terça-feira, dezembro 31, 2024

a carta dos nomes [poema 397]

a carta que te envio num envelope branco
tem o teu e o meu nome, tem todos e cada nome 
que o teu nome no meu...
contém

não procures nele palavras para além dos nomes, não as encontrarás.
o envelope branco vai aberto, como aberto vai meu coração 
e as palavras são livres, só os nomes é que não. 
estão presos numa espécie de... 
mão na mão ou mãos na mão.

o carteiro disse-me que tinhas a porta aberta, e não entrou 
tua cabana não estava vazia, estava lotada
com centenas de cartas que te enviou 
alguém 

com um nome que tem todos e cada nome
que o teu nome no meu...
contém

sábado, dezembro 21, 2024

O chefe do Pai Natal

Na missa de Natal da catequese, durante a homilia, no meio do diálogo com as crianças, ao perguntar se já tinham o presépio montado em casa, uma das crianças lembrou que também já tinha colocado o Pai Natal na chaminé. A assembleia riu-se e eu também. Foi, aliás, uma boa ocasião para lhes lembrar como “nasceu” o Pai Natal. Estávamos no século III, por volta do ano 260, quando nasceu, na Turquia, Nicolau, um bom homem que se tornou bispo de Myra, hoje a cidade de Demre, também no mesmo país, onde acabou por morrer a 6 de dezembro de 343, dia em que o santo é assinalado no calendário cristão. Como passava grande parte da sua vida a ajudar os outros, em particular as crianças pobres, não passou despercebido, ao ponto da sua figura se ligar às tradições de Natal nos países nórdicos, sobretudo, na Holanda, onde se começou a festejar o Sinterklaas, mais tarde Santa Claus no Novo Continente, a América, para onde foi levado pelos holandeses. Embora mantivesse alguma ligação a S. Nicolau, o Sinterklaas apresentava-se com barbas brancas, mais de roupas verdes que encarnadas, com um livro na mão onde tinha registado o nome das crianças que receberiam um presente. Já nos Estados Unidos e no século XIX, as grandes lojas passaram a comercializar a figura de Santa Claus, até que nos anos 30 do século XX, surgiu o pai Natal da Coca-Cola. O publicitário Haddon Sundblom inspirou-se no poema “Uma visita de São Nicolau”, de Clement Moore, para criar a figura do homem de barbas brancas, vestido de encarnado, com a gargalhada singular ho-ho-ho, de saco às costas para distribuir presentes pelas crianças de todo o mundo, voando num trenó puxado a renas. Já faz parte do imaginário do Natal e, desde que não ofusque a verdade e essência do Natal, creio que não vem mal ao mundo. Comentava, mais ou menos, estas coisas, quando uma das crianças, convicta e corajosa, levanta o braço e diz: Senhor padre, Jesus é o chefe do Pai Natal. Seguiu-se uma risada geral e as restantes crianças concordaram com ela. Ao menos isso. Que se perceba que o Pai Natal só existe porque o Menino Deus encarnou e nasceu para morar em nós e fazer do mundo um lugar mais feliz.


Aproveito para vos desejar um Santo Natal e um Feliz Ano Novo: Que o nosso coração tenha a porta aberta para Ele fazer aí sua morada! 

domingo, dezembro 15, 2024

Chegou a Hora do meu pai...

Chegou a hora do meu pai. Chegou a hora de passar da condição mortal à condição de imortalidade na vida eterna. Quero dizê-lo com H grande e digo, aproveitando para colocar outra maiúscula no meu pai. Chegou a Hora do meu Pai. Não quero esconder os dias difíceis que atrasaram os meus afazeres, mas não atrasaram o meu coração. Muito pelo contrário. Acompanhei os últimos tempos do seu sofrimento, para que lhe pesasse um pouco menos. Ele ficava mais tranquilo quando eu estava, e estive tanto quanto me deixaram estar. E eu também tranquilizava. Esgotei-me por dentro e por fora. Porém, em tudo consegui ir vendo o dedo de Deus. A festa da partida foi muito bonita. Foi uma grande festa de acção de graças. Não tinha ainda contado aqui, mas meu pai era diácono permanente. Por isso, o meu bispo acabou por presidir à Eucaristia. A homilia foi minha. As leituras da minha família. O canto dos meus amigos. Igreja cheia. Cheia com antigos e novos paroquianos. Cheia de testemunhos de gente que, como diziam, fora meu pai que os levara à fé. Chorei tanto quanto consegui. E sorri ainda mais. Quem nos conhece e conhece a relação de pai e filho que tínhamos, sabe que éramos muito cúmplices. Sempre o fomos. Entretanto, a partida da minha mãe fez-nos viver estes vinte e três anos muito mais um para o outro. Até porque a fé e o modo de entender Deus nos unia imenso. Assim como o ministério ordenado. Diziam as minhas manas que quando lhe faziam uma proposta, obtinham sempre a mesma resposta. Tenho que falar com o vosso mano. Por isso não admira que tivéssemos passado juntos grande parte dos últimos dias antes da partida. Muito rezámos juntos também. Ou eu rezava e ele acompanhava-me. Eu rezava e ele tentava respirar a custo a minha oração. Devo-lhe a ele e à minha saudosa mãe, não só a vida, como grande parte da fé e da vocação. Só posso estar grato a Deus pelos pais que tive. Por isso foram muitas horas de acção de graças, que ainda se prolongam hoje. Para que meus paroquianos compreendam porque ando alegre, explico que não sou super-homem e que sofro como qualquer ser humano sofre na partida de quem ama. Mas a fé é muito mais forte que a dor. O meu pai partiu, mas vem constantemente ao pensamento. E eu sou feliz. Sou feliz pelo pai que tive na terra e que ainda tenho no coração.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Feliz dia do pai" e "Obrigado pela fé que me destes"

segunda-feira, novembro 25, 2024

eu grito [poema 396]

grito para dentro e o eco faz-se na cabeça, percorre a espinha 
e aloja-se no coração. Grito, berro, grito berros que são gritos 

são um grito com milhares de palavras sem percepção, com o sentido 
da tua direcção, 

e as palavras deixam de ser palavras no caminho, porque são

são infinitas, são desditas, são minhas e são palavras sem letras, 
porque são do coração 

quinta-feira, novembro 21, 2024

Não tive tempo de me despedir

Waving Goodbye Sunset Images – Browse 787 Stock Photos, Vectors, and Video  | Adobe Stock
O pai estivera com ele na mesa de jantar na noite anterior. De manhã ligaram-lhe para dizer que o pai partira. Não teve tempo para esperar a partida. Não teve tempo para o ver partir. O pai sempre lhe dissera que gostaria de morrer de repente e sem dor, e Deus ouvira o seu pedido. Mas o filho não tivera tempo para dizer adeus ao pai. E isto desesperava-o. Não tive tempo de me despedir, padre. Não tive. E repetia. Não tive. Mas teve. E tive de o recordar que teve. O senhor teve cinquenta e dois anos, tantos quanto a idade que tem, para se despedir dele. Os dias começam e acabam todos os dias. Cada dia é mais um dia para mostrarmos uns aos outros como nos amamos. Cada dia é um dia de amor e despedida. 
Já lá vão uns três anos desde que tivemos este diálogo. Eu nem me recordava. Mas há dias fez questão de mo recordar, porque, dizia ele, não sabe as vezes que eu tenho dito as mesmas palavras a outras pessoas tal como o senhor padre mas disse a mim! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"
 

sábado, novembro 16, 2024

ficamos “bem mas bem”

