quarta-feira, novembro 23, 2016

Liberdade de não ter nada

Comprei algo que me custou bastante. Bastante dinheiro e bastante atenção. Bastante tempo e bastantes indecisões. Comprei algo que me é absolutamente necessário até para cumprir a minha missão sacerdotal. Um carro. Nem foi assim tão caro. É algo que comprei e que é meu. É algo que me pertence. E preciso. E hoje dei por mim a pensar que quando compramos algo que custa e que é novo, é quando damos valor à liberdade de não ter nada. Sim, lembrei aqueles que não têm nada e também não têm muito com que se preocupar para além do que é essencial. Aqueles que dão valor a cada pequenina coisa que possuem. Aqueles que, de tão pouco que possuem, têm todo o espaço do mundo para si mesmos e para Deus. Não precisam de preocupar-se se o carro está na rua ou na garagem. Se o esmurram ou se lhe estragam a pintura. Se está à chuva ou ao sol que queima. É nesses momentos, algo banais, que damos valor à liberdade de não ter nada.

17 comentários:

Anónimo disse...

Dou-lhe os parabéns pelo carro (caso não seja de luxo, como existem muitos colegas seus a fazerem, perdoe o comentário) e por colocar na equação os outros. Também algumas vezes me deparei com esse dilema, não em relação ao carro - indispensável à minha vida-, mas em relação a outros bens por exemplo cuja compra posso adiar: compro agora e faço uso deste dinheiro para ajudar alguém em algum momento de aflição? Não deveria ser necessário chegarmos a esta equação, todos deveriam ter um mínimo de nível de vida condigno para não dependerem de caridade alheia..
Sei que fala de liberdade de nada ter, mas quando se tem menos de nada fica-se prisioneiro da caridade dos outros, da benevolência das instituições, da migalha que cai do prato do rico.. isso doi bem fundo no coração e não tem a ver com politica (tenho na minha família até pessoas do PCP, supostamente solidárias, que vivem faustosamente, eu que um dia também segui um pouco de perto as ideias deles, afastei-me quanto cresci e vi a incoerência de vida dessas pessoas), sim justiça social de que tanto se fala mas muito pouco ainda se faz.
Saúde para gozar o seu carro. Vai ser muito necessário também à sua vida com certeza.
Agnostica Portuguesa

Confessionário disse...

Agnóstica amiga, já leste este?
http://eupadre.blogspot.com.es/2014/06/a-solidariedade-nao-se-faz-de-cima-para.html

Anónimo disse...

Não consigo abrir o link, onde posso pesquisar?
Também enganei-me queria dizer " compro agora OU faço uso deste dinheiro para ajudar alguém em algum momento de aflição? "
Agnostica Portuguesa

Confessionário disse...

é só fazer copy past do link ou procurar no meu blogue "A solidariedade não se faz de cima para baixo"

Anónimo disse...

Já li, li e gostei e comungo do mesmo sentimento. Não faço de modo algum por pena, mas porque não me consigo imaginar no sofrimento dum ser humano que não tem liberdade para por exemplo dizer que tem fome, que está doente e precisa de médico.. nem falo em ir a um cinema, ir a uma padaria e comprar uns bolos saborosos para ela ou para os filhos, comprar uma roupa nova, ir a um cinema nem que seja 2 vezes no ano ... não! Falo de coisas básicas e essenciais à vida!! Como até para isso é preciso a mão de alguém? O Estado, o nosso Estado social está obrigado a garantir tais necessidades básicas e julgo que houve tempo em que quase chegou lá, mas agora essas pessoas estão à mercê da solidariedade ou caridade.. não gosto disso! Eu tb por mais que lhes faça não espero senão ver um pouco de alivio da tensão que carregam todos os dias, mas nem assim.. peço todos os dias a Deus que dê forças e mais sorte na vida a essas pessoas.. rezar pelos governantes é coisa que não faço muito, pelo contrário importuno-os cada vez mais porque uma das minhas ajudas é tentar dar voz a essas pessoas através de cartas, requerimentos, petições, reclamações para as instituições até que os direitos, mesmo que os poucos, lhes sejam atribuídos..
Agnsotica Port.

