quinta-feira, junho 08, 2006

Dois funerais, uma história

Nos funerais há sempre histórias. Não sei bem porquê, mas há. Imagino que seja porque nessas horas as máscaras caem. Ficam as rugas, os sinais, as marcas, a verdade, visíveis. As pessoas próximas do falecido ou falecida ficam sem defesas. Os sentimentos apagam as defesas. Por isso sofremos muito quando sentimos, seja o que for. Porque caem as defesas. Foi assim. Funeral às 10.00 horas. Marcado quase na véspera da véspera, por causa dos filhos. Certo. Nada difícil. Segundo funeral. Mesma paróquia. Todos entendem. Já sabem que são dois em um. A paróquia toda entende. Menos a senhora do segundo defunto. Ela é que manda. Mas e se o padre tem missas a essa hora? Pergunta o cangalheiro. Ele vem para aqui mandar?! O padre pensa que manda, mas não manda. O homem é meu. Eu supus que ela devia estar descontrolada. Apesar do marido estar doente faz muito, estar a sofrer muito, não estava convencida desta hora final. Eu sei o que afirmo porque o visitei uma semana antes deste acontecimento. Quis crer que era uma questão de aproveitar todo o tempo que podia para estar mais tempo com o seu cadáver. Digo-o, porque a hora escolhida era desora. 19.00horas. Mas e o outro defunto? Pergunta o cangalheiro. Não obteve resposta. Naquele momento só interessa ela, a sua forma egoísta de amar, de sentir. Inconsciente, mas prejudicial. Lembro que telefonem aos filhos para a fazerem chegar à razão. Boa ideia, respondem-me. Pior. Parceria com a mãe, e até oferecem dinheiro. Pagam o que for preciso. Indigno-me. Pergunto-me se querem mesmo um padre no funeral! Mais tarde soube que a resposta a esta minha pergunta no silêncio tinha sido dada pela senhora. Se não for com este padre, até vai sem padre. Pior foi o que me contaram que a mãe da senhora, a sogra do defunto, gritara para quem quis ouvir na sala onde jazia o morto. Para a nossa terra só vem a pior merda. Digo a palavra porque não é minha nem a uso como minha. O cangalheiro sofria. Os meus nervos subiam. Não pretendia fazer sofrer mais os familiares do outro funeral. Que esses ainda não tinham perdido a cabeça. Decisão final. Dois funerais. O primeiro, à hora marcada, que não têm culpa de nada. Missa. O Segundo, às 19.00 horas, sem missa nem distribuição de Sagrada Comunhão. Não é permitido haver duas missas na mesma paróquia sem motivo de força maior. Esta era menor. Não é permitido distribuir a Comunhão fora da eucaristia depois de ter havido uma na paróquia. Ao fim e ao cabo, quem fez o segundo foi um colega amigo depois de ouvir o meu desabafo. Obrigado a este.
Hoje, olho a dita senhora e surgem-me dois pensamentos. Primeiro. Pena, porque, até pela fidelidade à Igreja demonstrada noutras ocasiões, argumento que ela se passou da cabeça. Digo fidelidade em vez de fé, pois tenho medo de a utilizar indevidamente. Segundo. Retracção, porque estou a tentar perdoar e ainda não consegui.

24 comentários:

Anónimo disse...

perdoe lá isso senhor padre!!
as pessoas têm maneiras diferentes de lidar com a dor e a senhora deve, de facto, ter-se passado... e há sempre a juntar ao pensamento dela o: "o que é q outros vão pensar" e o " tudo o que ele (o falecido) tiver direito..." que, fazendo ou não sentido, pode ajudar ao estado da senhora e da família.
terá sido uma posição de pouca Fé mas que melhor exemplo a dar-lhe que o perdão sincero?!

para nós fica uma boa história para pensar.
obrigado

Lai disse...