O tempo pára quando me ligam do lar. A única coisa que acelera é o coração. Quando na outra segunda-feira me ligaram para me dizer que algo de errado se passava com ele, que não conseguia deglutir, a esperança era de que a chamada fosse apenas para dizer que iam resolver tudo rapidamente e que era só para ter conhecimento da situação. Mas não foi. Teve de ser levado ao hospital, onde lhe detectaram uma infecção respiratória. Pelos vistos, uns dias antes, tivera uma queda sem explicação. Pelos menos ninguém ma deu. Confio em Deus, consciente – porque a gente vai sabendo destas coisas – que uma queda nestas idades é uma queda sem fim e que uma infecção respiratória é igualmente uma queda sem fim. Foi também isso que o médico, por outras palavras, informou. O meu pai é forte. Desde que, com os seus sete anos, ia ajudar o meu avô na pedreira, se fez um homem forte e resistente. É o que está a fazer valer neste momento. Respira com dificuldade. A saturação do oxigénio está sempre a querer baixar. Nem os litros do oxigénio chegam para tudo. As secreções acumuladas não deixam. A febre vai e vem. A morfina ajuda a dor. Mas ele é forte e resistente. Foi assim que Deus e a vida o fizeram. Logo no dia em que o médico falou o que é difícil ouvir, que os quatro filhos nos deslocámos para dizer tudo o que tínhamos para dizer. E dissemos a despedida, com as palavras emocionadas, mas verdadeiras, de quem tem tanto a agradecer a um pai como o nosso. Pai, amamos-te muito e gostaríamos de te ter eternamente connosco. Mas a eternidade não é aqui, e quando quiseres partir, que saibas que nós ficamos “bem mas bem”, expressão tão tua essa do “bem mas bem”. Dizem que os trânsitos destas horas são difíceis. Mas como pai e filhos acreditamos na ressurreição e no Amor infinito de Deus, as palavras saíram com mais facilidade. Eu estou tranquilo. Tenho imensa fé na ressurreição e por isso não estou assustado. Já o entreguei a Deus e faça-se segundo a sua vontade. Estou mesmo tranquilo. A verdadeira Esperança não engana. Isso não significa que não tenha o coração bastante apertado e que a espera não me canse. Aproveito para estar com uma mão agarrada à dele e com a outra a passar-lhe no rosto. Amo-o muito, e não me canso de lho repetir. Um dia de cada vez. Uma hora de cada vez. E a vida continua. Porque a vida vive-se tal como é.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O tempo do meu pai"

terça-feira, novembro 12, 2024

A camisa de cabeção

Comprei a minha primeira camisa com cabeção no ano passado. Estava em Roma, ia cumprimentar o Papa e fez-me algum sentido a compra. Pelo menos, foi o que me disseram que devia fazer e eu anuí. Em Roma é raro entrar-se num meio de transporte onde não haja mais que um cabeção. É comum, normal e banal encontrar homens vestidos com cabeção ao pescoço. Curiosamente, ainda não voltei a vestir essa camisa. Não me ficava mal. Porém, sempre que penso em vesti-la, fico com a sensação estranha de que não define bem quem sou. Sei que a instituição hierárquica sugere que os ministros ordenados se vistam com discrição e, sempre que possível, com vestes clericais. Respeito quem o faz. Nem gosto nem deixo de gostar. Talvez acrescente algo ao meu ministério, mas não sei muito bem o quê. O que sei é que é uma tradição que remonta à Idade Média, quando os colarinhos, consoante a sua forma e cor, rendilhados e costurados, permitiam aos membros do clero, da nobreza e dos homens de ciência distinguirem-se do povo comum. Como havia necessidade de se distinguirem dos demais cristãos comuns, assim nasceram os colarinhos brancos, os clerigman, os cabeções. Um dia destes hei-de ganhar coragem e voltar a vestir a minha camisa de cabeção. Ao menos para me distinguir. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O colarinho branco"

sexta-feira, novembro 08, 2024

Outra celebração litúrgica pouco sinodal

No dia 4 de novembro, uma semana depois de concluída a segunda assembleia do sínodo sobre a sinodalidade, houve, em Roma, uma celebração de sufrágio pelos cardeais falecidos este ano que passou. Para concelebrar com o Papa, somente foi dada autorização aos cardeais, arcebispos e bispos. Não sei se é a opção mais acertada, mas também não tenho autoridade para a contestar. Não obstante, o que mais me chamou a atenção é que, na hora da comunhão, foram chamados ao altar uns padres que estavam vestidos de batinas pretas, revestiram-se com uma estola vermelha, sem mais, e foram eles distribuir a comunhão pelos presentes. Não podiam concelebrar, mas depois eles é que tiveram de ir distribuir a comunhão. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Porque é que Deus precisa dos padres?"

segunda-feira, novembro 04, 2024

A celebração litúrgica pouco sinodal

Acabou a segunda assembleia do sínodo sobre a sinodalidade. As expectativas estavam e ainda estão ao rubro. Comentadores, teólogos e jornalistas de âmbito religioso com os holofotes apontados para o seu encerramento e o documento final. Este último vai ser o principal documento tradutor do trabalho de três anos de sínodo, pois o Papa não vai fazer, como tem sido hábito, uma exortação apostólica pós-sinodal. Gostava que o fizesse, mas é um gesto com sabor a sinodalidade. E agora precisavam-se mais gestos. Muitos mais gestos. E mais do que gestos, precisavam-se atitudes, compromissos e práticas. No entanto, depois dos membros da assembleia terem estado misturados na aula Paulo VI, em mesas redondas, durante os trabalhos de reflexão, não se entende o que aconteceu na eucaristia de encerramento em que, mais uma vez, o hierárquico sobressaiu em desfavor do horizontal ou comunional. O Papa num patamar central, como presidente da celebração, rodeado dos cardeais por ordem de importância, seguidos dos arcebispos, depois os bispos, os padres e, por último, os leigos e religiosos não clérigos. Não gostei. Não gostei nada disto. Foi um mau sinal e espero que não seja um presságio. Talvez tenha sido neste mesmo sentido que os membros sinodais sugeriram, no ponto 27, do documento final, o aprofundamento da “ligação entre liturgia e sinodalidade” para “adoptar estilos celebrativos que manifestem o rosto de uma Igreja sinodal”. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma comissão pouco sinodal"

sábado, outubro 26, 2024

as romagens que tiram a religião às pessoas

Este colega padre tem a seu encargo dez paróquias. Antes de tomar conta delas, estavam entregues a três outros colegas padres. Prevê-se que vai ser assim num futuro imediato nestas zonas interiores do país. Com a redução de vocações ao sacerdócio ministerial, aumenta o número de paróquias por pároco, o que torna impossível manter alguns hábitos, por melhores que sejam ou tenham sido. 
Em grande parte das paróquias portuguesas, por causa de ser feriado, é costume que as romagens ao cemitério, que se deveriam fazer no dia 2, dia dos Fiéis Defuntos, se façam no dia 1, dia de Todos os Santos. Torna-se um bom aproveitamento do feriado e não perde sentido, porque num dia se recordam duas perspectivas da vida e da fé interessantes e que se podem meditar interligadas. O que acontece é que o colega padre, por mais que quisesse fazer o jeito ou alimentar os hábitos das pessoas, não consegue, humana e fisicamente, celebrar num mesmo dia dez missas seguidas de dez romagens ao cemitério. Ora, ao fazer o favor de anunciar, numa rede social, o calendário das diversas celebrações e romagens desta ocasião aos potenciais interessados, qual não é o seu espanto ao ler num comentário, ipsis verbis e com a acentuação tal e qual como escrevo: estes padres conseguem afastar toda a gente da religião sempre foi dia um este para sermos diferentes é dia 2, porquê? 
Haja paciência! Ainda por cima, na paróquia do queixoso, a celebração foi mesmo programada para o dia dos Fiéis defuntos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Homilia para funerais ou fiéis defuntos"