Anónimo disse...

"Aqueles que, de tão pouco que possuem, têm todo o espaço do mundo para si mesmos e para Deus." Achas mesmo Pe.?

Achas que quem faz das tripas coração para pagar a conta da EDP, quem não consegue pagar dentista aos filhos, tem o carro avariado e não tem dinheiro para a oficina, quando precisa dele tanto quanto tu para trabalhar, etc, etc tem mais tempo para si e para Deus? Em que mundo?No nosso país não é com certeza.

O que acho é que, felizmente, nem tu nem qualquer outro padre diocesano sabem o que é não ter nada... é verdade que não têm a propriedade, mas tem o usofruto com a vantagem de não pagar impostos.

Confessionário disse...

24 novembro, 2016 09:46

Tens alguma razão, pois falar de barriga cheia, como se costuma dizer, é muito fácil. Com um carro novo nas mãos é fácil falar da liberdade de não o ter (lembro o carro anterior que já me obrigava a ir constantemente à oficina!).

E tens razão tb quando dizes que nós, apesar de não termos nada que seja efectivamente nosso (falo por mim porque a única propriedade que tenho é este carro novo)acabamos por ter poucas necessidades (a maior parte, repito), mas isso é uma certa forma de desprendimento, creio. Estar onde se está sem estar agarrado ao que se tem (em tempos vivi num casarão, e agora vivo num espaço exíguo, e com poucas condições).

Contudo, também não perdi a razão ao dizer com "a liberdade de não ter nada". Conheço gente que vive deste modo. Não têm quase nada, e vivem o dia sem grandes preocupações. Visita um país onde não existe metade das nossas condições de bem estar e darás conta do que digo. São gente que se preocupa menos com o que tem ou não, gente mais livre, mais desprendida.
O homem de hoje é que se habituou a ter muito (mesmo os pobres profundos ou aqueles que te referes), pois podem ter essas dificuldades, mas não significa que deixaram de ser consumistas. São consumistas diferentes

Mas agradeço muito a tua reflexão. Obrigou-me a repensar o assunto e fez-me bem.

Anónimo disse...

24 Novembro, 2016 09:46

Gostei da tua resposta Pe. Não te julgo, nem a ti nem a outros padres. Adoro o meu que também comprou carro novo há pouco tempo :-).

Também sou consumista, já vivi bem pior do que vivo hoje, mas conheço as dificuldades de que te falei demasiado bem.

Também sei a quem te referes quando falas dos que não têm nada, por isso te digo que não é no nosso país e portanto não é a realidade que vivemos.

Curiosamente o meu desprendimento aumentou exponencialmente quando Deus levou a minha cara metade e pai dos meus filhotes. Ironicamente, apesar do meu desprendimento, Deus ainda não me deixou faltar nada.

Eu costumo defender em conversa com amigos que se o dinheiro não existisse éramos todos muito mais felizes! Achas que sou maluca :-) ? Alguns acham!

Deus te dê saúde para gozares o teu carro. No momento em que fazes a compra, questionar e lembrar os que nada têm, diz muito a cerca do coração que tens!

Nunca pensaste ser padre num desses países a que te referes, onde as pessoas sao felizes co muito pouco, pelo menos durante uns tempos?

bjito

Confessionário disse...

24 novembro, 2016 11:22

Muito obrigado.. e quanto à proposta que me fazes, não me vejo, de facto, nesses locais de missão ad gentes. Sinto-me pároco! mas assim um mês era capaz de alinhar, só para abrir perspectivas e crescer espiritualmente. Talvez um dia

Anónimo disse...