"Porque, se alguém me contristou, não me contristou a mim senão em parte, para vos não sobrecarregar a vós todos;
Basta-lhe ao tal esta repreensão feita por muitos.
De maneira que pelo contrário deveis antes perdoar-lhe e consolá-lo, para que o tal não seja de modo algum devorado de demasiada tristeza.
Por isso vos rogo que confirmeis para com ele o vosso amor"
II Corintios 2:5-8

Mas não é facil...

Elfo disse...

Querido Amigo confessionário, peço desde já desculpa por estar a meter a foice em ceara alheia..., mas já assisti a alguns funerais, entre eles os dos meus queridos pais, que Deus os lá tenha na Sua Santa Glória, e vi o triste espectáculo que as carpideiras faziam pelos "entes queridos", quando na realidade estavam pura e simplesmente a representar para a audiência circunspecta.
Na verdade, enquanto estiveram vivos raramente os visitavam, e quando a faziam era de fugida.
Os amigos, esses, vinham à porta da casa mortuária a fumar uns cigarritos e contar umas anedotas para desanuviarem.
A mim obrigaram-me a ir ao cemitério quando do falecimento do meu pai, porque parecia mal eu não ir, se bem que a minha emoção era de tal forma que ia caindo para dentro da sepultura ainda antes do meu pai. Valeu-me a intervenção do meu sogro e do meu irmão.
Aquando do funeral da minha mãe, cinco anos mais tarde, desmaei em plena Eucaristia pois vi um buraco minusculo na madeira do chão do Templo e fui como que sugado para dentro do buraco negro que se abriu à minha frente. Dessa vez não fui mesmo ao cemitério porque tive um ataque de Epilépsia em plena igreja quando já estavam a levar o corpo e tiveram de me levar a casa onde me deram uns sedativos e anti epilépticos.
O show das minhas irmãs era pura e simplesmente rídiculo, pois só quem sabia a relação que havia entre elas e os meus pais é que podia perceber o espectáculo lamentável que estavam a dar.

Desculpe este meu desabafo, mas veio-me à memória os funerais dos meus pais e não podia ficar calado.
Fica à sua consideração, como sempre, o publicar ou não este meu humilde comentário.
Desculpe.

Anónimo disse...

Padre sofre....

maria disse...

E aqui mais uma vez se comprova:

A morte é uma grande chatice!
Até o padre apanha por tabela.:)

Padre, releva um pouco a atitude egoísta das tais pessoas. Estavam num momento limite, que é sempre a morte de um familiar.
Depois há certos católicos que ainda acham que a fé é uma coisa de méritos. Começa aqui com a atenção que o padre (fincionário de Deus e delas)tem obrigação de lhes dispensar. E creio que quando chegarem junto de Deus Nosso Senhor, vão com a folhinha da conta corrente em riste. Todos padecemos um bocadinho deste mal, queremos sem demora, a recompensa dos nossos trabalhos. Seja em simpatia, em reconhecimento, em acções, seja como for.É preciso é que ninguém nos fique a dever nada.

Quanto à choradeira das mulheres de que fala o Elfo. Ela tem uns fundamentos. As mulheres já aprenderam que umas lágrimazinhas rendem sempre alguma coisa. Quem tem culpa disto? Os machos! Se elas são sinceras e frontais, sentem-se ameaçados, se elas choram um pouco, vão a correr proteger. Anos e anos disto, têm as suas consequências - vão até ao cemitério.

Um abraço para ti, padre :)

PDivulg disse...

Admiro a tua sinceridade, compreendo a tua dor. Mas no final disseste tudo realmente ela era fiel à Igreja mas teria ela Fé? A Fé do Amor, do perdão da compreensão, da ressurreição?... Talvez não, apenas a "fézita" da tradição repetitiva, sem sabor a Jesus, o de Nazaré...

Carla Santos Alves disse...

Olá amigo
Compreendo-te...
Em vida preocupamo-nos tão pouco...e na hora de enterrar os mortos há tanta preocupação da hora de serem dois em um...em vida não dão valor naquela hora despojados das máscaras como bem dizes, caí-se na estupidez natural...