quarta-feira, outubro 23, 2024

uma Igreja poliedro

Da janela do quarto onde me encontro a aprofundar assuntos de fé, teologia, pastoral e evangelização, vejo o pátio de uma escola, ou melhor, um campo sintético onde os alunos passam os recreios atrás das bolas. De vez em quando o barulho é quase ensurdecedor. Mas acaba por favorecer um momento de pausa e descanso. Um destes dias abeirei-me da janela, que abri, e chamou-me a atenção as muitas bolas de diversos tamanhos que os miúdos perseguiam, animados. O campo tem quatro balizas, mas tudo servia de baliza para marcar golos. Parecia estar a assistir a vários jogos de futebol em simultâneo. Era um corrupio de alegria e companheirismo. Os miúdos misturavam-se e era difícil perceber de que jogo ou equipa faziam parte, pois cruzavam-se bastas vezes, eles e as bolas, sem que isso perturbasse a alegria e o entusiasmo do jogo, ou melhor, dos vários jogos em simultâneo. Aquelas crianças eram a prova de que a fraternidade pode coexistir com a diferença e a confusão, desde que o essencial seja o mais importante. Por mais diferentes e variados que sejam os jogos, programas, planos, dinâmicas ou perspectivas, o essencial, na sua pureza, pode unir. Enquanto admirava a cena, pensava na Igreja que vou imaginado como um poliedro. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Pedi uma Igreja diferente"
Foto © Mauro Borghesi/Pixabay

quinta-feira, outubro 17, 2024

o pai do padre

Quando aos dezassete anos informou os pais que ia entrar no Seminário, ao pai só lhe apetecia bater-lhe, e a mãe continuou a esfregar a roupa no tanque, sem retirar os olhos dela. Rapidamente as lágrimas começaram a cair-lhe do rosto, mas quase não se notava porque as lágrimas se juntavam na água do tanque. Ele também não deu conta. Fechou os olhos para não ver. Foi desta maneira que o António disse aos pais, que eram mais ateus que outra coisa, que decidira ser padre. Não era gente má. Mas isso não fazia deles cristãos. Não iam à missa. Não queriam saber dos padres. O irmão mais velho é que se metera na Acção Católica e o mais novo, pelos vistos, sem que se adivinhasse, fora-lhe no encalço. Tão grande era o desplante, que no dia em que o filho fechou as malas e se despediu, o pai lhe disse, em tom de pai, que se cruzasse aquela porta, deixaria de ser seu filho. E o tempo passou. Pouco se falavam e, nas férias, as palavras pouco mais serviam do que para mostrar o desagrado. O filho ainda não era padre e ainda havia tempo de o demover de ideias tão ridículas. Onde já se viu um filho de gente que não é de Igreja se tornar um padre. Antes se tornasse um malandro das ruas. Não o pensava assim, mas verbalizava-o para que o filho pensasse bem no que fazia. E o tempo continuou a passar, como tudo na vida passa. Os anos foram calejando aquela família. Mas nem a ideia do filho nem a do pai desapareciam. Casmurros ambos. Ambos do mesmo sangue. Um mês antes da ordenação sacerdotal, o pai, sem que nem sequer a sua estimada esposa, que o acompanhava nas ideias e nas desideias, soubesse, foi visitar o padre da freguesia. Aquele a quem, pouco depois da primeira conversa do filho sobre a estranha decisão, acabaria por culpar e visitar com um pau na mão, pronto a ser usado se a ocasião fizesse o ladrão. Graças a Deus que o padre não estava só e a companhia o demovera. Agora a visita era por outro motivo. Talvez por ser um coração duro, tardou em abrir-se e a conversa demorou umas boas duas horas. Terminou com a absolvição. Nunca ninguém soube o teor da confissão nem o motivo da conversão. O pai mudou. O pai voltou a ser pai. O pai abraçou o filho na sua ordenação como se fosse a maior alegria que um pai pudesse ter. Perceber que a felicidade é um dom de Deus não é para todos. E o tempo passou. Mas, desta vez, foi apenas um mês. E o pai partiu para o outro pai. Foi de repente e os médicos não puderam fazer nada. O filho ainda hoje gostava de perceber, mas não percebe. Só sabe que os desígnios de Deus não se sabem de verdade. Só se acreditam… e se confiam. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A chorar durante a missa"

terça-feira, outubro 15, 2024

quando ela entrou [poema 395]

a sala ainda tinha o cheiro dos sapatos e da lama. 
a porta da frente estava aberta e a da rua escancarada 
chovia lá fora e, como sempre, cá dentro, a casa 
sempre fora uma rua de gente sem sapatos e pés molhados. 
 
quando ela entrou, vestida de linho e um ramo de flores 
a sala perdeu-se e o soalho despareceu, não havia 
nada onde a gente se pudesse acoitar, era como se fosse 
eternamente de dia e profundamente terra sem chão. 
 
ainda hoje recordo aquele dia, como se fosse além 
do olhar e das horas e dos sonhos e do que mais houvesse 
que não fosse somente a realidade de uma sala com cheiro 
de sapatos e da lama onde os sapatos viviam e não viviam.

sábado, outubro 12, 2024

todos são tão Igreja como aqueles que são a hierarquia da Igreja

A segunda fase da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, sobre a sinodalidade, está a decorrer em Roma, com a participação de 368 membros, dos quais 96 não-bispos também têm voz e voto. Mais de metade destes são mulheres. A primeira fase foi como que uma libertação para expressar muitas preocupações que existem na Igreja. Em resultado das muitas auscultações pelo mundo, surgiram questões importantes, muitas delas fracturantes: a possível ordenação diaconal e sacerdotal das mulheres, o celibato dos padres, o cuidado pastoral com pessoas de diferentes orientações sexuais, a maior participação do Povo de Deus na escolha dos novos bispos, a revisão da forma como os futuros sacerdotes são preparados nos seminários, entre outras. Curiosamente, o Papa decidiu enviar este tipo de assuntos para dez grupos de estudo, com o objectivo de analisar estas questões em profundidade e lançar propostas. Para a assembleia que está a decorrer, parece-me que sobrou o essencial: como mudar mentalidades e levar a sinodalidade à prática diária na vida eclesial. Como já o disse, a mim bastava-me que a maioria daqueles que formam a hierarquia da Igreja fossem reconhecendo que não se é Igreja senão em caminho de mãos dadas com todos, e que todos são tão Igreja como aqueles que são a hierarquia da Igreja.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Igreja clericalizada"

