terça-feira, dezembro 26, 2017

A minha cadeira de rodas

Só me faltou a gargalhada. Foi um sorriso que só eu dei conta. Veio, mais ou menos, na hora em que me pareceu que o mundo estava distante. Que agora era só eu e mais quem me quisesse acompanhar na invisibilidade. Ganhei ânimo ao pensar que vida é muito mais que o que temos de fazer. A vida é estar ou ser. É muito pouco o que fazer. 
Sou padre, é certo. Não tenho a menor dúvida disso. Como também não tenho grandes dúvidas sobre o convite que Deus me fez há tantos anos. O convite que fez a uma pobre criança, meio reguila, meio inconforme. Tantas vezes pensei no porquê de Deus me ter escolhido. Ainda por cima, quando me apercebo das minhas milhentas fragilidades ou vulnerabilidades. 
Estava a ler o livro “Senhor bispo, o pároco fugiu”, uma versão portuguesa do original francês “Monsier, le curé fait sa crise”. As primeiras impressões, sobretudo quando se trata o assunto da canseira administrativa das paróquias, era uma luva em mim. Assentava em cada dedo das minhas mãos. O protagonista, de nome Benjamim, queria refundar o seu sacerdócio, e para isso fugiu de tudo. Creio que fugiu até de si mesmo. Ia lendo e ia pensando que também era um sentimento que vinha a mim muitas vezes. A ideia que formulamos em nós quando decidimos seguir esta vocação anda muito próximo da divinização do sacerdócio. Imaginamo-nos a construir o reino de Deus só com a Palavra de Deus. Ela tem uma força que não cabe em nós, de facto. Mas é na nossa humanidade que ela actua. Não há como fugir disso. Nós padres, é que nos esquecemos, muitas vezes, dessa realidade. A vida não é como imaginamos, mas é um desafio permanente a descobrir como viver.
O padre Benjamim no final do livro foi convidado a ser bispo, apesar de estar sobre uma cadeira de rodas. O que eu me ri das coisas que Deus pode, em verdade, lembrar-se. Ou pelo menos que o autor deste livro colocou na sua vontade. A minha cadeira de rodas é outra. É esta vida sobre a qual me tenho sentado, na esperança de que o mundo gire à minha volta. Mas o mundo não gira. Sou eu que tenho de ir em busca, mesmo em cadeira de rodas. Sou eu que tenho de andar, mesmo que seja dentro de mim, para que cada minuto da minha vida, mesmo a sacerdotal, valha a pena. Por isso me ri tanto, comigo e de mim. Talvez amanhã me levante com o mesmo rosto sombrio de muitos dos meus dias. Mas, pelo menos, agora rio e, como um rio, quero deixar-me levar até ao mar, com um sorriso nos lábios.

5 comentários:

Anónimo disse...

A capacidade de se conhecer, de se autoavaliar, de perceber em que parte do caminho se está é uma mais-valia em todas as profissões e vocações. Pode dar para rir de si mesmo, para arrepiar caminho, para reformular estados ou a vida toda, para se renovar. E Natal é isso: renovar-se! Obrigada.

Anónimo disse...

Bom dia, boas festas.
Por acaso também já li esse livro e achei que era bastante realista...até á fuga.
Mas depois também achei "interessante" e inesperado o final, mas pronto era só um livro.
Mas o senhor padre padre não me parece um homem de se "emparedar", mas de tentar resolver as coisas frente a frente, apesar claro das dificuldades e dúvidas que muitas vezes possam surgir.
Deus escolheu bem...e por isso não o abandona.
Continuação de boas Festas.
Bj

Anónimo disse...

também ja li e concordo com o anónimo anterior. Depois da fuga já parece mais um romance, ainda que muito interessante.
Sobre a sua cadeira de rodas, ponha-a a rodar e a andar. O sr padre tem muito a transmitir...

Anónimo disse...

Modesta à parte nunca li esse livro embora me tenha despertado a atençao o titulo..
Mas quero agarrar na expressao "cadeira de rodas".
Neste momento,menos bom da minha vida,sinto que esta é tambem a velha cadeira de rodas!
Posso aqui ate fugir um pouco ao tema e como que desabafo vou-me lamentando ou melhor limitando-me a mim propria!
À pouco alguem proxima de mim,dizia-me:
-Ás vezes parece que desistes da vida,das coisas,das pessoas...!
Não tive capacidade de resposta!
Tal como a cadeira de rodas,tbm eu ando limitada mas,nao me interessa ultrapassar as barreiras,quero purisimplesmente aprisionar-me à vellha "cadeira de rodas".
Tambem alguns podem aqui confundir uma possível depressao...nao!
É TRISTEZA... PROFUNDA!
Quando nao se consegue sair dessa tristeza amigos,nada faz sentido!
Deixamo-nos embalar na fé como menino em seu berço!
Nao ha esperança,nao ha sentimentos,nao ha vontade de rezar/falar com DEUS!
ELE sabe das minhas fraquezas,minhas angustias...
Comungo nas eucaristias sim,nao porque mereça mas,porque preciso de DEUS em mim!
Um dia..quando nao for capaz de escrever,perguntem as estrelas por mim!
C.c

P.s- cansada!

Anónimo disse...

Depois destes comentários pensei. Que maravilha de testemunho que nos
deu o S. Padre... Confiança em Deus, forte na sua vocação Sacerdotal.
Reconhece a sua fragilidade mas ultrapassa com fé em direcção ao infinito !!!
Parabéns Padre. Vou rezar por si.
Foi dos testemunhos mais lindos..
Não interessa cadeira de rodas, ou carro de velas marcas o que interessa
é o seu testemunho e fidelidade a Deus.
Que este Novo Ano lhe traga toda a felicidade do mundo para ser fiél até à
morte.
Boa noite. A Paz de Deus.