Bjs
Carla

Anónimo disse...

Algumas pistas:

A tensão entre celebrações particulares e colectivas é um dado evidente nas nossas paróquias. Há grandes dificuldades em juntar baptizados, é quase impossível juntar casamentos; até as missas plurintencionais coninuam a gerar muitos problemas.

Existe também uma difícil conjugação dos interesses das famílias com as celebrações da comunidade. Sendo que as objecções até surgem de ambas as partes (os directamente envolvidos e os outros). E mesmo em casos teoricamente indiscutíveis, como a Primeira Comunhão ou a Profissão de Fé.

Normalmente, este tipo de conflitos, embora ponha a nu a forma como se vive a fé e a relação à comunidade, surge por um motivo muito prosaico: a indisponibilidade do sacerdote. E agrava-se quando entra em jogo o comparativismo: "O padre anterior estava sempre disponível..."; "O padre da paróquia vizinha aceita sempre..."

O caso dos funerais apresenta algumas nuances a ter em conta. Primeiro, porque as sensibilidades encontram-se à flor da pele; segundo, porque não há grande espaço de manobra (leia-se: tempo) para trabalhar a questão com a família. Por isso mesmo, é importante que o pároco possa apresentar algum tipo de alternativa: exéquias sem missa, presidência por um padre de fora... Sim, é complicado; mas, por aquilo que vou ouvindo, os desentendimentos com funerais acarretam um preço demasiado alto. Para o coração do sacerdote e para a vida da comunidade.
JS

mi disse...

Olá!

Como eu o percebo, como eu o percebo...

Por mais que se racionalize que as pessoas agem assim porque têm dificuldades diversas, é desconcertante e revoltante!!!

Enfim, temos que ir tentando perdoar... Mas custa muito...

Unknown disse...

Oh xô Padre,

Já estou como a Malu: padre sofre. Perdoe lá, porque a nós, Nosso Senhor, tantas vezes, tem que nos perdoar coisas piores :o)

Um abraço

Anónimo disse...

Em primeiro lugar ... Parabéns aos nossos amigos Portugueses pela vitória contra Angola!!! Nós por aqui torcemos muito por Portugal!!!

Amigo Confessionário, como os Padres sofrem ...

Quanto ao perdão, não podemos abordar o processo de perdão com uma atitude arrogante. Cansamos de ver aqueles que dizem: "Não tem problema o que ele fez. Eu já o perdoei, mas ele que não cruze na minha frente...". Temos que ser honestos o suficiente conosco mesmos para admitir que ainda não perdoamos realmente, que na verdade não estamos perdoando - o perdão é, no fundo, sempre um auto-perdão. Na verdade devemos perdoar a nós mesmos por estarmos vendo aquela pessoa de forma, talvez, equivocada.

Devemos também sempre nos lembrar que o perdão é um processo, não é um fim em si mesmo. Estamos sempre precisando perdoar algo, seja em nós mesmos, nos outros.. Portanto, tenhamos em mente que "hoje é um bom dia para perdoar".

Tenho certeza que o amigo já perdoou a senhora do funeral !!!

Um abraço

Fátima

Aida Melo disse...

Coragem amigo confessionário! Por vezes é difícil perdoar, impossível esquecer… Nestas horas façamos como o Mestre: amar até ao extremo! Deixa passar o mau tempo e quando te surgir oportunidade não deixes de fazer algo de bom por ela… testemunhamos assim o quanto acreditamos no amor de Deus.
Abraço amigo

guga2004 disse...

Ás vezes encontrar o perdão é mesmo muito difícil (até para o padre) e esse tipo de egoísmo infelizmente não se manifesta só nessas situações. Nas outras está é mais simulado.

Sandra

José Fernandes disse...

