quinta-feira, janeiro 10, 2008

Os selos e os envelopes

Estou aqui no lar, senhor padre. Não queira saber as minhas dores. Toco-lhe com carinho no ombro. Mas ela altera-se. Queixa-se do ombro. Ou não está habituada ou dói-lhe mesmo ou está habituada a queixar-se para fazer notar a sua sorte. Por acaso é muito assim cada vez que a vejo. Mas não deixa de ser um caso interessante. Dou-lhe atenção. Beijoca-me todo. E agradece. Às vezes não sei o que agradece. Mas agradece enquanto fala das dores, da zona que nunca mais foi curada. E chora quase sempre.
Mas ontem foi diferente. No final da missa de Natal do lar. Capela cheia. Muita criançada, novos e crescidos. Veio até à sacristia, mais uma vez, agradecer. E no meio do agradecimento e das dores, diz que não tem dinheiro para selos e envelopes. E chora com mais força. Depois explicou que só um filho lhe tinha mandado uma carta. Que os outros dois não. Que passava sempre assim o Natal à espera de cartas. Mas que anteontem tinha ligado ao mais velho, a dizer-lhe que queria o dinheiro que era dela. Que ela não via nem um tostão da reforma dela. E que queria ter ao menos dinheiro para uns selos, uns envelopes e uma folhas para poder escrever-lhes no Natal. Explicava-me depois a mim que eles não lhe escreviam porque ela também não lhes escrevia. Mas que quando ela o fizesse, eles também iam fazer. Por isso exigia ao filho que ficava com todo o dinheiro da reforma e que nunca lhe prestava contas dele, que lhe desse ao menos dinheiro para as cartas. E sabe que me fez ele, padre? Sabe! Desligou-me o telefone na cara. Por isso estou muito triste. Dói-me tudo.
Imaginei que o filho se tivesse cansado de ouvir as suas lamúrias. Mas será que ele tinha percebido a intenção daquelas cartas?!
Por isso, neste Natal desejei em mim um novo propósito: prestar mais atenção àquelas chatas que passam a vida a queixar-se, de forma a perceber o que elas de facto querem dizer ou precisar.
Sabe-se lá o que Deus nos possa querer dizer através delas!

10 comentários:

Confessionário disse...

yupiii. Já tenho net, e prometo voltar mais amiude.
Beijos a todos

Anónimo disse...

Às vezes os filhos são cruéis!Se a reforma é da senhora, por que razão há-de estar o filho mais velho a usufruir dela? Antes de lhe doer fisicamente o que quer que seja, à senhora deve doer-lhe mil vezes mais o coração e a alma!Agora imagine-se que pensamentos e que anseios não irão lá por dentro... :(

Beijinho sereno

Pensador disse...

Tudo é Graça!

De facto, ao ler esta comovente "história de Amor" descobri o maravilhoso Natal desta Alma...

Maria, José e o Menino ao estarem tão sós cheios de frio, com dores, sem dinheiro numa gruta foram convidar a estar com Eles esta Flor!

Foi a alegria deles pois também estavam sós sem ninguém e então lembraram-se dos amigos!

Foste convidada a seres a primeira a visitá-los pelos pontos em comum com Eles...

Os Filhos nem os reconheceram, todas as portas se fecharam, José aflito não tirava os olhos de Maria, nem cartas, nem dinheiro, frio e dor...

Apesar de tudo, por AMOR, lembraram-se de Ti por quem Ele nasceu para seres a primeira a vê-LO!

Eis o Natal do Amor e Graça.

Santo Ano.

Anónimo disse...

Bem, este post deixou-me a pensar...é que eu para este ano pensei o contrário: deixar de dar tanta atenção a gente chata como essas senhoras, que cansam, que acabam por nos deixar preocupados, porque nada podemos fazer se não uma oração, porque muitas vezes tentamos dar uma mão e elas querem o braço...ou será porque sou egoista e perdi a paciência?! PAra reflectir...sem dúvida!

M. João

Suspiro disse...

É verdade! Por vezes essas chatas apenas querem atençao. Eu sei bem do que falo! Na minha profissão encontramos muitas "melgas" que no fundo têm vidas completamente depedaçadas e que apenas querem um pouco de atenção e carinho.

Teodora disse...

No bairro do amor a vida é um carrossel
onde há sempre lugar para mais alguém
o bairro do amor foi feito a lápis de cor
pra gente que sofreu por não ter ninguém

No bairro do amor o tempo morre devagar
num cachimbo a rodar de mão em mão
no bairro do amor hã quem pergunte a sorrir
será que ainda ca estamos no fim do Verão

Eh pá, deixa-me abrir contigo
desabafar contigo
falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
descontrair um pouco
eu sei que tu compreendes bem

No bairro do amor a vida corre sempre igual
de café em café, de bar em bar
no bairro do amor o sol parece maior
e há ondas de ternura em cada olhar

O bairro do amor é uma zona marginal
onde não há prisões nem hospitais
no bairro do amor cada um tem de tratar
das suas nódoas negras sentimentais

Eh pá, deixa-me abrir contigo
desabafar contigo
falar-te da minha solidão
Ah, é bom sorrir um pouco
descontrair um pouco
eu sei que tu compreendes bem

Jorge Palma

Anónimo disse...

Estas são situações muito tristes, mas também muito numerosas. Não podemos culpar só os filhos. A reforma da senhora, se calhar, vai para ajudar a pagar o lar e de certeza que não chega. O filho devia ser mais compreensivo, é verdade, mas conheço casos semelhantes. E se não conhecesse bem as pessoas em causa, também era capaz de tirar conclusões precipitadas.
Bom Ano

Leonor

Ver para crer disse...

É os velhos - e sobretudo as velhas- são chatos(as. Porque lhes faltam os carinhos devidos ou porque é um modo de se fazer notar.
Um dia seremos decerto como eles...

Alma peregrina disse...

Tudo o que o Confessionário diz é verdade, todavia devemos ter cuidados ainda mais redobrados com os velhos que não falam. Enquanto os/as chatos(as) vão batendo à porta de um e de outro e, eventualmente, lá encontram quem os console... os calados vão sofrendo e mirrando em silêncio. Somos nós que temos de ir ao encontro desses. Cuidado com o Silêncio!

Anónimo disse...

Fiquei para aqui a pensar... Como é o Amor!!! A senhora só queria ter dinheiro para os selos... Porque se ela escrevesse, teria resposta.... Quantas vezes não é assim no Amor? Quantas vezes O Senhor nos "escreve" e nos procura, quantas vezes é Ele que espera a nossa "carta"?....
... E nós???? Nós somos os filhos ocupados... aqueles que ficam com a reforma e esquecem....

beijinhos
Zu