Perdoem intrometer-me na conversa, mas é bem verdade o que a "Anónima" diz de muito dos seus colegas padres: de facto conheço os que pouco ou nada têm de seu, o meu Amigo que faleceu também so tinha um carro de 2ª mão em seu nome, mas existe o posto dos que vivem com carros topo de gama, apartamentos muito cómodos e de algum luxo até, para além da casa paroquial, a darem aulas quando existe tanta pessoa desempregada e com habilitações que talvez pudesse dar as mesmas aulas de moral.. julgo que tem sido esta postura de grande parte do clero uma das responsáveis pelo afastamento das pessoas em relação à Igreja. Este Papa bem que tenta mudar as coisas, mas julgo que tem tido poucos frutos neste campo.
Por isso, ou seja, por ter percebido desde o inicio que o Sr Pe é diferente, faz jus à missão que abraçou e aos votos que fez, e que não foram só (como os conservadores da igreja dizem à boca cheia) a castidade, mas também, e para mim sobretudo, de pobreza (não sei se esse é so para algumas ordens) e humildade.
Parabéns e continue sempre como é!
Agnostica

Confessionário disse...

Calma, amiga agnóstica. Não se podem fazer juízos precipitados. Eu tb tenho um sem número de defeitos e fragilidades! lol

agnostica portuguesa disse...

Verdade..tenho de ser menos impetuosa..pareco uma bomba relogio qdo se trata de materias de fe/igreja/justica/verdade....desculpem. Mas esteja descansado que nao o estou a "endeusar", apenas a tentar avaliar a partir do que vou percebendo de si.. E ainda bem que ainda existe bom clero, mesmo com as suas fragilidades...

JS disse...

Tenho para mim que hoje em dia pregar o despreendimento é falhar o alvo.

Se os padres nas homilias falassem mais do saber poupar como atitude cristã, de ser pecado estragar comida ou andar a desperdiçar dinheiro, de não se gastar o que se não tem, de que as dívidas são para se pagar, de não se ser pesado para ninguém ou habituar-se a viver à custa dos outros, de se pensar que se tem direito a comer sem trabalhar (que é coisa diferente do ter ou não emprego), de certeza que veríamos alguma gente furiosa a sair pela porta fora da igreja...

Confessionário disse...

JS, a tua imaginação anda muito profícua!
Seriam muito oportunas essas homilias. Mas já estou a ver o povinho a dizer que os padres agora só falam de política...lol

Anónimo disse...

O povinho?? Qual, aquele frequenta a tua igreja Pe.? Há qualquer coisa de arrogante e hipócrita nesse teu último comentário. Desculpa a franqueza .

Confessionário disse...

28 novembro, 2016 22:20

Já não é a primeira vez que uso esse termo e que tb gera alguma confusão. Penso que não é um comentário arrogante e hipócrita. Nem é para desprestigiar a classe do povo. Com ele eu quis dizer que o comum das pessoas (sobretudo as que gostam de falar e comentar), iriam reagir dessa forma. Penso que não é arrogante, ou se calhar estou a usá-lo sem dar conta dessa arrogancia. Sorry

Anónimo disse...

Eu percebo a ideia do JS: a Igreja deveria ser pedagógica também na área social. Concordo. Mas como em tempos fiz parte dum grupo (o único de que fiz parte dentro da igreja e por pouco tempo, porque vi que nesses movimentos prevalece a palavra sobre a ação e que faria a minha pastoral melhor sozinha do que condicionada por orientações que não passavam disso)de pastoral social que tinha como uma das suas tarefas orientar as famílias mais carenciadas a saber poupar e viver com o pouco que têm.
Não sei se feliz ou infelizmente, os padres hoje descentralizaram um pouco os poderes que inicialmente incumbiam a eles e como que foram delegando nestes grupos de pessoas, uns a funcionarem bem talvez, mas outros a não passarem de teorias sobre economia doméstica.
Agnóstica