"O amor é o único meio de assegurar a verdadeira felicidade, tanto neste mundo como no vindouro. O amor é a luz que guia nas trevas, o elo vivo que une Deus ao homem, que torna certo o progresso de cada alma iluminada. O amor é a maior lei que governa este ciclo poderoso e celestial, o poder sem igual que liga os diversos elementos deste mundo material..." 'Abdu'l-Bahá

Unknown disse...

Um pouco de oração para ajudar à compreensão, intercalada com um chá de ervas quentinho e umas bolachinhas, em silêncio, certamente o ajudarão a perdoar estas e outras (e desculpe o termo mas só me vem este à cabeça) "trenguiçes" das pessoas.
Mais dificil é, e será, tentar mudar nas pessoas a cultura mundana desta religiosidade (pior que tradicionalista) dos ritos clonados, das festinhas e dos foguetes. Esse sim, será o grande desafio, e poucas são as soluções, para criar outras mentalidades, mais cristocêntricas, mais contemplativas... "Mudam-se os tempos..." eu espero que se mude o SER (cristão)... tenho Confiança... mas não se pode ficar de braços cruzados.

/me disse...

Eu tenho-me interrogado bastante sobre o que será perdoar. Concordo com a Fátima, de que se trata de um processo.

Eu estou convencido de que temos direito a sentir, seja o que for. Raiva, desejo de vingança, despeito, tudo. Cristo também sentiu, e até expulsou os vendilhões do templo. Sentir é humano.

O que importa é a forma como lidamos com os sentimentos. E como lidamos com quem nos ofende. Assim, não estará já a perdoar a senhora?

Anónimo disse...

Na hora da morte é sempre muito complicado.. nesse momento não pensam em mais nada.. senão chorar e o aperto das saudades.. :/

Anónimo disse...

Acho que o padre já perdoou! às vezes temos de dar um desconto..pois há momentos muito dificeis e nem todos reagimos da mesma forma! Há que ter a capacidade de perdoar e compreender os outros!

Beijinhos

http://areiasalgada.blog.com/

Confessionário disse...

Amigos, não tenho respondido porque a disponibilidade... já sabem como costumo viver.

Quanto ao perdão, de facto no meu interior já perdoei. Nem sequer quis usar o que quer que fosse para magoar a senhora. Mas olho para ela e apetece-me fugir para não ter de dizer-lhe umas coisitas. Não fujo, é obvio, e já lhe falei várias vezes. Mas... um dia, quando ela se aproximar de mim para falar a sério vou falar-lhe daquilo que é a fé e o amor, daquilo que foi o seu erro ou fragilidade. Vou, vou... Por ser seu pastor, vou.

Confessionário disse...

ahhh, e posso garantir-vos que logo no momento em que soube de todas estas coisas e em que sucedeu este processo todo, eu já estava disponível para perdoar e não dar importância. Mas custou!

Confessionário disse...

António, é verdade. Nós nem podemos binar (celebrar duas missas no mesmo dia) com facilidade. Aos domingos só podemos trinar (3 x). Uma quarta missa só com autorização superior. claro que depois fazem-se contornos, contorna-se muitas vezes a situação... Mas binar num dia de semana na mesma paróquia não é permitido... e, a meu ver, é um erro!

Dad disse...

Puxa, Padre precisa mesmo de muita pachorrinha...
que isto de lidar com gente que não entende que a morte é a continuação da vida, tão só...é obra!
Olha Confessionário, lá no inquérito sobre as qualidades do Padre, a pachorra tem que ficar bem classificada...

Um beijinho e bom fim de semana!

Confessionário disse...

Eu, nem mais. Tens toda a razão. Nós abusamos da nossa fé... com coisas que não são fé, e na hora de a manifestar, confundimos tudo...

Anónimo disse...

É bom ouvir um lider espiritual dizer sem hipocrisia, é dificil pedoar.
Porque é dificil perdoar, especialmente quando damos o melhor de nos mesmos.

Obrigada