segunda-feira, outubro 07, 2024

Um vaso de flores

Vinte e três anos passam num instante. A gente envelhece e tudo envelhece à nossa volta. Era um jovem padre quando a minha mãe concluiu a sua missão aqui na terra e foi habitar em Deus. Agora caminho para velho. Mais experimentado também. Mas a sentir a mesma saudade de jovem que tinha na sua mãe a confidente e o colo materno e terreno de Deus. Ó mãe, como ainda hoje fazias aqui falta para me escutar e para guardar os meus desabafos! Faz hoje vinte e três anos. Fui visitar a pedra do teu túmulo. Estava bonita como sempre. Mas no lugar das flores, estava um buraco de terra sem flores. Alguém me disse que foram roubadas. Já não é a primeira vez, disseram-me. Ao primeiro impacto, senti-me incomodado. Como poderias estar sem um ramo de flores que adornasse a tua pedra?! Depois de rezar (é assim que falo com a minha mãe), o incómodo passou. É muito triste que haja quem não respeite a morte e a dor alheia. É muito triste que haja quem desça tão baixo por causa de umas simples flores de campa. Mas não são as flores que fazem de ti um vaso de flores. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Estava capaz de gritar"

sexta-feira, outubro 04, 2024

O canto a meio

Há muito que, naquela paróquia, é raro escutar-se o canto durante as missas. Desde que a cantora-mor adoeceu e foi para o lar é raro alguém ter a coragem de iniciar algum cântico. Ao início, tentei a todo o custo chamá-los ao entusiasmo. Mas é algo que não abunda em medida suficiente. De vez em quando começo algum que outro cântico conhecido a ver se pega. É que nem nas festas ou datas litúrgicas solenes alguém se chega à frente. E há dias, mais uma vez, comecei um cântico a ver se lhe pegavam. Como estava a preparar o altar para a liturgia eucarística, com as orações necessárias, e ninguém lhe pegou, acabei por o deixar a meio. E a meio ficou como se não tivesse começado, isto é, como se nada fosse. Não sei que dizer de uma paróquia sem canto! 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A música liturgica"

segunda-feira, setembro 30, 2024

A senhora que não quis crismar-se, de modo algum

Foi convidada para ser madrinha de um baptismo, mas não está crismada. Foi-lhe proposto que pensasse no assunto e que fizesse o necessário para se crismar e poder ser uma madrinha no verdadeiro sentido da palavra. Não. A resposta foi um rotundo Não, de modo algum. Não está interessada. Isto é, não tem qualquer interesse neste sacramento. Não lhe diz nada e também não está interessada que lhe falem da fé ou de Deus. Não quer, com um rotundo Não. Mas gostava de ser madrinha de baptismo da sobrinha. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Tem de ser ele o padrinho"

sexta-feira, setembro 20, 2024

A catequese que nunca lhe valera de nada

Num diálogo com jovens sobre opções e sobre a fé, fazia-se um balanço da caminhada espiritual que cada um estava fazendo. Todos iam falando, uns mais à vontade, outros mais a medo. A Maria, que terminara a catequese de infância e adolescência há três anos, falava sem rodeios. Não era rapariga de faltar às sessões da catequese. E não fazia parte do grupo dos mal comportados. Mas o seu interesse era diminuto, contou. A catequese nunca lhe valera de nada. Ia por ir. Fazia a vontade aos pais e não se importava de acompanhar algumas amigas. Ninguém a interrompeu enquanto falava estas coisas. O resto dos jovens presentes não esboçava sinais de admiração ou de condena. Muito menos eu. Apenas me intrigava que, apesar desse entendimento da catequese, ela estivesse agora ali, presente, por vontade própria, no seio de um grupo de jovens para dialogar e pensar a fé. Até que a Maria concluiu a sua intervenção dizendo: só mais tarde as coisas começaram a fazer sentido. Só algum tempo depois de ter deixado a catequese fui começando a entender como a catequese me fora importante.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A catequista e o menino"

quarta-feira, setembro 11, 2024

nós [poema 394]

não digo que te amo para não gastar a palavra 
ela tem vida própria e faz-se tua quando a digo 
quero, porém, que seja dos dois e fique no pensamento 
onde não me sai e continua a ser minha, mesmo 
sendo tua 
 
amo-te por dentro, que é o lugar onde acontece 
a verdade das coisas 
e guardo-te na palavra que significas tu 
ou melhor, nós 
 
amo-te por dentro porque é o lugar
onde tu aconteces
e somos nós

sábado, setembro 07, 2024

O milagre da morte

Ela queria um milagre. Diante do caixão com o filho de vinte e oito anos, ela repetia que esperava um milagre. O filho mais velho morrera há uns doze anos com sorte parecida, em idade mais jovem ainda. Este segundo filho estivera em sofrimento uns três anos e agora partira para o Senhor. Os pais não têm mais filhos para cuidar. Não têm mais filhos para esperar o seu futuro e sonhar com ele. Dá para imaginar o sofrimento, mas não dá para o medir. Era mais que visível, tanto no rosto pálido da mãe como no do pai, assim como nos seus corpos sem expressão, sem alento, sem força senão para estar ali e se puderem despedir do menino. Olha o teu pai e a tua mãe, dizia o pai. E a mãe desfalecia em gemidos. A Missa foi toda ela um gemido contido. A multidão dentro da Igreja era prolongada pela multidão fora dela. Não se cabia naquele sofrimento. A homilia foi pesada. Foi pesada no sentido de ser pesarosa, e foi pesada porque se pesou cada palavra. A certa altura, a mãe interveio, dizendo ao senhor padre que nunca perdera a esperança, porque esperava um milagre. Ainda bem, respondeu o senhor padre. Como dizia a primeira leitura que escutámos, “A esperança não engana porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações”. O padre cruzava os olhos com ela no primeiro banco da igreja, sofria com ela à sua maneira, e aproveitava as suas palavras para falar do verdadeiro milagre que estava a acontecer. Este mistério da morte, que é tão difícil, é, afinal, o maior milagre da vida. Morremos para vivermos eternamente, porque Deus nos ama para além da vida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As não respostas que são resposta"

terça-feira, setembro 03, 2024

descida na subida [poema 393]

subiu o degrau e eu baixei para a apanhar 
ainda no ar 

cada degrau é uma estrada, 
assim como cada muro é uma escada 

subiu e em cada subida eu desci para a apanhar 
no degrau

quinta-feira, agosto 29, 2024

Como será a Igreja daqui a vinte ou trinta anos?

Temos assistido a um declínio acentuado na frequência dos sacramentos e das celebrações de culto em geral. Cada vez mais os baptizados, apesar de terem recebido o sacramento, vivem como se a Igreja não lhes dissesse nada. A acção pastoral era iminentemente paroquial, mas as paróquias não só têm vindo a definhar, como o número de vocações ao sacerdócio ministerial tem vindo a diminuir. Com o fim da cristandade, aos poucos, a Igreja vai deixando de ser uma maioria. A teologia destes dois últimos séculos e o magistério da Igreja, especialmente graças ao Concílio Vaticano II, fez-nos perceber que o objectivo da evangelização não é impor uma cultura cristã, mas convidar à fé. Ser cristão é muito mais que uma questão cultural. Vivemos, pois, numa fase pós-cristandade, onde o que conta não é o número, mas a autenticidade da fé. O grande esforço de hoje é repensar a nossa acção eclesial e pastoral para chamar à fé, iniciá-la, aprofundá-la e alimentá-la. Não está fácil deixar cair o “sempre se fez assim” para nos tornamos uma Igreja verdadeiramente missionária. Com o ritmo da “manutenção”, falta-nos tempo para pensar seriamente sobre como queremos a Igreja daqui por uns vinte ou trinta anos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Este é o tempo da desgraça ou da graça?"

domingo, agosto 25, 2024

A santinha

Numa das redes sociais da moda foi postada, por ocasião da festa em sua honra, uma imagem de Nossa Senhora. Os likes, os diferentes emojis e os comentários não se fizeram esperar. De entre os comentários, sobressaiu um, onde uma senhora, entusiasmada, dizia que era a santinha da festa da sua terra. A Mãe do salvador, a Mãe da Deus e Mãe de todo o Povo de Deus, a Igreja, transformada em “santinha”. Percebo que se trate de uma expressão típica da religiosidade popular e que o diminutivo possa manifestar o carinho das pessoas. Contudo, também me parece o resultado de uma fé infantilizada.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Santinhas e missinhas"

terça-feira, agosto 20, 2024

Pessoas que são o céu na terra.

