segunda-feira, julho 21, 2014

Funerais sem mim

Bato no peito para dizer que não devia ser assim. Que a minha forma de encarar os funerais devia ser outra, mais tranquila, mais serena. Que nas vésperas do funeral devia fazer uma visita à capela funerária para estar com a família sofrida. Estar com eles, mesmo que não dissesse muitas palavras. Rezar com eles, mesmo que fossem frases feitas, jaculatórias conhecidas, o terço que é a oração mais fácil quando não se sabe que rezar e se quer estar uns bons minutos a rezar. Mas só de pensar naquelas pessoas com rosto banhado em lágrimas, com roupas de luto, com as outras pessoas a carregarem mais o seu luto com os Meus Sentimentos, dá-me uma vontade de fugir para um canto, escondido no recôndito de uma qualquer capela com sacrário e dizer ao Senhor que afaste de mim este cálice. Bato no peito porque sei como poderia ser bom para aquela gente. Invento desculpas para não ir, quando uma razão apenas existe. Tenho fé clara e autêntica na Ressurreição, mas a dor do que sofre com a perda de alguém é como se me adentrasse pelas entranhas do coração e o fizesse partir em pedaços para lançar ao longe e ao largo. Sou padre e sou pastor. Mas não me peçam para ser capaz. Nunca encaixei muito bem aquela de ir dar os sentimentos, porque os sentimentos não se dão. Vivem-se. E nessa hora de dor a nossa atenção precisa é dos que nos são mais próximos. Precisamos deles como se dependêssemos deles ou da sua atenção. Precisamos daqueles que nos são próximos em sangue ou afectivamente, daqueles que nos sustentam e nos seguram em pé. Os outros, apesar da sua bondade, da sua afabilidade, da sua companhia, acabam por fazer com que o nosso corpo morto ou desfalecido pareça ainda mais pesado. Sei disso porque já morreram pessoas a quem estava ligado de formas extraordinariamente belas, e o que eu queria era que me deixassem ali agarrado aos que me sustinham em pé. São horas que têm de ser. Mas eu não consigo ser bom padre nessas ocasiões. Peçam-me mais tarde que fale com eles. Isso faço. Mas naquela hora só me apetece fugir. Por isso bato no peito para dizer que não devia ser assim.

9 comentários:

Anónimo disse...

"Nunca encaixei muito bem aquela de ir dar os sentimentos, porque os sentimentos não se dão. Vivem-se."
Concordo.
"estar com a família sofrida"
É isto que faço ou pelo menos esforço-me por fazer, nestas alturas não costumo ter muitas palavras para dar, nem tampouco gosto de as receber.
Nessas horas "Precisamos deles como se dependêssemos deles ou da sua atenção."
Precisamos de sentir que estamos acompanhados para não nos deixar-mos ir com a morte.
Precisamos de quem nos toque na mão ou na cabeça, precisamos de quem nos dê um abraço apertado.
Precisamos de quem nos empreste o ombro para repousar a cabeço na esperança de amenizar o sofrimento que nos quer dilacerar.
Há algumas coisas que se me fosse possível mudaria no ritos fúnebres, aboliria o "dar de sentimentos" fomentaria o estar... estar com os que ficam para dar sentido à passagem de quem foi.

Anónimo disse...

Mais uma vez padre, encantas com a tua humanidade, com a tua empatia pelos outros. Muitos não se questionarão o quanto sofre um padre quando realiza os funerais... Quando vê pais, filhos na despedida sem poder perder a serenidade.

"Há algumas coisas que se me fosse possível mudaria no ritos fúnebres, aboliria o "dar de sentimentos" fomentaria o estar... estar com os que ficam para dar sentido à passagem de quem foi."

"mais do que funerais fazemos homenagens" o slogan de uma arrojada (pelo menos no nosso país)agência funerária. o slogan acompanha um spot que ilustra o poema recitado de Mário de Sá Carneiro

"Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza…
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro."

Este spot publicitário seria considerado,por muitos que conheço, um ultraje. Para mim faz todo o sentido.

SL

SIRF disse...

São estes seus comentários que me fazem acreditar que ainda há pessoas no mundo. Sim, porque mulheres e homens encontramos em qualquer lugar mas pessoas...esses seres com sentimentos! Difícil....muito difícil!
Gostei!

Anónimo disse...

