Já não se usa muito o termo “menina”, mas eu ouso usá-lo para falar da menina Felicidade. É uma senhora com idade para ser um pouco mais que minha mãe. Enviuvou há muito. Não vive sozinha, mas vive com as suas maleitas como se existisse sozinha nesse mundo. A única filha morreu há duas dezenas de anos com a doença que é redobrada constantemente nos sinos das nossas igrejas, o cancro. Ela própria sobreviveu a esse maldito pesar na própria pele. Foi, ao que me dizem, uma força da natureza ou uma força de Deus nos muitos embates que a sua vida tem tido. É verdade que se queixa muito do que vai sofrendo. Mas não se queixa da vida. Eu diria que se resigna, e vive a lamentação própria de quem sabe cada minuto da vida. Que sabe que vivemos enquanto estamos vivos, e que é a Deus que devemos tão grande dom. Apesar de viver nesse mundo das queixas e apesar de desfalecer constantemente com os achaques das doenças que lhe aparecem, eu descubro nela constantemente o dom da vida. Aceita que a vida é isto. Entrega-se nas mãos de Deus como se fossem a melhor almofada para adormecer. Possui um misto de azar e sorte. Um misto de tristeza e de felicidade. Aguenta-se nas canelas, dizendo que o dia está a chegar. Sorri para mim e beija-me fora da barba, que não gosta dela e que perturba a sua face limpa e viçosa. Chego a pensar que a vida da menina Felicidade é um misto de muitas coisas que parecem não ser boas, mas com as quais se vive.
Um beijinho do tamanho da tua vida, minha menina Felicidade.
5 comentários:
Que mensagem linda. Adorei, mas confesso que senti uma pontinha de inveja de sua menina da felicidade.
Por mais que senti uma pontinha... mas na verdade sou meia parecida com sua menina da felicidade. Apesar da vida que levo é mista em todo sentindos. Mas nem por isso deixo a tristeza me achar.
Muito bem.
Um beijinho para a sua menina Felicidade.
Bj
Quantas meninas Felicidade tem este país!! Tenho uma avó lá no noroeste com 93 anos, que não usa óculos nem muletas e todos os dias tricota um par de meias, como se a familia aumentasse diariamente! Está sempre à espera do dia da tal viagem, que acha ser a última, entre a sala e a janela e a janela e o quintal, e entre um percurso e outro acaricia o gato e dá de comer aos pombos e olha como se aguardasse a chegada do Aerobus! Foi o meu melhor colo, o meu grande conforto, o meu porto seguro! E é de facto uma força da natureza, mas não no sentido rude da força, é uma força resiliente e ao mesmo tempo leve, como uma morna brisa de verão...Há muitas mulheres assim neste país, há muitas mulheres que esquecem as próprias dores para se entregarem à família e aos outros, para distribuír amor, para agir com bondade e generosidade, porque não conseguem ficar paralisadas perante a inércia dos dias! Mesmo enquanto aguardam a derradeira viagem, estão em constante movimento, para se assegurarem que as encontram, para não atrasar o momento, porque assim viveram toda a vida, em constante busca dos outros, a satisfazer sistematicamente as necessidades alheias, esquecendo-se de si mesmas enquanto individuos! A minha querida Felicidade era muito alegre, sempre com um sorriso e ousou ser feliz desta forma a fazer felizes os outros...e no que a mim concerne, conseguiu de forma incrível, transmitir-me essa atitude positiva face à vida! Estamos aqui, com alegria, para o que der e vier, sempre de mangas arregaçadas, sempre prontos para o sinal de partida...e recordo as palavras sábias do discurso do Papa Francisco-que amo- sobre a família!
Padre, beijinhos e também rezarei por si
09 janeiro, 2018 12:43
Fiquei encantado a ler-te
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