Há pessoas que são o céu na terra. Gente que passa despercebida, mas deixa marcas. Gente que não vive senão fazendo o bem, vendo o bem em todo o lado e encontrando Deus em cada bem. Gente que está connosco, não porque mereçamos, mas porque a sua vida é para fazer o bem. A senhora Maria é uma destas pessoas que está sempre disposta a dar de si. É para a limpeza da igreja, é para o coro da igreja, é para ir ao encontro espiritual. De manhã à noite, ajuda o marido na horta e no quintal, faz-lhe o comer, vai às compras para o comer. Leva produtos da horta a uma série de vizinhas e necessitados. Também ao senhor prior. Tudo faz por e para quem necessita. Gasta-se nisto. Não faz nada de especial, mas tudo o que faz acaba por ser especial. De manhã à noite é um pouco de céu na terra.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Quinze maçãs especiais"

sábado, agosto 17, 2024

As leis que não são minhas

Há muitos padres que vivem facilitando a vida àquelas pessoas que fazem pedidos fora das normas, fora do Direito Canónico, fora da doutrina e, muitas vezes, longe do Evangelho e longe da fé. São, de certo modo, padres merceeiros que fazem da Igreja um supermercado e fazem das paróquias uma agência de produtos sagrados “fast food” para atrair clientes. Evito julgá-los, porque quero crer que não o fazem com má intenção. Talvez o façam porque não têm a força e coragem necessária para responder com um Não. Talvez. Talvez. Há que dizer, no entanto, que são motivo de grandes sofrimentos a outros colegas que, tentando ser honestos com a sua missão, procuram ser correctos e coerentes o mais possível com as orientações, regras e leis que também eles devem cumprir. Quando me fazem alguns pedidos a que tenho de responder Não, é meu costume recordar, a quem me faz o pedido, que as leis não são minhas. Tanto as têm de cumprir eles como as tenho de cumprir eu.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não deitar lixo no cemitério"

quinta-feira, agosto 15, 2024

subida ao céu [poema 392]

trago-te ao mundo como quem traz o céu à terra 
para que a terra seja o céu ou nela se entranhe o mistério, 
a encarnação 
 
por isso uno as mãos em oração e teço um mistério 
atrás de outro mistério sem pontas soltas, num terço 
por onde a terra sobe ao céu 

o que vem depois não é teu nem meu,
porque é dos dois

segunda-feira, agosto 12, 2024

Conversa fiada

Quando chegou ao restaurante para comer e festejar com os pais da criança que baptizara há menos de uma hora, o único lugar vago era ao lado de uma familiar de idade algo avançada, uma senhora que parecia já ter dado muito à vida. As mãos mostravam a calosidade do trabalho de campo, assim como a tez morena. No trato fazia lembrar o mesmo tipo de figura. Tinha o marido ao seu lado, do outro lado, mas não se evitava de comentários jocosos ao senhor prior. Falava dos padres como quem sabe a história de cada um. Por isso, às tantas, no meio da conversa, um pouco atrevida, fez uma afirmação do tamanho da sua boca e da sua vida. Todos os padres têm uma amante. Mesmo que muitos padres tenham dificuldade em lidar com o celibato, a coisa, assim dita, suou excessiva e disparatada. Por isso a resposta não se fez esperar, e, diante do seu marido, o padre fez o mesmo tipo de afirmação, de boca cheia e sorriso nos lábios. Sabia que todas as mulheres têm um amante?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A ideia que as crianças fazem dos padres"

quinta-feira, agosto 08, 2024

vir à missa

Os bancos das igrejas não têm enchido como era hábito antes da pandemia pelo covid-19. Se já antes se iam esvaziando aos poucos, agora tornou-se mais notória essa realidade. E naturalmente que custa estar diante de uma comunidade com bancos por preencher. Já não é a primeira vez que depois da comunhão, sentado na cátedra da igreja, fecho os olhos para olhar para dentro, e me pergunto se não terei quota parte da culpa por esta situação. 
Entretanto, um dia destes, a conversa entre alguns agentes de pastoral da paróquia direccionou-se para esta realidade. A maioria também constatava que, por mais iniciativas e dinâmicas arrojadas que se propusessem, a realidade não se alterava muito, o que inquietava e alimentava alguma tristeza. No meio da conversa, lembrei e partilhei algo que tenho pensado muito ultimamente, algo que põe o foco na evangelização e não na eucaristia, algo que nos deveria fazer repensar a nossa acção pastoral. É que eu não quero que as pessoas venham à missa, mas que tenham fé... para virem à missa.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "O Américo faltou à missa"

sábado, agosto 03, 2024

A catequese dolorosa

Não quer voltar a dar catequese, porque está cansada. O marido concorda com ela, pois está farto de ver a cara com que regressa depois de dar catequese. Se os tempos não estão favoráveis para os professores, que têm formação pedagógica para dar aulas e podem penalizar os alunos com as notas, imagine-se como será para os catequistas. Não se entende como é que algo que deveria ser, à partida, um motivo de alegria, é um motivo de aflicção. Quando a catequista já vai em sofrimento para a sessão de catequese e a desejar que ela acabe depressa porque sabe que vai sofrer com o mau comportamento, desinteresse e indiferença dos catequisandos, que dizer ou fazer?! A catequese, tal como a educação, começa em casa. Mas...

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "Catequese na piscina"

sábado, julho 27, 2024

dor de mãe [poema 391]

a espinha é percorrida pelo cansaço, move-se apenas por fora 
porque a mãe não dorme nem descansa em nome dos filhos 
ser mãe é ser uma vida para quem se gerou 

mas o cansaço instala-se, clama por algo que se esconde 
detrás dos sorrisos, entre o seu significado e a sua verdade 
tão diferente sorrir cansado por amor e sorrir cansado por amor 

a espinha é isso que põe uma pessoa em pé, mesmo com dor 
de mãe

quarta-feira, julho 24, 2024

restos de casas [poema 290]

os restos das casas estavam sobre a mesa 
por cima da madeira e de um pano de linho, trabalhado 
da avó que tivera doze filhos, imagine-se, 
como eram outrora as construções das casas 

em seu redor três cadeiras e três bancos antigos 
daqueles que parecem madeira que dura sempre 
discute-se quantas casas se hão de construir com os restos 
gasta-se, é mesmo essa a palavra, gasta-se o tempo 
das casas novas

