quinta-feira, outubro 17, 2024

o pai do padre

Quando aos dezassete anos informou os pais que ia entrar no Seminário, ao pai só lhe apetecia bater-lhe, e a mãe continuou a esfregar a roupa no tanque, sem retirar os olhos dela. Rapidamente as lágrimas começaram a cair-lhe do rosto, mas quase não se notava porque as lágrimas se juntavam na água do tanque. Ele também não deu conta. Fechou os olhos para não ver. Foi desta maneira que o António disse aos pais, que eram mais ateus que outra coisa, que decidira ser padre. Não era gente má. Mas isso não fazia deles cristãos. Não iam à missa. Não queriam saber dos padres. O irmão mais velho é que se metera na Acção Católica e o mais novo, pelos vistos, sem que se adivinhasse, fora-lhe no encalço. Tão grande era o desplante, que no dia em que o filho fechou as malas e se despediu, o pai lhe disse, em tom de pai, que se cruzasse aquela porta, deixaria de ser seu filho. E o tempo passou. Pouco se falavam e, nas férias, as palavras pouco mais serviam do que para mostrar o desagrado. O filho ainda não era padre e ainda havia tempo de o demover de ideias tão ridículas. Onde já se viu um filho de gente que não é de Igreja se tornar um padre. Antes se tornasse um malandro das ruas. Não o pensava assim, mas verbalizava-o para que o filho pensasse bem no que fazia. E o tempo continuou a passar, como tudo na vida passa. Os anos foram calejando aquela família. Mas nem a ideia do filho nem a do pai desapareciam. Casmurros ambos. Ambos do mesmo sangue. Um mês antes da ordenação sacerdotal, o pai, sem que nem sequer a sua estimada esposa, que o acompanhava nas ideias e nas desideias, soubesse, foi visitar o padre da freguesia. Aquele a quem, pouco depois da primeira conversa do filho sobre a estranha decisão, acabaria por culpar e visitar com um pau na mão, pronto a ser usado se a ocasião fizesse o ladrão. Graças a Deus que o padre não estava só e a companhia o demovera. Agora a visita era por outro motivo. Talvez por ser um coração duro, tardou em abrir-se e a conversa demorou umas boas duas horas. Terminou com a absolvição. Nunca ninguém soube o teor da confissão nem o motivo da conversão. O pai mudou. O pai voltou a ser pai. O pai abraçou o filho na sua ordenação como se fosse a maior alegria que um pai pudesse ter. Perceber que a felicidade é um dom de Deus não é para todos. E o tempo passou. Mas, desta vez, foi apenas um mês. E o pai partiu para o outro pai. Foi de repente e os médicos não puderam fazer nada. O filho ainda hoje gostava de perceber, mas não percebe. Só sabe que os desígnios de Deus não se sabem de verdade. Só se acreditam… e se confiam. 
 
 A PROPÓSITO OU A DESPROPÓSITO:  "A chorar durante a missa"

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