que eu ligo outra hora. Respondi que todas as horas eram boas para receber telefonemas e mensagens daqueles que aprendi a amar nas paróquias e que isso até me dava ânimo para a nova missão. Sossegou então. E foi dizendo que tinha saudades. Que a sua vida não mais era a mesma. Que a vida da paróquia não mais era a mesma, embora o novo padre até fosse bom padre. E que gostava de me ver, mas que, dada a idade avançada, isso não devia acontecer. Mas enfim, é a vida. E fomos assim dialogando sobre tudo e nada. Já no final do telefonema, disse porque ligara. Senhor padre, eu só liguei mesmo porque não tive nem tempo nem coragem para o fazer antes. E queria agradecer-lhe pela fé que me ensinou. Hoje sei que tenho fé. Antes não sabia. A chamada caiu, porque desligámos o telefone. Eu caí em mim, e disse. Estes telefonemas fazem-me ter vontade de ser padre onde Deus quiser que o seja.

segunda-feira, outubro 31, 2011

O buraco

Não tenho palavras. Quero encontrar adjectivos para este meu estar, mas não encontro. Quero usar adjectivos suaves ou que me tranquilizem, mas não encontro. Nem sei se me encontro a mim mesmo. Sei apenas que aqui estou, neste meu novo estar. Sinto-me cigano da minha vida, sem casa e sem alimento, sem amigos em quem confiar, a percorrer quilómetros de carro para caminhos que desconheço. Vou e venho, como se ser padre fosse um ir e vir. Como se ser padre fosse um fazer coisas, porque têm de ser feitas. A estrada tem um buraco. Vejo os carros passar-lhe ao lado, como o levita e o sacerdote ao ver a doença prostrada no chão. Também a mim me apetece passar de lado. Mas tenho de tapar o buraco da estrada para ela se tornar aquilo que é, uma estrada. Queria dar um nome à estrada. Mas não sei que nome dar-lhe. Espero, Senhor, nesta minha oração, que me ouças e me dês a pá que preciso para tapar este buraco. Um buraco na minha missão, um buraco na minha vida que não quero que seja da minha fé.

quinta-feira, outubro 20, 2011

Chegou a hora!

(In)completa 2
Autoria Elsa Sequeira


Seriam umas dez da manhã. Estava sentado à secretária, descalço. De manhã ando descalço dos pés. Às vezes ando descalço da vida. Não era o caso. Rezava as Laudes. Mas quando a campainha tocou, senti-me mais descalço ainda. Desprevenido. O toque fora muito subtil, mas sonoro o suficiente. O tempo de me calçar foi insuficiente para pensar quem estará à porta. Não me penteei, que estava penteado. Não são horas de direcção espiritual, desabafos ou parecido. Enquanto atravessei o corredor, pensei nalguma santa com um saco de pêssegos. Encostei a mão à chave e a cabeça à porta. Abri com um sorriso de acolhimento. Depressa se transformou em sorriso de admiração e surpresa. Ou constrangimento. O meu bispo.
Era o meu bispo que estava ali. O assunto é sério, ia eu pensando. Ninguém aparece a estas horas se não for coisa séria, que se passa? Demorei tanto tempo nos pensamentos, que ele teve que me perguntar se não o convidava a entrar. E rimos, como que para desanuviar o ambiente.
Deu-me então a conhecer a razão da sua vinda: Padre x, chegou a hora de partires, para outras gentes, vais para outra paróquia, vai ser bom… O meu bispo continuou a falar, penso eu, mas eu deixei de o ouvir. Um turbilhão de sentimentos inundou-me. O silêncio fez-se presente. Agarrei-me à cadeira, como que não querendo ir, mas, no mesmo instante levantei-me e com firmeza disse: Senhor estou aqui, envia-me.

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E aqui está a minha escolha. Os motivos fui buscá-los mais àquilo que estou a viver que àquilo que gostaria mesmo de ver escrito. Gostei muito do final. E peço a Deus que continue a dar-me essa firmeza. De entre os textos que conduzistes para esta perspectiva da saída de uma paróquia achei este o mais directo, e gostei dele por não ter grandes rodeios e por usar claramente uma linguagem escrita parecida à minha. No que se refere aos textos que conduziram o sentido do conteúdo para o blogue, posso garantir-vos que adorei. Se não estivesse de mudança de missão paroquial, quase de certeza que a minha opção iria para esses textos. Pena também pelo último texto que aparece sem autor e sem título, pois achei-lhe imensa piada.
Abraço amigo a todos os que contribuíram para a (In)completa 2

quinta-feira, outubro 13, 2011

três Instante: a Lurdes

A Lurdes teve um cancro e, diz ela, foi o senhor padre que me mostrou que não devia desistir de viver. Foi o sorriso do senhor padre que me ajudou a sorrir. Por isso a Lurdes não se queria despedir de mim. E quando se foi despedir, disse-me que não se queria despedir do meu sorriso. E que chorara várias semanas seguidas. E que rezara para que eu não partisse. E que até houve refeições em que não conseguiu comer. Não entendia. Não queria entender. Mas ontem, senhor padre, fiquei mais serena. Ela nem sabe dizer serena. Disse qualquer coisa parecida, mas entendi-a. Os anos na paróquia ajudam a entender o que as pessoas querem dizer, mesmo sem o dizerem. Fiquei mais serena, senhor padre. E sabe porquê? Porque entendi que na paróquia para onde o senhor vai deve haver também muitas outras pessoas que precisam do seu sorriso. Limpou duas lágrimas. Deu-me um beijo suave na mão. Despediu-se. Limpei duas lágrimas. Aconcheguei-lhe a mão que agarrara a minha e, simplesmente, sorri.

terça-feira, outubro 11, 2011

dois Instante: o João

O João é um petiz de palmo e meio que eu vi nascer e crescer até ser esse petiz que nos entra no coração e não sai. A família é gente boa. Fazem parte da minha gente boa. O João aprendeu com eles a ser bom e quando vai à missa procura discretamente o meu sorriso. Há uns anos, ainda teria uns três, saiu-se com esta para os pais. O Padre é meu amigo. A partir daquela ocasião, tive a certeza que aquele meu paroquiano era meu paroquiano à séria. Os padres devem gostar dos seus paroquianos. Definitivamente, os padres gostam dos seus paroquianos. Eu gosto e gostava. Por isso gostava dos que se chamam João e dos que se chamam Josés ou Manueis ou Marias ou o que seja, desde que sejam meus paroquianos. E todo este meu raciocínio vem à baila, porque apesar de ter deixado de ser pároco de uma série de Josés e Manueis e Marias ou o que seja, eu continuo a gostar deles. Continuo a gostar do João. Este João que, dois dias depois de me ter ouvido anunciar na paróquia que o Senhor precisava de mim noutra missão, a meio do jantar, em sua casa, de forma solene, pediu licença aos pais e ao mano para dizer uma coisa muito importante. Pai, é importante o que eu quero dizer. Diz lá, meu filho, disse o pai do João. Temos de comprar uma casa nova na paróquia X. Abro entre parênteses para dizer que é assim que quero chamar a minha nova paróquia. E continuou o João. Temos de comprar lá uma casa para irmos para ao pé do nosso padre. A mãe contou-me com as lágrimas nos olhos. Eu ouvi com as lágrimas nos olhos. E escrevo com as lágrimas nos olhos. Mas amanhã, quando estiver na paróquia X, vou lembrar-me que há sempre um João em todas as paróquias.