sábado, julho 20, 2024

Uma Igreja que se quer sinodal, mas na mesma

Vou lendo aos poucos o Instrumentum Laboris para a segunda sessão da XVI assembleia geral ordinária do Sínodo dos Bispos a ocorrer no próximo mês de outubro, e vou lendo também as opiniões e os comentários de alguns observadores. Não me reconheço abalizado para fazer parte deste grupo de pessoas, mas tenho as minhas opiniões, que são, acima de tudo, formas de sentir. Neste sentido, devo referir que também eu não tenho soluções fáceis ou óbvias que transformem a estrutura institucional pesada e milenar da Igreja Católica. Contudo, leio e vejo tantas palavras que me parecem só palavras, que fico algo constrangido. Tenho receio que as palavras vençam, mais uma vez, as acções, atitudes e mentalidades. Tenho receio que não se passe das palavras às práticas. Tenho receio que este sínodo sobre a sinodalidade não consiga acabar com o modelo clerical hierárquico, autoritário e patriarcal. É certo que muitos dos temas importantes não estão contidos de forma clara no Instrumentum Laboris porque foram entregues a dezasseis grupos de estudos especiais, mas, por sinal, constituídos por 74% de clérigos. Não faz sentido querer uma Igreja sinodal e manter uma Igreja clericalizada, autoritária e patriarcal. Tenho receio que este sínodo seja como muitos dos anos especiais disto e daquilo, dos sínodos dos bispos para isto e para aquilo que, depois, na prática, mantêm quase tudo igual. A Igreja não pode continuar a repetir palavras sem alma e sem vida.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Igreja clericalizada"

Pode ler AQUI na íntegra o Instrumentum Laboris.

segunda-feira, julho 08, 2024

Os preços dos casamentos

Na Coreia do Sul o padre que preside a um casamento recebe, no mínimo, quinhentos euros. Mesmo assim, é o custo mais barato da cerimónia, porque os noivos gastam muito mais noutras coisas. Em Portugal, mesmo que a celebração ande em redor dos cem euros, os noivos queixam-se quase sempre, falam mal dos padres e dizem que a Igreja só quer dinheiro. No entanto, acham praticamente normal gastar cerca de dois mil euros no vestido da noiva, mais mil e quinhentos euros no produtor de imagem, mais aproximadamente uns mil euros para flores e outros adornos, mais seiscentos euros para os músicos, and so on and so on... É como querer gastar pouco dinheiro com uma prenda e não se importar de gastar muito com o embrulho da prenda.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Uma benção especial de alianças"

quinta-feira, junho 27, 2024

Os avós, esses evangelizadores modernos

Na França secular e descrente, alguns dados inesperados têm dado que falar aos diversos analistas. Na última vigília pascal, foram baptizados 7.135 adultos nas dioceses francesas, dos quais 36% tinham entre 18 e 25 anos, assim como 5.000 adolescentes ou jovens entre 11 e 18 anos. Mais de 12.000 no total e quase todos em idade da juventude. Dizem os analistas que se trata de 31% a mais que no ano passado e 120% a mais que há dez anos. Naturalmente que a pergunta surge: qual a origem desta mudança? E a resposta dão-na também os analistas: As avós. E, um pouco também, alguns avós. Dizem eles que estes aproveitam o maior contacto com os netos durante as férias de verão ou outros períodos de descanso onde podem estar com eles, para os aproximar da Igreja, para os acompanhar à missa, para lhes ensinar a rezar. 
Na sociedade do efémero, do voraz e do passageiro, é verdade que muitos pais se demitiram da educação dos filhos. Deixaram de ter tempo para eles. Deixaram de ter tempo para a fé. Deixaram de ter tempo para pensar a vida. Por outro lado, os avós têm todo o tempo do mundo, apesar de pouco tempo que lhes possa restar. E têm a fé que foram amadurecendo com o avançar da idade e com a história religiosa que os construiu. Os avós são hoje, em imensos casos e lugares, os maiores evangelizadores. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As 'avós da fé' ou 'catequistas dos tempos modernos'"

quinta-feira, junho 20, 2024

a Igreja e o 'um aqui e um ali'

O senhor padre fora da igreja é como os outros, dizia a senhora Maria. Mas quem são esses outros?! pensava eu. Para haver outros, tem de haver algo que diferencia ou separa. Assim também a observação d ‘O senhor padre é que sabe’, aumenta uma distância que não é desejável. São afirmações que ainda se ouvem da boca de um número notório de paroquianos e que fazem parte de um entendimento com quase dois milénios de história da Igreja que potenciou um aqui e um ali. Como se houvesse um binómio antagónico entre o religioso e o secular. Como se houvesse um dentro da Igreja e um fora da Igreja. Como se a Igreja se identificasse apenas com a sua hierarquia. Como se houvesse uma distância entre presbíteros e leigos. Como se houvesse um espaço sagrado e um espaço mundano ou profano. Ou seja, como se a Igreja fosse um espaço e o mundo outro. E em cada um destes espaços houvesse um sujeito diferente: na Igreja o clero e no mundo os outros, os leigos. Como se a Igreja se definisse por lugares e por estados de vida. Por isso me cansam certas dicotomias dentro da Igreja que apenas servem para separar aquilo que deveria estar unido. Ora, nós, padres e leigos, somos Igreja onde estivermos, porque o que nos faz Igreja não é o lugar onde estamos, mas o que somos e como vivemos. A Igreja existe e é Igreja em todo o lado onde estejamos os que somos Igreja. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

quinta-feira, junho 13, 2024

pedra [poema 389]

ainda sou uma pedra sem vida 
parada e calcada. 
no entanto, calço também outras pedras 
da calçada 
 
não ando não porque as pedras não andem 
não ando porque as pedras me doem o andar 
 
ainda sou pedra que quer ser estrada 
na vida calcada

segunda-feira, junho 10, 2024

Os novos missais

Também tive resistências em mudar o meu e o hábito das pessoas com o novo missal que, em Portugal, foi preparado e aprovado pela Conferência Episcopal Portuguesa a 19 de Novembro de 2019, validado pelo Papa Francisco e confirmado pela Santa Sé a 13 de Outubro de 2021 e que entrou em vigor a 14 de Abril de 2022. Recordo a dificuldade que tive em aceitar a mudança e as justificações que fui arranjando para adiá-la. Percebi em pouco tempo que, mesmo que não concordasse com algumas das alterações a nível metodológico, teológico e litúrgico, fazia sentido dar esse passo, sobretudo em razão e em nome da comunhão que defendo na Igreja. 
Entretanto, para meu espanto, passados estes dois anos, nalgumas paróquias - pelos vistos bastantes - continua-se a usar o missal antigo e alguns colegas pouco ou nada fazem para usar o novo. Ainda há dias um deles me dizia que não mudava porque não gostava da linguagem de algumas orações. Naturalmente que estranhei a justificação, uma vez que ele ainda não manuseava o novo missal. Também não deve ter sido muito diferente quando, em 1969, Paulo VI promulgou o novo missal romano, fruto da determinação do Concílio Vaticano II. As mudanças custam sempre. Mas se não existissem, não sairíamos do passado e nunca seria presente. Valha-nos ao menos que, por este andar, em Portugal os novos missais serão sempre novos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "O padre não é bom da cabeça"

sexta-feira, junho 07, 2024

Crua [poema 388]

cru, esse espaço cru entre as duas mãos, que não se apertam 
são da mesma carne e do mesmo corpo nu 
a dor enche-se de ar como um pulmão vazio 
clama por um sinal que se torne um cordão umbilical 
 
ai esses tempos antigos que faziam das catedrais 
lugar, 
 
ai esses tempos antigos que construíam capelas no lugar 
do coração 
e eram a Igreja nua 
e crua