Pensei que soubesse quase tudo o que se sentia quando se perde alguém. Baseava-me na forma como tinha vivido a morte dos meus. Toldava-me a minha própria experiência. Com o decorrer do tempo, apercebi-me que há muitas formas de viver a morte e que cada qual tem a sua. Vivemos melhor a morte dos que amamos do que a nossa dor. Fiquei com a ideia de que na morte deles choramo-nos a nós. Sim, sentimos uma profunda pena por quem parte, sobretudo se for jovem, pelo que não desfrutou, pelos projectos que não realizou, por aquilo que não concluiu, pelo que não viveu. Mas é uma pena nossa. Quem morreu não tem pena. Morreu. E, se formos crentes, confiamos que os nossos mortos alcançarão a plenitude junto de Deus, onde nada lhes faltará. Choramos a morte que se instala nas nossas vidas e na daqueles que guardamos no coração. A morte dos vivos. O vazio que se instala. O fim das nossas expectativas. O consolo que nos vai faltar. O que já não vai ser repartido. Os erros que cometemos e não vamos poder reparar. A nossa maior pobreza e solidão. Despedimo-nos da vida como a tínhamos, acenando-lhe um último adeus, sem saber como vai ser daí para a frente. Unimo-nos nestes sentimentos para que a dor de todos seja uma só dor com diferentes matizes, porque a dor daqueles a quem queremos é e irá ser também a nossa dor. Essencial é não perder o sentido de beleza da vida, tanto de quem parte como de quem fica. É preciso tempo, paciência e proximidade para redescobrirmos e valorizarmos a vida tal como se nos depara. Todos podemos ter paciência, mas não é dado a todos o mesmo tempo. Nem todos temos a mesma receptividade. Mas mesmo que não o saibamos, nestas alturas, precisamos dos outros como de pão para a boca. Não só daqueles por quem nutrimos afecto e que conhecem e partilham a nossa dor, mas também dos outros. Dos que tocam a nossa vida com inesperada bondade. Com a sua paz e respeito. Dos que a revigoram com a sua leveza, introduzindo-lhe aos poucos a normalidade perdida. O luto é um processo prolongado. Em vésperas de funeral, a presença do padre na capela mortuária pode ser reconfortante para quem sofre. Não para que a proveniência das prédicas e da prestação de sentimentos possam ser atribuídos ao senhor padre, mas como sinal de consideração pelo morto e pela família enlutada. E da sua imediata disponibilidade. Muitas vezes ficamos com a impressão que a função do padre se esgota na prestação de um serviço pago e estipulado. O que mais importa é que os que necessitam sintam que o padre está com eles na sua dor e que os acompanhará na sua ressurreição para a vida, caso queiram. Nesse dia ou no outro, mas principalmente nos que se lhe seguirem. Não é preciso que o padre profira as palavras certas, há momentos em que não há palavras certas para quem as ouve. Basta que deixe a sua fé e sensibilidade actuarem para ser um instrumento de Deus. Mesmo que só venhamos a perceber isso muito tempo depois. Gostei do teu texto, padre.

Anónimo disse...

Anonimo 22jul 16h26

Comentario extremamente lucido.

SL

Anónimo disse...

Caramba, Padre... Como me revi em tanto do que foi escrito!

PR disse...

"Vivemos melhor a morte dos que amamos do que a nossa dor."
É bem verdade que a minha principal dificuldade é lidar com o vazio que fica depois da partida.

"Muitas vezes ficamos com a impressão que a função do padre se esgota na prestação de um serviço pago e estipulado. O que mais importa é que os que necessitam sintam que o padre está com eles na sua dor e que os acompanhará na sua ressurreição para a vida, caso queiram."

Inquestionável esta afirmação, mas quantos são os padres que actualmente têm tempo para estar com os membros da sua comunidade, sob o pretexto de tantos e tantos assuntos para tratar, esquecem-se muitas vezes do essencial... estar com os que ficaram presos nesta dimensão da matéria, estar, tocar, abraçar, sorrir, com a sua presença falar mansinho sem palavras ao coração dos que sofrem a perda dizer-lhes: não estás sozinho, Jesus e eu estamos contigo.
Pr

Anónimo disse...

Graças a Deus que encontrei alguém que partilha o meu pensamento!!! Como é bom ver alguém descrever o que nós sentimos! :-)

Confessionário disse...

04 Novembro, 2014 21:45
Tb é bom saber que não sou o único!