terça-feira, junho 04, 2024

Dou por mim muitas vezes a não dar por ti, Senhor

Arrepiei-me ao ver, num pequeno vídeo, o modo como o padre Pio olhava fixamente a hóstia consagrada em suas mãos. Quase me vieram umas lágrimas ao rosto. Assim também no vídeo, após um longo momento detido com o olhar em Jesus sacramentado, o padre Pio teve de usar um pano para limpar as lágrimas, tão emocionado estava. Já sabia que ele tinha um profundo amor à Eucaristia, mas agora via-o com os meus próprios olhos. Fiquei embaraçado. Envergonhei-me das muitas vezes em que me distraio a celebrar a Eucaristia. Na verdade, muitas vezes o meu pensamento voa para as preocupações da vida, para as inquietações do ministério sacerdotal, para as decisões pastorais, para os problemas das pessoas que também me apoquentam. Dou por mim muitas vezes a não dar por ti, Senhor. Que vergonha! Dás-me a graça de te poder olhar a um palmo de distância, de poder usar as tuas palavras da Última Ceia, de poder estar contigo suspenso nas minhas indignas mãos, e perco-me na minha limitada condição existencial e sacerdotal. Li, em tempos, que o padre Pio afirmara: “Que a sua primeira eucaristia e a última tenham o mesmo amor e o mesmo ardor”. Peço-te perdão, Senhor, pelas vezes em que não tenho presidido à Eucaristia como devia. Sei que te tornas presente em cada Eucaristia, independentemente de quem a preside e do modo como é presidida. Mas, por favor, faz-te presente também em mim sempre que eu celebre a Eucaristia. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não falo não falo e não falo"

quarta-feira, maio 29, 2024

As promessas e as despromessas

Estou consciente que muitas pessoas, quando fazem promessas a Deus para obter algum dividendo em troca, o fazem sem pensar verdadeiramente nas suas consequências. Na hora da aflição prometem coisas que depois têm dificuldade em cumprir. Mais ainda quando são promessas não temporárias. Aconteceu assim com o Manuel. Quando estudava na universidade fizera uma promessa: não rapar mais o seu cabelo, caso o Senhor o ajudasse a passar numa disciplina extremamente difícil. Tudo correu como desejado e não mais rapou o cabelo. No entanto, uns anos mais tarde, começou a perder cabelo e, mesmo após várias tentativas para reverter o processo, foi-lhe aconselhado rapar o cabelo. E aí começou a preocupação com a promessa que não pretendia quebrar. Por isso perguntava se seria possível quebrar uma promessa ou reformulá-la, e se isso não seria contra a vontade de Deus. 
Não o quis julgar, porque evito este tipo de julgamentos, mas reconheço que fui duro ao dizer-lhe que era uma tolice fazer esse tipo de promessas, as quais, ainda por cima, pouco acrescentam à nossa fé ou vivência cristãs. Na verdade, grande parte das promessas que se fazem não parecem mais que um negócio com Deus. Deus não é nem um bombeiro nem um comerciante de troca de benesses ou graças. O que Ele quer é a nossa felicidade. Por isso o Manuel também não precisava estar tão preocupado. O melhor era levar mais a sério a sua relação com o Senhor, amadurecendo e aprofundando a fé. Ainda assim, digamos que é possível reformular uma promessa com auxílio, de preferência, do confessor, sem que se faça disso um procedimento banal. Se ser fiel a uma promessa é importante, muito mais ser fiel ao Senhor!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Prometi uma missa a Nossa Senhora do Ó"

sábado, maio 25, 2024

o Deus das opiniões

Vivemos na sociedade das opiniões. Hoje toda a gente tem uma opinião sobre tudo. Tudo é escrutinado por opiniões que se multiplicam sobretudo em redes sociais. Toda a gente, independentemente do assunto e da sabedoria do mesmo, tem uma opinião que se torna verdade absoluta do seu dono porque se tem de respeitar a opinião de cada um. São, no fundo, opiniões que se tornam verdades. Mas são verdades sem objectividade, sem substracto, sem argumentos seguros. Por outro lado, as verdades passam a estar dependentes das opiniões. Só existe uma verdade se for essa a opinião da pessoa que a assume como tal ou do grupo que a consolida por ser um conjunto de pessoas a pensar de modo igual. Neste contexto, como fazer de Deus mais do que uma opinião?!

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Falar de Deus"

quinta-feira, maio 23, 2024

mãe [poema 387]

ainda recordo a terra húmida do seu colo 
o sangue a derreter com o calor das suas mãos 
no embalo da vida 
 
as formas do corpo não tinham rosto, sempre as vi como mãos 
como mãos de pianista a desenhar espaços de luz, 
a germinar 
 
gosto de recordar esse tempo de madrugada 
trazê-lo a mim como quem traz uma sombra agarrada 
ao sol 
 
não havia mal que pudesse suceder 
nem pontas soltas de azar ou de desamor 
ainda ontem eras o regaço e hoje és 
estás a nascer

quinta-feira, maio 16, 2024

Os padres e as paróquias não vivem do ar

As pessoas pensam que os padres e as paróquias vivem do ar ou dos proveitos do Vaticano. A Igreja é sempre rica por natureza na mente das pessoas. E os padres uns oportunistas. Por isso dizem que os padres só querem dinheiro e não fazem nada de graça. As mesmas pessoas que raramente são generosas com a comunidade cristã e pouco se importam se ela tem gastos e necessidades. Pressupõem que, por se tratar da Igreja, tudo é gratuito. E a verdade é que tudo deveria ser gratuito na Igreja, porque todos os seus gastos deveriam ser supridos pela generosidade dos membros da comunidade. Nas comunidades cristãs primitivas, ao que se sabe, a partilha e a hospitalidade eram características do ambiente comunitário. Agora, perdeu-se o sentido da “comunidade” e ganhou o sentido do “supermercado” numa sociedade consumista até ao nível religioso. A missão dos padres é gratuita e deve ser desinteressada. As paróquias estão abertas de modo desinteressado e desprendido. Mas o ar não paga as contas e ninguém vive do ar. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não há engano que pague a nossa generosidade"

quinta-feira, maio 09, 2024

Leigos a presidir eucaristias?

Um bispo espanhol em Africa, para visitar uma das muitas comunidades que tem a sua diocese, tardou mais de uma hora para percorrer uma distância de 13 quilómetros, o que informa como é a estrada. Por isso não é de estranhar que, associado à falta de padres, a última eucaristia que aquela comunidade tivera fora há 8 anos. São duas ou três centenas de pessoas, a maioria cristãos. Não deixam propriamente de ter fé, mas têm imensa dificuldade em alimentá-la. A eucaristia não resume nem aglutina em si a vida da fé mas, se é o centro e o cume da vida do cristão, que dizer a estas duas ou três centenas de cristãos que não têm possibilidade de aceder à eucaristia? A acção da Igreja vai para além da eucaristia, porque a sua missão é evangelizar. No entanto, a realidade leva-nos, ao menos, a equacionar a hipótese da presidência da eucaristia ser feita por um leigo. A este propósito, Tomás Muro Ugalde publicou em 2020 um artigo na revista Scriptorium Victoriense “Sobre a presidência da Eucaristia”, onde faz a mesma pergunta recorrendo a grandes autores e teólogos. Sabemos que na origem da Igreja não existiam ministros ordenados e que o sujeito eclesial era a própria comunidade. Com a metamorfose constantiniana, cimentada pela Igreja da Idade Média, o sujeito eclesial passou a ser a hierarquia. Sei que é um assunto melindroso e também não tenho certezas. Assim como não pretendo ver nisto a solução para a falta de vocações ao sacerdócio ministerial. Talvez assim se recuperasse um pouco mais a comunidade como sujeito eclesial. Não precisamos de leigos clericalizados, mas a pergunta é pertinente. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Nós e vós"

domingo, maio 05, 2024

Também te amo

Basta-me o teu olhar. Basta-me o teu olhar para ter a certeza de que estás fixo em mim, e que essa fixação é estar comigo. Gostava muito de ter palavras tuas e de ouvir sons que construíssem palavras, mesmo que não fizessem sentido. A verdade é que cada vez tenho menos palavras tuas. Mas não tenho menos certezas. O teu olhar fixo em mim diz mais do que qualquer palavra pudesse dizer. E os teus beijos miudinhos parecem enormes. Têm um tamanho sem tamanho. Sempre que encosto a face nos teus lábios, esboças o beijo mais puro e o beijo que mais me importa. Além do teu olhar fixo, basta-me também um beijo, um pequeno murmúrio de beijo, para ter a certeza que o amor por inteiro está nele... e vem a mim. A tua vida prolongou-se na minha através do amor íntimo com a mãe. A tua vida vem a mim desde que me chamaste a ser. O amor gera sempre amor. E mesmo que estejas no lar, sem as capacidades que todos lá em casa gostaríamos que tivesses, não deixas de ter um amor por inteiro. E eu não deixo de o sentir em cada olhar fixo no meu olhar, em cada murmúrio de beijo na minha face. Também te amo, meu pai.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A minha mãe está viva"

Bom "dia da Mãe" a todos os pais também!

sexta-feira, maio 03, 2024

O dia de Páscoa

O dia de Páscoa já lá vai. Houve amêndoas. Houve pão de azeite. Houve almoço melhorado. Houve reunião de família. Na missa gritou-se que Jesus ressuscitara e os que nela participaram estavam contentes. O ambiente de festa o proporcionava. Uns dias antes a azáfama andava à volta da sua paixão e da sua morte, mas agora isso já não interessava, porque Ele ressuscitou. A boa notícia da ressurreição é a certeza principal da fé. Mas o dia de Páscoa já la vai. Logo na segunda-feira se regressou ao trabalho ou à escola. Tudo continua igual, no mesmo sítio. As ruas permanecem com as mesmas pedras. E o caminho continua o mesmo. Continua a parecer mais caminho a subir para o calvário do que a descer do sepulcro vazio. Por outro lado, não vimos a sua ressurreição. Nada. Ele não nos apareceu. Nem o sepulcro vimos vazio. O padre bem que se explicou na homilia da missa, mas que fazer com isso? Não sabemos que fazer com a boa notícia da ressurreição. Não sabemos que fazer com a Páscoa. Parece mais um rito que uma experiência. Parece mais um hábito que uma vivência. Andámos quarenta dias de quaresma a preparar-nos para algo grande, mas passou num instante. Num dia. Ainda que a Igreja nos proponha um período pascal de mais dias, parece que a Páscoa já lá vai. As rotinas tomaram-lhe o lugar. E não sabemos onde está o Senhor, onde o puseram. Não sabemos se ressuscitou para se guardar escondido num sacrário ou numa igreja, se para morar no nosso coração. O que sabemos é que o dia de Páscoa já lá vai e continua tudo igual. 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "A tradição da procissão de Páscoa"

segunda-feira, abril 29, 2024

As categorias tridentinas

Têm aumentando os estudos sobre a crise religiosa e as urgentes reformas da Igreja, mas os agentes pastorais principais, sobretudo os que têm algum poder de decisão, continuam com dificuldade em arriscar e em repensar posturas, mentalidades, pastorais e estruturas cristãs. Entretanto, as pessoas abandonam os bancos das igrejas, os baptismos diminuem, os casamentos religiosos estão em queda livre, as vocações à vida consagrada definham, os seminários estão vazios e os padres abandonam o ministério ou adoecem com esgotamento. A pastoral continua praticamente concentrada na “paróquia” onde permanecem os mesmos ritmos, as mesmas iniciativas, os mesmos métodos de há muitos anos. Mesmo depois do concílio Vaticano II ter aberto portas a uma Igreja mais comunhão e mais missionária, há uma dificuldade enorme em sair do “sempre se fez assim”. Nem mesmo uma pandemia que interrompeu durante meses o trabalho pastoral e que foi vista como uma oportunidade para reler o tecido eclesial e as estruturas paroquiais e pastorais, conseguiu esse objectivo. O cristianismo mudou de forma muitas vezes na história. Por que persistimos em não ler os sinais dos tempos e em enterrar a cabeça na areia, propondo uma vida de fé que parece seguir essencialmente as categorias tridentinas, com alguns acréscimos e atualizações do século XIX e algumas estruturas do século XX? 
 
A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "As dicas e tricas de uma paróquia"

sábado, abril 20, 2024

a droga

Na aldeia toda a gente se conhece e toda a gente sabe tudo de todos. Toda a gente se mete na vida de toda a gente. Ninguém é indiferente a ninguém, para o bem e para o mal. Quando o filho da Antónia, de nome António por amor da mãe, entrou para o Seminário, não faltaram as murmuradoras e os murmuradores da aldeia nas conversas da rua. Mas uns vizinhos, que se achavam mais próximos da Antónia, já que mais não seja pela distância geográfica, bateram à porta para tirar nabos do púcaro. Ó Antónia, é verdade que o teu Antoninho foi para o Seminário? Dizem para aí que ele foi. E a Antónia, que não tinha nada a esconder, respondeu que sim. Sim, foi na outra semana. O rapaz quer ser padre e a gente não lho refuta. O que ela queria era que o filho fosse o que quisesse ser e que fosse feliz. E a resposta dos vizinhos não se fez esperar, pois que o assunto o merecia. Ó Antónia, não te aflijas mulher, sempre é melhor isso que meter-se na droga! 
 

quinta-feira, abril 18, 2024

peixe e pão [poema 386]

o peixe na brasa, o pão 
indizível 

as mãos que acenam são as pessoas a pedir 
há uma multidão por detrás das coisas 

é o milagre que acontece 
quando o peixe sai da água e vive 
quando a farinha se amassa e é carne 

as mãos agarram-se umas às outras sem desfecho 
e o peixe espera na brasa 
por mim

segunda-feira, abril 15, 2024

a Clara e as experiências da fé

A Clara participou num encontro religioso que mudou a sua vida. Pelo menos mudou a sua relação com Deus. Fez-lhe muito bem. Saiu daquele encontro, tal como a maioria dos jovens que nele participara, cheia de Deus, como me dizia. E notava-se abundantemente no seu rosto, que era muito mais descoberto e aberto que outrora. Senhor padre, quando houver mais coisas assim, lembre-se de mim. Lembre-se de me informar. E lembro. E ela participa. Faz-lhe bem. Mas fica nesse consumo de experiências. E a fé não vive de um conjunto de experiências de fé. A fé não se consome. Vive-se. É um processo de vida. É um caminhar constante, mesmo por entre altos e baixos, entre momentos mágicos e momentos sem magia. É um caminho para fazer diariamente e para se alimentar da correnteza do dia, da normalidade das coisas, da quotidianidade da vida. Não lhe chega o acumular de experiências marcantes. Porque o dia a dia, mesmo por dentro do consciente, marca muito mais quem somos e quem nos fazemos, para onde vamos e como vamos.

A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO: "Não há caminhos certos"